Murilo de Carvalho Recuperou guerras indígenas esquecidas e venceu o Prémio Leya
O jornalista brasileiro quis apenas preencher uma lacuna literária. Pesquisou, viveu com índios, rasgou páginas e mergulhou nos locais mais recônditos do Brasil. Com o livro O Rastro do Jaguar conta parte da "grave questão" indígena, passeia-se por Portugal, Argentina, França.
O romance histórico agradou ao júri do grupo Leya que congrega 11 editoras
a Murilo António de Carvalho não é um romancista. Repete que nunca foi. É repórter, andarilho. É, no limite, um contador de histórias. Um garimpeiro de narrativas recônditas. Um captador de lendas, coleccionador de factos históricos. "Recolho material que cruzo com ficção". O "material" constitui-se de episódios indígenas, a ficção acrescenta a teia especiosa ao texto histórico. "Mas não sou romancista, sou um jornalista com imaginação". Por muito que insista nessa ideia, reconhece que nos últimos quatro anos a construção de um livro tomou-lhe conta da vida. Escreveu, rabiscou. Rasgou páginas. Recolheu factos, de novo. Escolheu o título: O Rastro do Jaguar. "É um livro de guerra. Também de amor, mas sobretudo de guerra". A 14 de Outubro, recebeu um telefonema de Lisboa. Por sorte, pura sorte, estava numa aldeia perdida do sul do Estado do Pára onde havia rede de telemóvel. Disseram-lhe que tinha vencido a primeira edição do Prémio Leya. "Fiquei meio confuso até porque ouvia-se mal".Foi convidado para ir a Frankfurt. "Estava na Amazónia, as viagens não são fáceis e tinha um documentário para acabar". Gravou um depoimento em vídeo que enviou por internet.
No computador do jornalista, que também é documentarista e realizador de programas televisivos, a obra estava quase pronta. Meia dúzia de amigos enalteceram a qualidade da narrativa, um romance histórico. "Foi então que um companheiro viu o anúncio num jornal do Grupo Leya, que integra 11 editoras", disse ao P2 esta semana em São Paulo, depois de regressar de uma aldeia indígena junto ao Rio Tapajós, na Amazónia.
Primeiro ficou incrédulo, "quase renitente". Impôs-se outra ideia: "Por muito que não acreditasse que iria vencer, era uma forma de divulgar a literatura brasileira, tão pouco conhecida no mundo". Em média, num Brasil com 190 milhões de habitantes, uma edição raramente ultrapassa os quatro mil exemplares.
O Rastro do Jaguar foi uma das 446 obras levadas a concurso. Na apreciação final, o júri - onde estavam Nuno Júdice, Manuel Alegre e Pepetela, por exemplo - considerou que o texto de Murilo é "uma obra de fôlego, que refigura uma vasta erudição(...) combina narrativa histórica e arte poética, elaboração wagneriana e aura profética, de forma a prender o interesse da leitura por uma saga onde se conjugam a busca individual de raízes e o destino ameríndio".
Murilo de Carvalho rejubilou. "Que honra, que privilégio". Há poucos dias na "civilização", o autor desconhece datas de lançamento, pormenores. Frisa apenas que sorri quando pensa no valor do prémio: 100 mil euros. "É bom, mas o fulcral é divulgar a literatura brasileira, mais conhecida pelos livros de auto-ajuda e pelas obras de Paulo Coelho".
José Vicente, director do departamento de comunicação da Leya, explicou depois que 70 mil exemplares de O Rastro do Jaguar vão chegar às bancas de vários países de língua oficial portuguesa no início de 2009.
O Jaguar
Primeiro, o jornalista constatou uma lacuna. "Uma grande falha na literatura brasileira". Quase nenhuma obra aborda os dilemas, as tragédias, as guerras nas muitas nações indígenas do Brasil. De cada vez que saía em reportagem, a ideia reforçava-se. Era imperioso preencher esse espaço vazio da literatura. "Há tantos episódios desse povo tão massacrado por contar, pedaços de história, de vidas esquecidas". Pelo meio do processo de amadurecimento da trama, realizou alguns documentários sobre tribos indígenas. Impôs-se uma espécie de fado com uma pincelada tropical, com travo guarani, umas das principais línguas indígenas. Era urgente contar "a questão grave" que viveram e vivem os índios brasileiros. Muitos massacrados pelos colonizadores portugueses. O jornalista intensificou a pesquisa.
"A parte histórica do livro baseia-se nas viagens do botânico e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, que percorreu algumas tribos praticamente inacessíveis no início do século XIX".
Em duas linhas: antes de regressar a França, um general de Napoleão pede a um botânico para levar uma criança índia. O viajante francês recolhe uma no Estado do Rio Grande do Sul, leva-a para o Rio de Janeiro. "Só que o pequeno índio não chega a embarcar para França, e é aí que entra a ficção". Murilo ficciona as consequências e deambulações do índio na Europa. Relata um regresso ao Brasil. Pelo meio da narrativa, há abordagens à Guerra do Paraguai - que envolveu, no século XIX o Brasil, Uruguai e Argentina contra aquele país, que foi a principal guerra da América do Sul - e às guerra contra os índios no Rio Grande do Sul. E outras tantas viagens. "Foram quatro anos de trabalho, tive de ir a Portugal, Argentina, Uruguai, França... Tive de rodar muito por aí para conciliar a ficção com a parte histórica".
A páginas tantas, no meio das 600 que compõe a obra, surge a figura do Jaguar, esse ícone supremo do imaginário, da cosmogonia guarani. "O índio educado na Europa redescobre a sua alma indígena, vira líder, ídolo". Torna-se um chefe guerreiro. A voz que conduz a narrativa pertence a um jornalista português, o Pereira, homem que começa a desenhar memórias inspirado por vários riscos de cocaína.
Terra sem males
Na cosmogonia guarani, o grande objectivo dos índios é encontrar a Terra Sem Males. "É um pouco como o paraíso, a liberdade que todos procuramos". A ideia serve também de tapete para o epílogo do livro. Na entrevista com o P2, o autor abriu outro parágrafo. Lançou alertas, expôs um desejo: "Lamentavelmente, a questão indígena continua a ser das mais graves e mais preocupantes do Brasil. Espero que este livro contribua de alguma forma para atenuar tantas injustiças que ainda ocorrem em relação aos índios.".
Murilo António de Carvalho tem 60 anos, é jornalista desde os 18. "Nada me realiza mais que mergulhar nas profundezas deste imenso Brasil". É também historiador e antropólogo - mas autodidacta, frisa recorrentemente.
Numa dessas viagens pelo interior do país, deparou-se com uma frase estampada no pára-choques de um camião que chamou par lema de vida. "A felicidade não é um lugar de chegar, mas é um jeito de viajar". Apesar de pouco conhecido no Brasil enquanto escritor, não é estreante em prémios literários. "Em 1978, quando lancei um romance chamado Raízes da Morte venci o prémio literário mais importante no Brasil". Quatro anos depois, sempre a exercer jornalismo, lançou A Cara Engraçada do Medo. "Sim, vou escrevendo uma coisas, mas o que gosto mesmo de fazer é de viajar".
Numa síntese biográfica esquissada através de um jogo de palavras, Murilo considera George W. Bush "um arbusto", Lula da Silva, "excepcional". Diz que é pelas mulheres "que o homem aprender a cozinhar, a escrever". E avisa que é urgente viajar: "Como podemos querer mudar o mundo sem o conhecermos?".
wagneriana e aura profética, de forma a prender o interesse da leitura por uma saga onde se conjugam a busca individual de raízes e o destino ameríndio". Murilo de Carvalho rejubilou. "Que honra, que privilégio".Há poucos dias na "civilização", o autor desconhece datas de lançamento, pormenores. Frisa apenas que sorri quando pensa no valor do prémio: 100 mil euros. "É bom, mas o fulcral é divulgar a literatura brasileira, mais conhecida pelos livros de auto-ajuda e pelas obras de Paulo Coelho".
José Vicente, director do departamento de comunicação da Leya, explicou depois que 70 mil exemplares de "O rastro do jaguar" chegam às bancas de vários países de língua oficial portuguesa no início de 2009.
O Jaguar
Primeiro, o jornalista constatou uma lacuna. "Uma grande falha na literatura brasileira".Quase nenhuma obra aborda os dilemas, as tragédias, as guerras nas muitas