Há um novo livro que os faz falar

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Legenda com duas linhas alinhada a uma coluna alfredo cunha/arquivo

O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, podia ser sobre eles. Como a autora, e as personagens do livro, vieram de Angola na ponte aérea de 1975 ou pouco depois. Trinta e seis anos após a independência, que hoje se comemora, ler este livro foi, para alguns, um esforço, para outros, um alívio. José Nunes e Dina Silva, Ilda Mendes, Maria Adelina Amorim, Francisco e Maria Luísa Nóbrega têm vivências diferentes, mas sentimentos comuns. Como Rui, Lurdes, Glória e Mário e as outras personagens que povoam o quarto romance de Dulce Maria Cardoso, sabem o que é largar tudo, deixar a vida em suspenso. E, para eles, sublinham, não foi um retorno, nem sequer um regresso

Para trás deixaram

"as ruas para passear"

Quando o navio deixou o porto do Lobito, em direcção a Luanda, Dina Silva soube que nunca mais voltaria à terra que a tinha visto nascer. "A dor era muito grande", diz desse dia 30 de Outubro de 1975. Preferia pensar assim, fechar esse capítulo, pensar noutro. A mais triste sensação foi olhar uma última vez a bela Baía do Lobito e a Restinga, onde vivera muitos anos com os pais, a irmã e o irmão.

Na véspera da partida, o marido, José Nunes, tinha conseguido, entre milhares de pedidos, um lugar na última viagem do navio Niassa do Lobito para Luanda, antes do fim da ponte aérea, que terminava na data da independência: 11 de Novembro.

Traziam duas malas e dois saquitos de plástico, preparados à pressa. Para trás ficavam a mobília da casa alugada e "as ruas para passear". Por esses dias, em Angola, José Nunes sentira pela primeira vez que "estava a mais". A pressão para se juntar a um dos movimentos em guerra tornara-se perigosa. Era frequentemente intimidado. E não queria ser parte de nenhum conflito.

Tinha cumprido o serviço militar pela tropa portuguesa na guerra colonial, sempre longe dos combates e sem pensar muito bem sobre o seu significado. O mais importante para ele, nos tempos de juventude, eram os passeios e as caçadas no mato onde crescera, com os seis irmãos, na povoação de Sachitembo, próxima do posto administrativo do Sambo, a sul de Nova Lisboa (hoje cidade do Huambo) na província do Huambo. Como no Alentejo do pai, matavam o porco, faziam enchidos e queijo de Serpa. O pai, de Serpa, tinha ido para Angola com seis anos. A mãe, de Vila Nova de Gaia, chegou também em criança.

A palavra "retorno" não tem, por isso, qualquer sentido para ele. "Não retornei a coisa nenhuma. Eu sabia que um dia viria conhecer a terra dos meus pais." Não pensava que seria nestas circunstâncias.

Desde esse dia, Dina fala muito pouco de Angola. Mas ler o livro agora fê-la recordar formas de falar, expressões que deixou de usar, coisas sentidas à chegada a Portugal, como se reconhecesse, nos outros, os seus próprios sentimentos.

"Quando se chega a Portugal, chora-se ao terceiro dia", como acontece à família no livro, nota.

Além da dor da despedida do Lobito, o que mais custou a Dina foi a sensação de ser diferente e de não a verem como ela é, de sentir o rótulo de "retornada" colado a todos os que voltavam, acusados de "colonialistas, exploradores e de terem andado a matar pretos".

Tinha 23 anos. Com o marido, José, tinha o futuro pela frente em Angola. A festa do casamento, em Julho, tinha sido interrompida pelo tiroteio. E a casa era numa de duas torres, no centro do Lobito, onde também viviam generais e militares da UNITA. Da varanda, assistiram várias vezes a trocas de tiros.

Dias antes, um desses militares tinha vindo pedir cigarros, como habitualmente fazia e, mais uma vez, garantira que o movimento de Jonas Savimbi tinha tudo controlado, que os brancos estariam em segurança.

A família de Dina já tinha partido para Portugal. Ela e José queriam ficar. Mas, um dia, da varanda viram uma família de um desses generais da UNITA correr para um carro, com sacos e malas, e fugir. Não tinham notícias dos confrontos, mas este seria um sinal de que a guerra com armas pesadas estava perto. O MPLA já estava na Catumbela, a 20 quilómetros do Lobito.

Só mais tarde souberam que o irmão de Dina, de 14 anos, e um amigo tinham sido raptados, levados num carro e que lhes tinha sido dada uma arma. Quando pararam num posto da UNITA, o irmão de Dina foi reconhecido por um dos militares como o "filho do Rodrigues", que colhia simpatias. Os rapazes foram então libertados. O perigo era afinal maior do que José e Dina pensavam.

Depois da saída de Luanda, numa noite de um "calor doido", o choque para José Nunes foi grande, à chegada a Portugal. Nunca tinha sentido uma manhã tão escura e fria. Custou-lhe isso, como mais tarde lhe custou a dificuldade em arranjar emprego. Bateu a muitas portas de empresas com o irmão. Numa delas, chegaram a preencher um impresso. E marcou-o para sempre a reacção do funcionário, quando leu o que tinham escrito e de onde vinham. Mudou de atitude e comentou sem disfarçar: "Olha mais dois... Retornados era o que ele queria dizer." O irmão de José Nunes nunca se adaptou e foi para o Brasil. Muitos houve como ele.

Dina não pensa se pertence a Portugal. "Se pensasse, seria difícil. Iria mesmo achar que não pertenço." O pai contava que, sempre que podia, no Lobito, ia tocar os navios que vinham da sua terra. E a mãe queria voltar para Portugal.

Quando vinha a Portugal de férias com a mãe e o pai, funcionário da Companhia dos Caminhos de Ferro de Benguela, chocava-a ver as pessoas de classes desfavorecidas serem menos bem tratadas, da mesma maneira que em Angola a revoltava, desde criança, as injustiças contra os negros.

Num hospital de Benguela, onde as pessoas estavam separadas por raça, um funcionário disse que iria atender primeiro umas senhoras negras e quase perdeu o emprego por isso. Dina lembra-se, no mesmo hospital, dos contínuos que levavam pacotinhos de açúcar para comer. E que, mesmo assim, uma responsável do serviço defendia que os seus salários não deviam ser aumentados, porque do que recebiam ainda sobrava dinheiro para comprarem pão e marmelada para o lanche dos filhos na escola.

"Era revoltante", diz. "Havia a absoluta necessidade de um 25 de Abril. Alguma coisa que alterasse o que estava a acontecer em Portugal e nas colónias." Mas algo que permitisse ter concretizado os seus sonhos em Angola.

"Durante muitos anos, tive a sensação de ter uma mala atrás da porta para ir para outro lado. A pessoa sente-se desencaixada. Meti tudo numa gaveta [com as recordações de lá] e fechei-a." E isso facilitou-lhe a vida. "De outra maneira, teria dificuldade em me integrar. Teria de me ir embora daqui."

Deixar a casa e, sem saber, não voltar mais

A vida nunca voltou a ser o que era para Francisco Nóbrega - desde que em 1977 chegou a Portugal. Tinha 43 anos e vinha de Windhoek, na Namíbia, onde se instalou quando saiu do Sul de Angola, já depois de ter deixado Luanda, à pressa, em finais de 1974. No meio do azar, teve sorte. Não foi levado, como Mário, o pai de Rui - do livro O Retorno de Dulce Maria Cardoso - com uma arma apontada à cabeça por homens armados que batiam à porta, faziam perguntas e pediam cigarros, quando a guerra estoirou entre os três movimentos de libertação de Angola - MPLA, UNITA, FNLA - depois do 25 de Abril em Portugal.

Comoveu-se com o sofrimento da família do livro, já em Lisboa, à espera do pai. Uma espera que Rui, o narrador, não sabe se é em vão. E que ao mesmo tempo o transforma: "Depois de tudo o que nos aconteceu, não devíamos ter medo de nada." É Rui que o diz. Mas podia ser Francisco Nóbrega.

Em O Retorno, temia-se o próprio silêncio do bairro, nesses últimos dias, quando os vizinhos tinham deixado as suas casas e a família de Rui se preparava para partir.

A violência podia sempre entrar pelo portão, surgir ao fundo da rua. Como naquele dia em frente ao prédio onde antes Francisco Nóbrega vivia com Maria Luísa e os três filhos, Jaime, António e Ângelo: uma mulher branca trancada num carro sozinha com um grupo de homens à sua volta, de punhos fechados e gestos violentos. Francisco Nóbrega aproximou-se, disse-lhes para se afastarem. O carro arrancou.

Esse episódio era mais um sinal de que a vida não estava para ser vivida ali. Os filhos já estavam com a avó em Sá da Bandeira (hoje Lubango), desde que tinham começado os tiroteios em Luanda e se ouviam "histórias terríveis".

Saiu com a mulher para sul, a caminho do Lubango, província da Huíla, de noite, e percorreu de carro mais de mil quilómetros sem parar, com armas de caça onde costumava estar o painel de lado e um revólver .22 junto ao assento. Entre as "histórias terríveis" que ouvira, havia relatos de assaltos e violações nas estradas.

Francisco Nóbrega nunca foi raptado. Mas podia ter sido. Já no Lubango, no dia em que soube que andavam à sua procura, deixou Angola. Não esperou mais.

A sorte foi não estar na casa que tinha deixado em Luanda, quando lhe bateram à porta. Nem na fazenda da família, onde crescera, em Sá da Bandeira, quando lá foram perguntar por ele. "Eram uns tipos negros de farda verde."

Nunca soube o que queriam dele. Talvez o procurassem por ter estado inscrito na UNITA. Os movimentos envolvidos na luta pelo poder procuravam recrutar homens para esta nova guerra.

Francisco Nóbrega deixara a UNITA desde que ouvira o líder do movimento, Jonas Savimbi, num comício, dizer uma coisa em umbundu e outra, exactamente o contrário, em português.

Nunca sentiu medo, insiste, desde o que vira acontecer em 1961, quando começou a luta de libertação em Angola. "Perdi o medo no meio do terrorismo." Nessa altura estava no Uíge, Norte de Angola, onde vivia a família de Luísa e onde a UPA (antiga FNLA) atacava civis indefesos, brancos e também negros que trabalhavam nas plantações de café. "Era diabólico. Se eu tivesse medo, tinha saído nessa altura."

Aquela era a sua terra - onde nascera, depois de aí também terem nascido os pais e os avós. Fala umbundu. E nunca se questionou: é angolano. Nunca foi outra coisa. E a ideia de pertencer a Portugal não existe. É uma sensação que não conhece, "completamente ausente".

A memória é difusa para as datas ou outras pequenas coisas. São as grandes que falam. Como isto: o vazio que nunca deixou de sentir desde que abandonou a sua casa no Bairro do Prenda, em Luanda. Ficou amputado de algo, depois de ter conhecido a plenitude. Fechou a porta de casa, com tudo lá dentro, como se fosse ali ao virar da esquina e voltasse já.

O destino foi afinal Windhoek, Namíbia, então Sudoeste africano, país administrado pela África do Sul, até à independência, em 1988. Mas de lá a família acabou por sair em 1977, cansada de guerras e para impedir o filho mais velho, então com 18 anos, de ser recrutado para o conflito que opunha o movimento nacionalista pela independência ao Governo sul-africano do apartheid.

Luísa passou a viagem a chorar. O marido chorou "por dentro". "É esta mania que um homem não chora", diz, agora, 36 anos depois, com a expressão turva, sentado no seu cadeirão do apartamento onde vive em Massamá.

Os olhos brilham, mas uma ou duas vezes apenas em duas horas: quando fala das caçadas e das pescarias. "Uma vida de sonho? Era, mas a maior parte das pessoas não era rica, vivia do dinheiro dos empregos que tinha." Maria Luísa era funcionária do Banco Borges & Irmão. Francisco tinha uma empresa de cartografia com trabalhos em todos os cantos de Angola. Perdeu tudo. Recomeçou do zero.

O choque na aldeia

e a ida para o hotel

Ilda Mendes nasceu em Angola. De pai branco e mãe mestiça. Nasceu perto de Nova Lisboa, hoje cidade do Huambo. Cresceu com espaço e liberdade. Com a família, faziam piqueniques que demoravam dias. Levavam tachos, panelas, cafeteiras, faziam campismo, caçavam para comer. Na cidade, para onde foi quando se casou, iam ao cinema, aos bailes, aos cafés.

Nunca pensou muito nisso: era angolana. Hoje, a viver em Portugal desde que regressou na ponte aérea de 1975, quando tinha 31 anos, sente que é também um pouco portuguesa. "Já me sinto pertencer a isto", diz numa entrevista em que prefere não ser fotografada.

"Mas ficou aquela nostalgia." Do cheiro da terra, da fruta do mato - os loengos, as lombulas -, do esparregado de folha de mandioca - a suanga - ou feito com folha de abóbora - o lombim. Dos tons do pôr do sol.

Às vezes, basta uma música, o som da chuva, "o próprio cair da chuva, se for forte", para voltar àquele tempo. Sente saudade dos fins de tarde em que as pessoas se juntavam nas varandas ou na rua a conversar. Custou-lhe a barreira que encontrou entre as pessoas em Portugal. "Mesmo nos prédios cada um vive para si."

Quando chegou e foi recebida pela família do marido numa aldeia do Alto Douro, sentiu um choque. "O ambiente era triste, as pessoas muito fechadas, reparavam em tudo, nas roupas que vestíamos, no que fazíamos."

Pegou na trouxa e nos dois filhos pequenos e veio para Lisboa, directa ao Instituto de Apoio aos Retornados Nacionais (IARN). Conseguiu um quarto no sétimo andar do mesmo hotel onde estavam os pais, o Praiamar em Carcavelos, onde ficou até ser colocada como professora numa escola primária. Nunca tinha estado num hotel assim.

Teve sorte. "Tínhamos um tecto, camas para descansar, água quente e alimentação." Na sala de convívio, partilhavam-se vivências. "Os de Malanje. Os de Serpa Pinto, os de Sá da Bandeira... Cada um contava as suas histórias."

Viviam no hotel como numa bolha protectora. Fora dela, tanto podiam cruzar-se com "pessoas extraordinárias", diz, como com pessoas que os culpavam de tudo. Uma das coisas que mais a magoaram foi "o desprezo" e por vezes "a agressividade" com que foram tratados. Para a filha de sete anos foi difícil na escola sentar-se numa fila, só de filhos de retornados, separada do resto da sala.

Para Ilda Mendes, o mais doloroso foi a tristeza dos pais. "Viveram o resto da vida com a nostalgia de não terem outra vez uma casa deles."

A mãe levantava-se e deitava-se a chorar. Tinha umas saudades infinitas da terra dela. Nunca se adaptou. Lá, tinha uma vida livre na fazenda do Cambuio, que agora é um aquartelamento militar. O pai sentia uma grande nostalgia. Tinha ido para Angola num navio cargueiro com 18 anos. Tinha 49 anos de Angola quando regressou.

Passaram dias e dias a encaixotar tudo com tabuinhas, como a família de Rui, no livro de Dulce Maria Cardoso. "O fogão, a geleira, as loiças. Para quê?" Despacharam para o Lobito, mas nada chegou.

O pai, que produzia leite e vendia para o Huambo, ia sendo morto, quando encontrou um militar da UNITA na estrada da Granja, naquela cidade. Fez o "V" da vitória, mas enganou-se. Esse era o sinal do MPLA. O da UNITA era o indicador e o da FNLA o polegar. Os militares puxaram da metralhadora, mas ele conseguiu fugir a tempo.

O que mais custou a Ilda Mendes, quando a violência dos combates impôs a vinda para Portugal de toda a família, foi a despedida das pessoas das povoações à volta. "Todos nos conheciam", conta. "Eu pensava que voltava, mas ao mesmo tempo pressenti que ia ser difícil."

Veio com o marido, os dois filhos, os pais, os irmãos e sobrinhos. Foram chegando. Setembro de 1975. Chegaram à Portela de manhã ao amanhecer. "Foi aquele impacto. Tudo era diferente. O próprio amanhecer era diferente."

E milhares de pessoas à espera. À espera de sítio para ficar, de um transporte, de entregar papéis para um emprego, de um familiar, de alguém que desse um sentido ao que lhes estava a acontecer. A espera era como uma defesa, antes de enfrentarem o desconhecido.

Agora, sentiu alívio ao ler O Retorno. Pensou nas coisas de outra forma. Acompanhar a história de Rui, da mãe, da irmã, e do pai ausente, deu-lhe talvez um espaço que precisava para aceitar as coisas.

"Eu era pela independência de Angola. Mas uma independência para todos - negros, brancos, mestiços - e sem guerra."

Ilda Mendes já era então professora da primária. Lembra-se dos ódios que também havia contra os brancos, dos perigos, dos dias em "que choviam balas". E de coisas terríveis que aconteciam a pessoas próximas, como a um amigo, que um dia saiu em viagem de trabalho. Os seus pertences chegaram. Ele nunca mais apareceu.

A certeza de uma Angola independente

Os passeios ao aeroporto de Luanda eram um programa de família como outro qualquer. Como o pai de Rui, no livro O Retorno, o pai de Maria Adelina Amorim levava os filhos ao 4 de Fevereiro. Do terraço, viam os aviões a aterrar e a descolar. "Era um aeroporto lindíssimo, com jardins à volta, e todo aberto", conta Adelina. Naquele tempo, "não era preciso muito para se ser feliz".

Lembra-se da primeira vez que apareceu o Jumbo e o foram ver. Ou da visita que o Concorde fez a Luanda. Como em O Retorno, havia ainda as idas ao café-esplanada Restinga, ao Baleizão, onde comiam gelados, ao Restaurante Vilela, e aos cinemas Avis - hoje Karl Marx - e Miramar lá no alto da cidade. "Lembro-me de estar frente ao ecrã e ao mesmo tempo ver os navios a entrar na Baía de Luanda."

Um dia, toda a família se meteu no carro, como centenas de outras famílias, com destino ao aeroporto. Mas desta vez levavam malas - uma por pessoa. E, nesse dia, ao volante estava o senhor que lhes comprara o carro. Ao fim de várias tentativas, conseguiram um voo para Lisboa.

Adelina, então com 17 anos, lembra-se de a família ser deixada ali com as malas e de ver afastar-se o carro do pai que nunca mais seria deles. Mais tarde, pensou na "dor que deve ter sido para os pais viverem aquilo".

Nesse mês de Setembro de 1975, já não podiam sair da casa onde moravam no Bairro de São Paulo e, de dentro, nem podiam ligar as luzes para não serem vistos. O bairro, que antes era como "uma casa grande" onde toda a gente vivia do convívio e da partilha, transformara-se num campo de batalha.

Não longe do seu quintal estavam instaladas, desde os últimos meses de 1974, as sedes de cada um dos movimentos em guerra - MPLA, UNITA, FNLA e Revolta Activa (uma dissidência do MPLA).

O conflito armado começara por tomar conta dos musseques. Eram violentos e ouviam-se de longe. Mas na cidade, desde muito cedo, viam-se camionetas de caixa aberta percorrer as ruas com cadáveres a caminho da morgue. Das províncias chegavam pessoas, aos milhares, fugidas da guerra. Eram acolhidas em escolas e liceus, onde as aulas estavam interrompidas. As lojas fecharam. A vida parou e piorou até os primeiros meses de 1975.

Os Acordos de Alvor, de Janeiro, não foram cumpridos pelos movimentos e generalizou-se a ideia de que o almirante Rosa Coutinho, que governava Angola (na qualidade de presidente da Junta Governativa de Angola) em substituição do último governador, general Silvério Marques, estava a favorecer o MPLA.

No dia 9 de Julho, a guerra entrou pelas ruas da cidade. A data coincidiu com o início do último ataque lançado pelo MPLA aos outros movimentos. Os combates intensificaram-se a partir daí.

Nessa altura, já milhares de famílias, vindas de todo o país, se concentravam à espera de um avião que as levaria de Luanda: junto ao aeroporto, nos espaços de escolas ou de quartéis. No seu liceu, Maria Adelina cuidava dos refugiados. Era activista do movimento estudantil, de uma associação que mais tarde se colou ao MPLA. Não queria deixar Angola. O plano, não concretizado, era acompanhar os pais a Lisboa, mas regressar ainda a tempo de comemorar em Luanda a independência, dia 11 de Novembro.

Nesse Setembro, os vizinhos e amigos de Maria Adelina Amorim foram saindo. Era o momento, como o descrito no livro, em que as memórias começam a construir-se ainda antes da partida . "Nos últimos dias, o Rui e a família já olham para as coisas de maneira diferente, já estão a despedir-se dos objectos. O processo de construção da memória ainda se faz em Luanda", nota Maria Adelina sobre o livro. No seu caso, também.

Este é também o momento em que os brancos se sentem cada vez mais indefesos. Pela lei, não podiam ter armas nem para se defender. E a tropa portuguesa não estava ali para proteger as comunidades brancas.

Um ano antes, nos musseques, os pequenos comerciantes brancos tinham sido alvo dos primeiros assaltos e, nalguns casos, de ataques. Em Junho de 1974, um taxista branco fora linchado depois de atropelar um jovem negro num musseque. Este tipo de incidentes, por vezes, motivava vinganças. E havia o receio de que se podiam generalizar.

O que de mais marcante Maria Adelina Amorim guarda na memória não é essa clivagem entre populações, mas a violência entre os movimentos angolanos e a fuga aos combates das pessoas "com todas as suas mágoas e dor". Sobretudo os mais velhos.

Para ela e os dois irmãos, era diferente. E mesmo a ida para o Hotel do Monte Estoril e depois para o Altis em Lisboa, quando chegaram na ponte aérea com os pais, era uma alegria. Faziam, como no livro, a "festa das pessoas tristes".

"Nós éramos a geração do futuro. A geração deles acabava ali. Tinham feito toda a sua vida em Angola. Deve ter sido muito doloroso para essas pessoas ficarem sem o seu espaço, a sua casa, os vizinhos, os amigos, perderem tudo e virem para um país que não era de retorno e completamente diferente."

De semelhante apenas aquelas coisas que eram marcas da identidade do império português, como a língua portuguesa ou a religião católica.

Mas, quando chegavam a Portugal, notava-se a sua maneira de falar alto e as cores vivas que vestiam. "Fomos ensinados a entender Angola como parte do império português e a reconhecer os sinais da portugalidade em Angola. Mas ao mesmo tempo sempre soubemos que Angola se tornaria independente."

O pai adorava Angola, sentia que era a sua terra. Tinha ido, nos anos 50, por escolha e não por necessidade, talvez por sentir que "Portugal era pequeno de mais para ele". Criou várias empresas, de camionagem, construção civil.

E, quando partiu - ao contrário de querer deitar fogo à casa para que não fosse ocupada, como muitas pessoas diziam que fariam -, estacionou os camiões e os carros das empresas frente à casa e pôs os documentos dentro de cada um deles e a chave na ignição.

A mãe, que se juntou ao pai em Luanda, nunca foi tão feliz como o marido e os filhos em Angola. Maria Adelina lembra-se de a ver chorar quando o pai, em 1973, ganhou a lotaria e reinvestiu todo o dinheiro em Angola. Ela queria pegar nas coisas e vir-se embora. Eles já tinham visto 1961 - e a violência dos ataques no início da luta armada. "A minha mãe ficou com essa marca toda a vida. E, desde cedo, teve a percepção de que isto ia acontecer."

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