Há "licença para matar, para torturar"
Generais angolanos acusados de cumplicidade com assassinatos, torturas e outros abusos cometidos na região do Cuango. "Impunidade total" e "promiscuidade entre poder político-militar e o negócio dos diamantes" denunciada em livro do jornalista Rafael Marques, que desafia o Presidente José Eduardo dos Santos a pronunciar-se sobre os casos.
Os soldados disseram ao soba Ngana Katende que ordenasse a retirada imediata dos garimpeiros, sob pena de morte. Mas Pereira, que já tinha recolhido cascalho, queria lavá-lo antes de interromper o trabalho. Os militares arrancaram os paus que reforçavam a cobertura do buraco escavado em forma de túnel, fizeram-no desabar e foram-se embora. Lá dentro estavam 45 garimpeiros.
"As pessoas não tinham coragem de retirar os cadáveres", contou Linda Moisés da Rosa, mãe de Pereira, um dos soterrados. "Fomos à polícia. Estes mandaram-nos ir ter com as FAA [Forças Armadas Angolanas]. Os militares correram connosco, com as armas, na unidade ao lado do Hospital de Cafunfo."
O que sucedeu em Cavuba, na fronteira entre a comuna do Luremo, 30 quilómetros a norte de Cafunfo, e o município de Xá-Muteba naquele 5 de Dezembro de 2009, foi registado três meses depois por Rafael Marques, jornalista angolano, numa visita que fez à região do Cuango acompanhado por um editor do Wall Street Journal. E é agora contado num livro, lançado em Lisboa na quarta-feira passada.
Quando Rafael a ouviu, já a camponesa Linda tinha perdido outro filho, que se dedicava também ele à mineração artesanal. Fora a 5 de Fevereiro de 2010 que, de acordo com testemunhas oculares, guardas da empresa de segurança Teleservice lhe mataram Kito, "com um golpe de catana na nuca, outro na testa e um terceiro no rosto, do lado direito, e atiraram o corpo ao rio Cuango". Qual o crime para tamanho castigo? Ter dito que não tinha dinheiro para pagar o acesso à mina e insistido em continuar a lavar cascalho para depois fazer o pagamento.
Ambos os casos foram denunciados: às chefias militares, à direcção-geral da empresa de segurança - que tem entre os sócios generais e presta também serviços a multinacionais como a BP, a Chevron, a De Beers ou a ExxonMobil. Consequências, nenhumas. Em Abril do ano passado, o Semanário Angolense revelou o depoimento de Linda Moisés da Rosa sobre o caso dos soterrados. Em Junho, o diário norte-americano também se referiu a ele. Continuou a não haver reacção. O jornalista Michael Allen, do Wall Street Journal, obteve do secretário de Estado dos Direitos Humanos, general Bento Bembe, um comentário: "Sei que muitos desses casos acontecem, e sei de muitos outros sobre os quais ainda não ouviu falar."
O Estado dentro do Estado que as zonas de diamantes sempre foram deu lugar a um "estado de terror", no dizer de Rafael Marques, que anteontem lançou Diamantes de Sangue - Corrupção e Tortura em Angola, uma edição da Tinta da China. O seu trabalho incide sobre abusos e torturas cometidos pelas Forças Armadas e seguranças da Teleservice nas zonas diamantíferas da Lunda-Norte exploradas pela Sociedade Mineira do Cuango, uma empresa que tem entre os accionistas a Lumanhe, de que são sócios o general Hélder Vieira Dias, "Kopelipa", ministro de Estado e chefe da Casa Militar do Presidente da República, o inspector-geral do Estado-Maior General do Exército, general Carlos Hendrick da Silva, e outros generais. São essas ligações que levam o jornalista a denunciar a "enorme promiscuidade entre o poder político-militar e o negócio dos diamantes" em Angola.
O livro abrange um período de ano e meio, de Junho de 2009 a Março de 2011, revela inúmeros crimes cometidos sobre garimpeiros artesanais, mantidos em situação de ilegalidade, por isso mais sujeitos a abusos. "Não são casos isolados. É uma política institucional, sancionada pelos dirigentes", disse, em entrevista ao PÚBLICO, o autor, que se tem empenhado na denúncia e divulgação de esquemas de corrupção em Angola.
Violência estrutural
Assassinatos, tortura, destruição de agricultura de subsistência para expropriação de terras para o garimpo, restrições à circulação de pessoas e bens são exemplos da violência estrutural denunciada por Rafael Marques. "Há comunidades que só podem sair das aldeias atravessando o rio, em zona de grande corrente, com uma bóia amarrada a uma corda de um extremo ao outro, porque a empresa só autoriza o soba a circular pela estrada."Militares destacados para combater a prospecção ilegal associam-se regularmente aos que desenvolvem essa actividade, o que, denuncia, "elimina qualquer distinção entre a lei que permite a actividade de garimpo" e "os actos considerados ilegais dos garimpeiros, a repressão e as práticas ilegais do Exército".
O jornalista de investigação, que acompanha as zonas diamantíferas desde 1992, e já escreveu relatórios sobre abusos nesta indústria em 2005, 2006 e 2008, considera que há um agravamento da situação. "Só o ano passado houve o fuzilamento de mais de 20 garimpeiros." A conivência das autoridades locais e do Governo são a explicação do jornalista para a "impunidade total" que confere "licença para matar, licença para torturar".
Há "um ataque sistemático à população civil", garante Rafael Marques, que se refere ao quadro que encontrou como uma situação de "potenciais crimes contra a humanidade", muitos cometidos pelo Exército, que apresenta como "força acessória das empresas diamantíferas". Dos abusos só isenta a Polícia Nacional, que desde 2005, após o seu primeiro relatório, "tomou diligências extensivas para proibir que os seus efectivos se engajassem em actos de tortura".
Criatividade na tortura
As gemas são a segunda maior exportação angolana, a seguir ao petróleo. Os dados oficiais indicam que em 2009 o país produziu 13.827 milhões de quilates de diamantes avaliados em 1179 mil milhões de dólares. Que benefício retira a população local dessa riqueza, que coloca Angola como o quarto produtor mundial de diamantes? "Morte, miséria e obscurantismo é o que aquela população recebe", respondeu sem hesitação o autor, que revela já ter havido motins e alerta para o risco de agravamento da situação.No livro, Rafael Marques, premiado internacionalmente pela sua acção em defesa dos direitos humanos, refere-se a "criatividade nos actos diários de tortura". Ao PÚBLICO explicitou que os abusos incluem o uso de catanas para tortura nas nádegas, nas plantas dos pés, nas mãos. "Houve um caso até em que os guardas decidiram novas formas de tortura: obrigaram os garimpeiros a colocar os pés sob as rodas das suas carrinhas para que não possam andar mais." Outros, garante, são obrigados a saltar de carros em alta velocidade, a sodomizar-se, a lutar entre si. Tanto o Exército como a Teleservice usam os garimpeiros para extraírem diamantes para os chefes.
O que leva um regime a violar as suas leis e a reprimir o seu povo? "A pergunta deve ser respondida pelo MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola, partido do Governo] sem tergiversações e pelo próprio Presidente, que deve pronunciar-se sobre estes casos", disse.
Isabel dos Santos, filha do chefe de Estado, é referenciada como accionista da Angola Selling Corporation, uma empresa de comercialização de diamantes, com uma posição que transferiu em 2004 para a mãe. O envolvimento da primogénita de José Eduardo dos Santos no negócios dos diamantes é considerado pelo jornalista como resultado de um "acto de nepotismo" que seria suficiente para um "processo de destituição do Presidente, por abuso de poder, por facilitar o enriquecimento ilícito da filha".
Dois pesos, duas medidas
A violação dos direitos humanos na exploração diamantífera levou à adopção de sanções contra o Zimbabwe em 2009. Mas em Angola isso não acontece. "O Ocidente decidiu que era tempo de [o Presidente, Robert] Mugabe se ir embora. No caso de Angola há uma grande protecção internacional aos abusos cometidos pelo regime", justifica o jornalista, que observa a existência de dois pesos e duas medidas e de parcialidade na utilização do conceito de "diamantes de sangue". A noção foi cunhada em 2000, no âmbito do Processo de Kimberley - uma iniciativa de governos e organizações não-governamentais, com a bênção das Nações Unidas, e de que o executivo de Luanda foi fundador, concebida para estancar o negócio de diamantes por movimentos guerrilheiros. Kimberley dá também aos executivos competência para certificar que as suas exportações são oriundas de zonas "livres de conflito".Com o fim da guerra em 2002, relativamente a Angola "assumiu-se implicitamente que os diamantes de sangue se extinguiram a par do movimento rebelde" e o Governo "viu-se legitimado" e "livre de quaisquer pressões sobre os abusos institucionais contra os direitos humanos" nas zonas diamantíferas.
O livro Diamantes de Sangue é assim também uma acusação à comunidade internacional. "Não teria sido possível cometer esses crimes todos sem apoio internacional", diz Rafael Marques, para quem o Processo de Kimberley e as Nações Unidas devem ser responsabilizadas "moralmente e politicamente" pelo que se está a passar nas Lundas.