Guerreiros num cocktail explosivo
É a maior provocação de Berlim: o filme 300, de Zack Snyder, é um exercício de estilo apontado ao coração do liberalismo bem-pensante e ninguém vai ficar indiferente a ele
a Num festival que se tem pautado desde sempre pela sua correcção política, 300 faz figura de sabotagem infiltrada. O novo filme do americano Zack Snyder (autor de O Renascer dos Mortos, a excelente remake de Zombie de George Romero), exibido ontem fora de concurso, é um exercício de terrorismo artístico-subversivo, combinando um elogio totalitarista das virtudes masculinas e marciais, uma estética de vídeo-jogo hiper-real/digital e um idealismo liberal e libertário num cocktail explosivo determinado a criar polémica.É um petardo despoletado em plena Berlinale e, se tudo correr como a Warner espera, será um dos filmes mais falados do ano - o que ajudaria imenso a vender um projecto cujo único nome de peso é Frank Miller, um dos revolucionários da BD americana na década de 1980 (300 adapta a sua novela gráfica sobre o desafio dos espartanos aos persas invasores na antiguidade greco-romana).
Miller não é o único trunfo do filme de Snyder, que segue as pisadas de Sky Captain e o Mundo do Amanhã, de Kerry Conran, e de Sin City - A Cidade do Pecado, de Robert Rodriguez e Frank Miller, na construção quase inteiramente digital do seu universo (actores reais sobrepostos a cenários virtuais, fotografia cromaticamente tratada). O resultado visual é a um tempo deslumbrante e chocante, cruzando um hiper-realismo paredes-meias com as artes plásticas (e Snyder estudou Belas-Artes) com o filme gore na violência sanguinolenta e estilizada dos combates.
Mas é precisamente isso que interessa ao realizador americano neste objecto inclassificável: pegar num filme de género (épico histórico com romanos) e usá-lo como um ponto de partida para um exercício estético e artístico sem por isso perder o norte ao coeficiente de entretenimento de género (há pontos de contacto com a fantasia, o filme de terror, o filme de guerra).
O que faz 300 disparar para outras dimensões é a ousadia do conteúdo. Os espartanos erguem armas em defesa da liberdade contra o todo-poderoso exército persa em busca de ampliar o seu império. Mas os combatentes pelos ideais democráticos contra um império corrupto são um povo "ariano" de perfeito corpo musculado e coragem sobre-humana, criado para a arte da guerra, exaltando as nobres virtudes marciais da honra, do respeito e da glória (é perfeitamente legítimo pensar nos Deuses do Estádio de Leni Riefenstahl, cuja veneração do ideal de beleza da antiguidade clássica foi completamente apropriada por Snyder).
Escusado será dizer que 300 está a brincar com o fogo - com plena consciência que o está a fazer em estética de vídeo-jogo e, no processo, a provar que os extremos opostos se tocam, que entre o totalitarismo absoluto e a democracia vai só um pequeno passo (faz pensar naquela frase de Natalie Portman no Episódio III de Star Wars, "assim a República se torna em Império").
Snyder confirma a mão segura e o olhar inspirado de cineasta, embora substitua a angústia visceral e a sátira gore de O Renascer dos Mortos por quadros de combate sangrento esteticamente trabalhados, demasiado próximos do vídeo-jogo ou do bullet time popularizado por Matrix. Mas o que interessa mesmo em 300 é esse excesso, essa sensação de estarmos a assistir a um cineasta talentoso a correr riscos. Goste-se ou odeie-se - e apostamos que os campos vão ficar divididos quando o filme estrear na Europa em Abril - 300 não deixa ninguém indiferente.