Eleições amanhã
Os gays são uma doença, uma infecção, coisa do Diabo - como o aborto, os contraceptivos, os ateus, as feministas. Tudo isto não é apenas o que se diz na Polónia. É a via oficial dos irmãos Kaczynski, que nas eleições de amanhã jogam o poder. O P2 falou para Varsóvia, Gdansk, e Poznan sobre
o mal estar polaco. Por Alexandra Lucas Coelho
a Robert não namora em público. É estatisticamente perigoso. 17,5 por cento de pessoas como ele foram agredidas nos últimos dois anos. "Devo fingir que sou heterossexual. Não posso conceber ir de mão dada com o meu namorado e abraçá-lo na rua." Esta rua não fica em Cuba, num rancho do Texas ou numa aldeia da Europa. Robert Biedrón, 31 anos, doutorando em Ciência Política, vive numa capital da União Europeia, Varsóvia. "Não verá gays abertamente na Polónia, escondem-se", diz ao P2, por telefone. "As pessoas têm muito medo."
Como presidente da Campanha Contra a Homofobia - que publicou recentemente o relatório Situação das pessoas bissexuais e homossexuais na Polónia -, Robert tornou-se um símbolo do mal-estar polaco.
Desde que subiram ao poder, em 2005, os gémeos Lech e Jaroslaw Kaczynski, presidente e primeiro-ministro, têm tentado impor um país em que vários milhões de cidadãos não cabem. Mudaram a imagem da Polónia a um ponto constrangedor para a Europa. Na Polónia são amados e detestados. Amanhã há eleições legislativas e para quem os detesta é o próprio futuro da democracia que está em jogo. Robert só espera que as sondagens estejam certas e os Kaczynski percam.
No relatório da Campanha Contra a Homofobia, um terço dos mil inquiridos diz ter sido discriminado no trabalho, na escola, em serviços. Dos 17,5 por cento sujeitos a violência física, a grande maioria não se queixou à polícia.
Isto, desde que os gémeos foram eleitos e se criou um clima favorável ao que o diário britânico The Times - insuspeito de esquerdismo - descreveu como agenda "anti-secular, anti-contracepção, anti-homossexual, anti-prostituição, anti-Alemanha, anti-Rússia e acima de tudo anti-ex-comunistas".
Quanto a costumes, primeiro foi extinto o gabinete para a igualdade entre homens e mulheres. E a partir daí os episódios sucederam-se. O ministério da Educação anunciou sanções para os professores que "promovessem" a homossexualidade - por exemplo, dizer: "Sou gay."
Numa visita à Irlanda o primeiro-ministro Lech Kaczynski declarou que a raça humana "desapareceria se a homossexualidade fosse livremente promovida". O jornal do partido dos gémeos, Lei e Justiça, escreveu que os homossexuais tentam infectar os outros, e são "animais e enviados do Diabo".
Um deputado disse que a homossexualidade era uma doença: "A solução é ajudar aqueles que sofrem e providenciar-lhes a cura." Outro deputado lançou um grito de alma: "Lésbicas e gays hoje, zoófilos amanhã... e o dia depois de amanhã? Isto é liberdade e democracia? Isto é a sifilização! O mais eminente dos polacos [João Paulo II] está a olhar-nos desde a casa do Senhor. Para onde vais, nação polaca?"
E Maciej Giertych, líder da Liga das Famílias Polacas, depois de descrever a homossexualidade como "biologicamente inútil" e "reversível", desde que exista "o desejo de ser heterossexual e a motivação espiritual", alertou: "A Europa é baseada na cultura grega, na lei romana e nos valores cristãos. Se abandona estes valores e introduz o aborto, o casamento entre homossexuais, a adopção por homossexuais, caminha na direcção da catástrofe. Sem a religião, sem a família, sem as pessoas que protegem esses valores na Europa Ocidental, seremos substituídos por muçulmanos."
Winnie the Pooh gay
No delírio da caricatura, a porta-voz dos direitos das crianças quis uma investigação sobre as tendências do teletubbie Tinky Winky, que usa malinha de mão e é violeta. O debate alastrou a uma rádio onde os ouvintes votaram os desenhos infantis mais suspeitos. Houve alertas quanto a Winnie the Pooh por só ter amigos homens.
Robert Biedrón conta ainda ao P2 o caso daquele gay polaco que foi a uma consulta. "O médico percebeu que ele era gay e mandou-o para um veterinário. Isto é a Polónia. Estamos a tentar sobreviver nesta nova era totalitária, que destrói a democracia que começámos a construir em 1989. Aproximámo-nos da Europa e agora estamos a caminho da Bielorrússia. Debates como a pena de morte, que a Europa abandonou há muito, estão na mesa dos gémeos. O aborto é um problema muito sério. As mulheres são discriminadas e os gays odiados. Tornámo-nos um símbolo de como estão a ser tratadas as minorias, num país 95 por cento católico. Vêem-nos como um perigo para a sociedade."
Estes preconceitos estão no tecido da sociedade polaca, mas tornaram-se lei com os gémeos, nota Biedrón. "Há anos, as pessoas odiavam-nos mas não o admitiam, não nos espancavam. Agora tornou-se a tese oficial. Fala-se na cura para a homossexualidade com dinheiros públicos. E as pessoas pensam que se o Presidente nos chama pervertidos e a polícia nos bate em manifestações então qualquer pessoa é livre de nos bater."
O intelectual Adam Michnik, referência da geração que lutou contra o comunismo, escreveu há dias na Gazeta Wiborcza: "A vida da minha geração foi moldada pelo pedido memorável de João Paulo II, "Não tenham medo!". Hoje, de qualquer conferência de imprensa [do partido dos gémeos] ouvimos: "Medo! Medo!"." E o "medo é acompanhado por um sentimento de nojo".
Impedida de abortar
Alicja Tysiac é outro símbolo do mal-estar. Em 2000 engravidou do seu terceiro filho. Vários médicos disseram-lhe que a sua miopia ia piorar. Quis fazer um aborto enquadrado na lei - " perigo para a mãe" - mas não conseguiu. O filho nasceu e Alicja perdeu visão ao ponto de estar em risco de cegar. Recentemente, o Tribunal Europeu de Direitos do Homem deu-lhe razão e uma indemnização de 25 mil euros, considerando que a Polónia não tem um quadro legal eficaz que permita às mulheres abortarem por razões médicas.
Entretanto, por baixo dos panos, e mediante subornos, jovens executivas abortam, conta ao telefone Patrycja Przybylowicz, 29 anos. "Se queres fazer, vais e pagas, mas não falas disso. Conheço gente que fez. Aqui, tudo o que queres, pagas e consegues. Se eu engravidasse, encontraria um médico que o fizesse, por algum dinheiro."
Gerente de uma companhia de importação, em Poznan, no centro da Polónia, Patrycja admite que o aborto é um problema mal resolvido pelos gémeos, tal como a violência sobre os gays e "a história da religião ser dominante". Mas para ela, executiva, solteira, não-religiosa, pós-comunista, são problemas menores.
"Não sinto que a democracia esteja em perigo. Acredito que os gémeos estão a limpar tudo na política, a gente do tempo comunista que fazia o que queria." E devem continuar. "Vou votar neles. Mas não o posso dizer alto se não os meus amigos matam-me! A sociedade está muito dividida. Os meus amigos estão todos contra eles, acham que eles estão a fazer da Polónia um circo."
Em Varsóvia, o cientista político Aleksander Smolar concorda que "o efeito das questões sociais e morais no voto é muito limitado". "Há um consenso nacional que tem a ver com a Igreja. Só as franjas o contestam."
Presidente da Fundação Stefan Batory, que tem como objectivo a promoção da democracia na Polónia, este analista de 67 anos acha que os gémeos foram eficazes em problemas a que as pessoas dão mais importância, como o desemprego ou a capacidade económica das famílias. O alcance do que fizeram "é restrito" mas criou boa impressão, diz.
Entretanto, está a democracia em perigo? "Não e sim. Não no sentido em que não vejo perigo para eleições livres, ou risco de um golpe autoritório. O verdadeiro perigo é o enfraquecimento da democracia, através de ataques às suas instituições, o Tribunal Constitucional, a independência do Banco Central, da rádio e televisão públicas. Tentam alargar o domínio do poder executivo. E têm tido sucesso. Liquidaram a independência dos funcionários públicos, cujas lideranças são agora por nomeação política. Politizaram os gabinetes."
E, "numa sociedade muito homogeneizada, com poucos emigrantes", o discurso católico, conservador, rende-lhes votos. "É por razões puramente oportunistas, porque querem controlar todo o espaço à direita."
Wojcieh Charchalis, 37 anos, tradutor de Saramago, Lobo Antunes e Pessoa, viveu anos em Portugal e voltou à Polónia justamente quando os gémeos foram eleitos.
"Sem uma garrafa de vodka é difícil falar do assunto por ser tão difícil", começa por dizer, em português, a partir de Gdansk, no Norte. "Estes senhores no poder querem mudar a face moral do país, dar cabo da corrupção. Mas de uma forma que causa corrupção. O modo deles tem a ver com as bases comunistas: a lei não nos vai impedir. Querem construir democracia utilizando métodos não-democráticos."
Chamar-lhes direita é pouco, acha. "Os partidos portugueses de direita na Polónia seriam de esquerda...", exemplifica. "Os gémeos são a extrema-direita, um populismo puro. Jogam com a igreja católica, com o patriotismo."
E Charchalis sente o medo de que fala Michnik. "As pessoas falam menos. Um ministro grava uma conversa com outro e utiliza isso na luta política. Lenine dizia que justo é aquilo que fortalece a revolução, e é isso que eles fazem, odiando o comunismo. Reina uma espécie de caça às bruxas. Eu ainda vivi o comunismo e por isso não aceito estes métodos."
Uma das consequências do mal-estar é o êxodo: "Nos últimos dois anos, um milhão e meio de pessoas partiram. Quem sabe ler e escrever já está em Inglaterra ou na Irlanda. As pessoas que sabem mexer-se simplesmente saem. Não têm futuro com políticos que falam de lutas de há 40 anos."