"É mais fácil projectar na Europa do que na América"

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Rafael Moneo falou ao P2 numa casa-hotel recuperada por Souto de Moura (à direita), na véspera da visita que fez ao seu Estádio de Braga (acima). No seu regresso ao Porto, falou da extensão que projectou para a Universidade de Colúmbia (ao lado), e elogiou a arquitectura de Siza (em baixo, as piscinas de Leça). ANA LUÍSA SILVA

O Prémio Pritzker 1996 e, até hoje, único arquitecto espanhol a conquistar a maior distinção do mundo da arquitectura, esteve no Porto a apresentar o seu edifício para a Universidade nova-iorquina de Colúmbia. Oportunidade para o reencontro com Álvaro Siza e Eduardo Souto de Moura, amigos de há muitos anos, e de cujas obras é um admirador.

Chama-se Four Room, mas tem apenas três quartos, a casa-hotel situada na Foz Velha, onde ficou alojado o arquitecto espanhol Rafael Moneo (n. Navarra, 1937), em meados de Maio, aquando da sua deslocação ao Porto para falar do seu projecto de extensão do campus da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque. O carácter único deste pequeno hotel deve muito ao trabalho de recuperação assinado por Eduardo Souto de Moura, associado a um cuidado extremo na sua decoração, com peças deste e do outro Pritzker português, Álvaro Siza, além da chancela de outros grandes autores e marcas do design contemporâneo. Isso mesmo foi realçado por Rafael Moneo, o único Pritzker espanhol, que se disse muito feliz por, neste seu regresso ao Porto, poder viver a intimidade da cidade e fugir aos "não-lugares" que são os grandes hotéis internacionais. Em entrevista ao P2, o Pritzker espanhol manifestou-se um admirador da obra de Souto de Moura - aproveitou a deslocação ao Porto para visitar o seu Estádio de Braga - e um credor da lição de Álvaro Siza, que conhece desde os anos 60. E confessou que gostaria de desenvolver um projecto em Portugal, que pudesse "merecer a aprovação" do autor da Faculdade de Arquitectura do Porto, onde Moneo deu uma muito concorrida lição sobre o seu edifício em Manhattan, inaugurado no final do ano passado.

Sabia que vinha para um hotel desenhado por Eduardo Souto de Moura?

Sim. E não há melhor modo de visitar o Porto. Estou contentíssimo. Para alguém que vem de Madrid, oferecerem-lhe a oportunidade de conhecer por dentro o que é a verdadeira atmosfera portuense é algo extraordinário. É uma casa que está esplendidamente recuperada.

Normalmente, nas suas viagens pelo mundo, fica nos grandes hotéis...

Sim. Por isso é que esta é a situação ideal. Neste tempo de globalização, esses hotéis são não-lugares, são iguais em todo o lado. Aqui, numa casa como esta, experimentamos a verdadeira identidade do lugar, e temos uma sensação de proximidade.

Já conhecia o Porto?

Sim. Já fiz várias viagens ao Porto, para aí umas oito, dez vezes. É claro que não conheço ainda a cidade muito bem. Mas creio, apesar de tudo, ter uma certa ideia do que o Porto é. É a cidade de Siza Vieira, que foi uma referência decisiva no início da minha carreira.

Lembra-se de quando o conheceu?

Conheci-o nos anos 60. Lembro-me da primeira publicação duma obra de Siza em Espanha. Foi em 61 ou 62, creio, e chegou-nos pela mão do Nuno Portas. Era sobre as suas primeiras casas em Matosinhos, a piscina, a casa de chá... Admirei logo o carácter precoce, a maturidade do Álvaro. Não temos grande diferença de idade, eu sou de 1937 e ele é de 33. Mas sempre o considerei uma referência e um mestre. A sua mestria era evidente logo nessas primeiras obras.

Em Espanha, e nos meios arquitectónicos dos outros países que conhece bem, há a percepção da existência de uma Escola do Porto, quando se fala da arquitectura portuguesa?

Não sei se as pessoas que conhecem bem as coisas distinguem entre o Porto e Lisboa, e todo o Portugal. Na generalidade, a noção que se tem da arquitectura portuguesa tem gravitado sobretudo em redor de Siza Vieira, cuja obra apareceu tão depressa com uma marca tão pessoal e tão sólida. E, apesar da proximidade que a obra do Eduardo tem da do Álvaro, não se pode dizer que as duas arquitecturas sejam coincidentes, independentemente de se poder dizer que pertencem a esse mesmo tronco escolástico, que se pode chamar a Escola do Porto. Agora, o reconhecimento da obra do Eduardo Souto de Moura com o Pritzker consolida muito este esforço para tornar presente a arquitectura portuguesa.

Quando se soube da atribuição de um novo Pritzker a um arquitecto português, falou-se muito na circunstância de isso acontecer num pequeno país...

Não daria muito valor a estas coisas. Normalmente, imagino que haja no júri a preocupação de não insistir num mesmo tipo de arquitectura, de não repetir países e de apostar numa certa heterogeneidade e diversidade na atribuição dos prémios. Se todos eles fossem dirigidos à arquitectura mais ligada ao poder económico ou político, e a uma arquitectura mais tecnocrática, isso impediria abrir as portas ao interesse por outras arquitecturas. Mas o facto de se repetir um Pritzker a Portugal significa, primeiro que tudo, o reconhecimento da obra do Eduardo, depois de, com o prémio ao Siza, o Pritzker ter cumprido o seu dever para com a sua obra e para com a arquitectura portuguesa.

O que é que lhe agrada mais na arquitectura de Souto de Moura?

O que eu mais valorizaria no Eduardo é a vontade de ele fazer com que a sua arquitectura evidencie os meios construtivos. Gosto da clareza com que ele expõe a matéria das coisas, mostrando claramente o papel que cabe aos materiais que ele escolhe para cada obra. Isso vem acompanhado com outros valores: o domínio da escala - que podemos ver, por exemplo, numa casa como esta onde agora estamos -, a sensibilidade ao contexto urbanístico...

Gosta do Estádio de Braga?

Ainda não o visitei [o arquitecto visitá-lo-ia no dia a seguir à conversa com o P2]. Mas sinto que parte do impacte que a obra de Braga tem se deve ao entendimento das suas condições paisagísticas, do contraste dramático nessa espécie de arena preparada para um jogo com ressonâncias mitológicas. Creio que foi isso que pareceu importante para o Eduardo, mais do que as condições urbanísticas da obra.

A razão da sua visita ao Porto é a apresentação do edifício que projectou para a Universidade de Colúmbia. Pode falar-nos dessa obra? O que é que ela representa no seu percurso?

É sobretudo uma obra que trata de dizer claramente como eu entendo que deve enfrentar-se um projecto de arquitectura nos dias de hoje. É um projecto que tem algo de programático, no sentido de resolver o problema que se nos colocava a partir da singularidade do edifício pré-existente. Tínhamos de cumprir as regras estabelecidas pelo campus originalmente desenhado por McKim, Mead & White em Colúmbia, que tem um valor artístico próprio. Fazer com que, antes de mais, o edifício entendesse, completasse e explorasse o potencial que existia já no desenho urbano do campus. É esta sensação de que há edifícios que não estão sós, nem culturalmente no tempo, nem fisicamente no lugar em que são construídos. Num caso como este, havia que resolver condições tão explícitas, como era construir sobre o vão de um ginásio em funcionamento e fazer a ligação com os outros edifícios existentes. Digamos que se apresentava como uma arquitectura cheia de dificuldades, mas que eu vi não como obstáculos, mas como aliciantes, algo que estimula a arquitectura.

Vendo as fotografias, o edifício surge claramente como uma obra de ruptura relativamente ao anteriormente edificado. Mas também é lido como algo que faz a ligação do passado com o futuro.

Acredito que se possa dizer que é um edifício de ruptura, porque abandona alguns dos elementos da construção tradicional, como o uso do ladrilho, ou da pedra, que caracteriza o campus de Colúmbia. Mas diria que o seu interesse maior está nessa capacidade de continuar e de situar o edifício em coordenadas temporais mais largas e físicas muito precisas, ao assumir que os parâmetros formais do edifício já estavam implícitos na arquitectura do campus de McKim, Mead & White. Outro ponto que seguramente valerá a pena referir é que o futuro do edifício está mais naquilo que é a sua função do que noutra coisa. Tratava-se de acolher os laboratórios da universidade.

É verdade que escolheu mármore português para o edifício?

Sim. Já tínhamos utilizado esse mármore antes, nas casas de banho dum hotel em Berlim, na Potsdamer Platz. É uma pedra que apresenta uma vivacidade sedimentada, quase como se fosse as águas do mar fossilizadas. Essa marca estava ainda na nossa memória, quando escolhemos o mármore para o lobby do edifício.

A escolha dos materiais é uma decisão importante no seu trabalho?

Sim. Mas, neste caso, não se pode dizer que o edifício tem a preocupação de mostrar os materiais de que é feito. Não é como na arquitectura do Eduardo... Neste caso dos laboratórios em Manhattan, são mais importantes as condicionantes urbanísticas, a ligação entre os edifícios já existentes, a estrutura de acesso à rua, resolver todos esses problemas. Onde a escolha do material tem importância é no revestimento, que, neste caso, recaiu em painéis de alumínio, que acabaram por definir a imagem do edifício, e por lhe dar um volume leve, que até faz parecer que o material também é importante. Mas aqui não é o material que está na origem do projecto.

É diferente, hoje em dia, fazer arquitectura na América e na Europa?Diria que hoje em dia é mais fácil projectar na Europa do que na América. Na América, é mais duro. De momento, na cultura americana não há grande empenho na arquitectura. E isto é novo para a cultura americana, que, na primeira metade do século XX, desenvolveu o gosto de construir com uma perfeição e com um luxo extremo. Bons exemplos são o Rockefeller Center, em Nova Iorque, ou a National Gallery, em Washington. É difícil encontrar maior qualidade construtiva. Hoje em dia, essa aposta na qualidade está a ser abandonada. Há uma grande preocupação com os custos, com os orçamentos e com os tempos de construção. A indústria perdeu o gosto pelo risco. Há agora padrões de construção altamente convencionados.

Na sua extensa obra, tem inúmeros projectos para edifícios com funções culturais e artísticas. As ampliações dos museus do Prado e Thyssen-Bornemisza em Madrid, o Museu de Arte de Estocolmo e de Huston, os auditórios de San Sebastian e de Barcelona... Tem alguma predilecção especial por trabalhar estes programas?

Diria que me é indiferente. Até certo ponto. Afinal, damo-nos conta que aquilo que a nossa obra é reflecte também o que são os nossos interesses. Se a minha obra mostra esta diversidade, será também, seguramente, a expressão da minha curiosidade. Mas eu gostaria de dar mais impulso à arquitectura da casa, porque a relação entre a cidade e a habitação continua a ser uma das vias para produzir algo sobre aquilo que a cidade deve ser. O facto de a minha obra aparecer mais ligada a uma arquitectura das instituições tem também a ver com o facto de as instituições serem os clientes que estão mais abertos a escolher um arquitecto, sem restrições económicas e políticas, simplesmente para tentar encontrar o arquitecto adequado para resolver o seu problema. Junto das instituições encontramos mais facilidade para o nosso trabalho profissional. E em países como Espanha ou Portugal a indústria da construção, felizmente, é ainda muito flexível e capaz de incorporar as nossas propostas.

Nos anos 80, disse que os mass media estavam a destruir a arquitectura. Actualmente, o arquitecto é muitas vezes apresentado como uma estrela, vivemos o tempo das archi-stars. O que é que mudou? A arquitectura é agora mais valorizada?

Muitos dos projectos de que temos vindo a falar foram promovidos por instituições públicas, por administrações que sentem necessidade de mediatizar essas encomendas. Muito do interesse que os mass media agora prestam à arquitectura entende-se por essa razão, porque os políticos tratam de divulgar que foram eles a escolher um dado arquitecto e querem surgir associados aos ateliers que lhes pareçam dar-lhes mais brilho. Mas a escolha de um arquitecto muito conhecido não garante verdadeiramente a qualidade do trabalho. É que, muitas vezes, esses grandes estúdios trabalham em 50 edifícios ao mesmo tempo, produzem como uma fábrica, cujo trabalho pouco tem que ver com o empenho e com o compromisso que eu, como arquitecto, gosto de assumir, e que me parece que os clientes também gostam de reclamar, quando apostam em arquitectos desse star system. Vivemos um tempo em que a presença dos arquitectos sob os focos dos media não se explica só pela atenção à arquitectura.

Alguma vez foi convidado a realizar algum projecto em Portugal?

Não. Nunca ninguém me convidou. Várias vezes pensei que isso pudesse acontecer. Afinal, estou em contacto com o país há tantos anos. Mas nunca participei num concurso em Portugal. Uma vez falaram de mim a propósito dumas torres em Lisboa, mas isso nunca foi muito claro, e nem cheguei sequer a conhecer esse projecto. Pensei que fosse apenas a utilização do meu nome para conseguirem alguma coisa...

Mas o que é importante na arquitectura, e retomando o ponto anterior, é ir buscar o arquitecto adequado para resolver um dado problema. Se alguma vez me convidarem para vir trabalhar em Portugal, espero que o façam por acreditarem que sou a pessoa adequada para o fazer.

Está então disponível para trabalhar em Portugal?

Seguramente que gostaria de fazer alguma coisa em Portugal. Se não fosse por outra razão, pela oportunidade de me associar à arquitectura portuguesa, e concretamente à de Álvaro Siza, que sempre foi uma referência na minha carreira. Fazer algo no seu país, e que merecesse a sua aprovação, seria, sem dúvida, para mim, algo muito desejado e querido.

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