Deus pôs-nos aqui por uma razão: para falarmos uns com os outros. E eu falo a cantar
De Sam Cooke a James Brown, de Mick Jagger a Elvis, Bobby Womack conviveu com todos, fez música com todos, tem opinião sobre todos. Foi o último a falar com Marvin Gaye e com Janis Joplin. Tocou com Aretha e com Ray Charles. Aos 68 anos, "The Bravest Man In The Universe" é o seu regresso em grande forma, coadjuvado por Damon Albarn, dos Gorillaz. "Gorillaz? Prefiro os Monkees", diz. Uma lenda vida.
Aos 68 anos de idade, e após quase 60 de carreira, Bobby Womack ainda fica "chocado" quando é reconhecido na rua. Isto, note-se, não é humildade - é perspectiva: "Venho de uma época em que havia Marvin Gaye, Sam Cooke ou Wilson Pickett", diz-nos ao telefone, "e quando um deles abria a boca para cantar não se confundia com mais ninguém. Esses tipos eram estrelas, não eram gente a tentar ser estrelas".
Era suposto que a conversa se centrasse em The Bravest Man In The Universe, o seu mais recente disco e um tremendo regresso à boa forma - canções soul de espinha dorsal alterada pela electrónica de Richard Russel (dono da XL Records) e Damon Albarn, que apadrinhara o retorno de Womack ao estrelato quando o convidou para cantar nos Gorillaz. A conversa foi adiada várias vezes à conta de um cancro que Womack, entretanto, venceu. Agora, volta e meia, tem de parar para recuperar a respiração, mas nem isso o impede de falar durante duas horas sobre tudo e mais alguma coisa - menos o disco.
Womack gosta do disco. Apesar de não estar habituado a sons electrónicos, resolveu arriscar a parceria com o par de garotos (Russel e Albarn) que é fã da sua obra dos anos 1970. Os miúdos, como lhes chama, são doidos por Communication (1970), Understanding (1971) e The Facts of Life (1973), o que deixa Womack boquiaberto: "Eles têm tudo o que eu gravei. Coisas que nem eu sei que gravei. São malucos. Eu digo-lhes: "Rapaz, essa canção [uma qualquer canção antiga de Womack] é uma merda, mas eles dizem que não e explicam porquê".
Este humor está presente em muito do que Womack diz - e diz mesmo muita coisa. É daqueles tipos a quem se diz "olá" e ele conta a vida toda. Quando lhe perguntamos o que gosta mais em The Bravest Man In The Universe, responde: "A minha voz". Depois desata a rir. Em parte está a falar a sério, em parte a divertir-se com a atenção que voltou a ter após anos de esquecimento. "O meu tom está óptimo", prossegue. "Continuo a afinar. Isso é uma coisa que me assusta. E fiz todas as asneiras. Tem de haver uma razão para ter tido tanta sorte. Porque não a mereço".
Os bons velhos tempos
Este é o grande tema de uma conversa com Bobby Womack: a inacreditável sorte que lhe permite estar vivo e continuar, mesmo tendo cometido quase todos os pecados possíveis ao cimo da Terra. Ou melhor, o tema preferido de Womack é: por que raio é que um tipo que não se portou bem teve tanta sorte?Ele tem boas razões para tanta inquirição existencial. Entre outras coisas que desagradam à moral ocidental, casou com a viúva do seu mentor, Sam Cooke, poucos meses depois da morte deste - causando um escândalo que o tornou "persona non grata" e lhe ia custando a carreira. "Eu só queria protegê-la como ele me tinha protegido", diz hoje. A protecção acabou anos depois, quando dormiu com a enteada, o que levou a mulher a dar-lhe um tiro. "Eu era um tolo. E já devia saber que elas vão sempre descobrir quando estamos com outra. Isso nunca vai mudar".
Um dos irmãos de Womack também foi baleado por uma mulher - mas não teve a sorte de Bobby e morreu. Bobby perdeu ainda dois filhos (um suicidou-se, outro morreu num acidente caseiro) e um terceiro está preso. Apesar de todas estas desgraças - que o conduziram a 30 anos de consumo maciço de drogas, nomeadamente a cocaína -, e numa das guinadas mais estranhas da história da música negra, Womack sacou o seu primeiro número um em nome próprio com uma canção, Woman"s gotta have it, escrita a meias com Linda Cook, a enteada.
Numa vida que foi tudo menos linear, viu a sua carreira ressuscitar por pelo menos duas vezes: a primeira quando Quentin Tarantino usou Across 110th Street em Jackie Brown. A segunda graças a Damon Albarn. Womack diz-se "agradecido ao Damon" e depois conta uma história: "Quando ele se abeirou de mim e me perguntou se eu queria cantar para os Gorillaz, sabes o que eu lhe disse? Disse-lhe: "Desculpa, miúdo, mas só conheço os Monkees"". Dito isto, desata a rir.
Bobby Womack não se interessa muito pela música de hoje. "Eu não aprendo nada com a rádio. Não há melodia, não há boas vozes, quando muito, há ritmo". Culpa o rap: "O que é que eles andam a fazer com o hip-hop? O que é aquilo?". Há outras coisas na vida de hoje que o incomodam: "Fui a casa de uma amiga noutro dia. Os miúdos dela estavam a jogar computador quando cheguei - nem se viraram para me cumprimentar. É preciso respeitar os mais velhos. Respeitem o velho", diz. E, para variar, desata a rir.
Rir é o remédio de Womack: "Se eu não tivesse rido, não tinha sobrevivido. E sobrevivi a muita coisa: melhor música que a minha, artistas que eram melhores que eu. Não percebo por que é que ainda estou aqui. A única coisa que me traz de volta é a música".
É impossível dizer se isto é verdade ou narcisismo, mas é certo que ele deve gostar muito da coisa: é que a música tirou-lhe quase tudo. Logo no início da adolescência, tirou-lhe o pai, por exemplo. Educado a respeitar a religião, Womack começou a cantar gospel muito cedo com os irmãos, formando os Womack Brothers, que foram descobertos nem mais nem menos que por Sam Cooke, o extraordinário crooner que cantou A change is gonna come, talvez a canção que mais fez pelos direitos dos negros nos EUA. Womack ainda hoje reverencia Cooke.
"De todos [os "soul men" dos anos 1950, 1960 e 1970], o Sam era o que tinha mais talento. Pensava muito, lia muito. Ele dizia-me sempre que tínhamos de ler tudo, que ler era uma arma, que a defesa do negro estava nos livros. Cada vez que chegávamos a uma cidade, mandava o irmão a uma biblioteca buscar-lhe livros. Também perseguia mulheres, todos o fazíamos, mas isso não o impedia de trabalhar, ao contrário do que acontecia connosco". Cooke era "um líder espiritual, que acreditava que a autoridade nascia do saber e do exemplo. Era um de nós, mas era mais que nós. Tinha a sua editora, acordava de manhã para trabalhar em vez de mandar fazer. Liderava com o seu exemplo, o seu comportamento".
A devoção a Cooke é notória. "Foi o Sam que disse pela primeira vez que íamos ter um Presidente negro. Eu pensei que ele era maluco. Ele dizia que íamos ter um Presidente negro antes de termos uma mulher na presidência, porque era o país era mais machista que racista. Eu pensava que ele era maluco, mas gostava de o ouvir dizer que íamos ter um Presidente negro". Womack gosta de Obama e defende-o contra quem o ataca: "Querem que o homem resolva em quatro anos a desgraça que demorou décadas a causar. Dêem tempo ao negro". Tinha falado exactamente disto com o Guardian, o que indica que a corrida à Casa Branca está nas suas preocupações.
Entre as múltiplas histórias que debita sobre Cooke, há uma que é deliciosa. Womack teria uns 16 anos quando, uma noite, na estrada, entraram num motel para dormir. Womack queria saber qual a diferença entre um hotel (onde nunca ficavam) e um motel (onde ficavam sempre); Cooke, para evitar explicar que um hotel era mais caro e por isso é que escolhia motéis, disse-lhe: "Um hotel está cheio de hoes [putedo]". "E eu acreditei no que ele disse".
Se Deus quiser
Seguir Sam Cooke teve o seu preço: o pai de Womack não gostava que ele cantasse música secular [não-religiosa] e pô-lo fora de casa à conta disso. Demorou o seu tempo, mas Womack perdoou-o. "Ele não sabia para mais. Pensava que podíamos entrar no céu a cantar. Mas, como digo neste disco, às vezes é melhor ser mau. Penso na minha vida e concluo isso: apesar de ter sido tantas vezes mau, sobrevivi. E os bons caíram. Onde está a justiça?"A história de como o pai de Womack se zangou com o filho e de como fizeram as pazes é exemplar da vida da comunidade negra da época (Bobby nasceu em 1944 e saiu de casa ainda na década de 1950). "Quando nos pôs na rua, o meu pai disse: "Não podem viver aqui porque não quero que as pessoas pensem que sou um de vós". Tinha vergonha que os filhos tivessem prazer. As coisas mudaram e fomos nós que as mudámos. O negro também tem direito ao seu prazer. Nisso, sou parte da história". Diz que o pai era um daqueles homens que acreditavam que o trabalho e a devoção a Deus trariam para a mesa o pão que a família precisava - e não era preciso mais que o pão. "Ele era doutra escola. Da escola que achava que se Deus quisesse que a gente voasse tinha-nos dado asas".
Pouco depois da zanga com o filho, o pai Womack ficou demasiado velho para trabalhar nos aços (que era o seu emprego). "Tinha 40 anos e parecia ter 80. Quando deixou de trabalhar nos aços, houve a possibilidade de trabalhar num supermercado, mas, na época, esse era um trabalho de mulher. Então foi ao pastor da sua comunidade, que tinha três quintas e limusine, e pediu ajuda até conseguir reerguer-se. E o pastor mandou-o pedir ajuda a mim. Isso quebrou-lhe o coração. Ele ficou verdadeiramente chocado por o pastor em que tanto acreditava não o ter ajudado. E pediu-me desculpa. Fi-lo voar para LA, trouxe-o para minha casa, comprei milho e tomate para ter uma quinta lá atrás. Ele mal conseguia acreditar".
A forma como Womack remata a história sobre o pai é típica da sua esperteza de rua: "Ele queria que eu fosse para o céu, mas eu nunca vi ninguém voltar do céu e dizer: "Eh pá, o céu é muito bom"". Nunca se preocupou muito com o céu, estava mais interessado no sucesso - o mesmo sucesso de Sam Cooke. "Eu queria o mesmo que ele tinha - e ele acabou morto por uma mulher. O que me devia ter servido de aviso".
Quando Sam Cooke contratou os Womacks e os convenceu a cantarem secular music, transformou-os nos Valentinos; a morte de Cooke deixou a carreira dos Valentinos num limbo. Além disso, o escândalo do seu casamento deitou por terra o disco de estreia a solo que tinha gravado - as canções foram oferecidas a Wilson Pickett, que escalou tabelas. Ainda assim, Womack alcançou um "meio sucesso": em 1964, os Rolling Stones gravaram uma canção sua, It"s all over now, conseguindo o seu primeiro lugar da tabela de vendas do Reino Unido. A maior parte das pessoas achou que Womack tinha ficado rico da noite para o dia, mas não: "Nessa altura, não víamos um tostão de royalties. É injusto, mas era assim que as coisas funcionavam. Às vezes perguntam-me se eu ficava amargo com isso, mas foi uma escolha minha viver neste meio".
Obrigado a produzir, escreveu mais êxitos para Wilson Pickett, mas também para George Benson e Janis Joplin. Para sobreviver, fez-se ser preciso. Entrava "em cada estúdio onde houvesse uma gravação", porque queria "entrar em todos os discos". Começou a aperfeiçoar a técnica de guitarra e acabou a tocar "em milhares de discos". Isto não é treta: tocou guitarra nos melhores discos de Wilson Pickett, King Curtis, Aretha Franklin, Sly and the Family Stone e de Ray Charles. Womack diz que, ele sim, viu o melhor James Brown, e que o que as pessoas viram mais tarde não chega aos calcanhares do que o que Brown fazia nos seus melhores dias: "As pessoas não percebiam o James Brown. Eu pensava que ele nunca ia ser mainstream. Ele disse-me que não, que toda a gente ia gostar dele. Eu disse-lhe que para isso ele tinha de largar as canções doces e arregaçar as mangas. Ele percebeu melhor do que eu próprio tinha percebido".
Alcançou o sucesso no final dos anos 1960, início dos 1970, quando a indústria deu uma volta de 180 graus. "No início dos anos 1960, a soul estava muito limitada no seu alcance. Não passava nas rádios, não chegava aos brancos e os negros não tinham dinheiro. Mas, com a Motown e com a luta pelos direitos dos negros, tudo mudou. A Motown fazia música pop e vendia. Até então, isso não acontecia".
Foi mais ou menos nesta altura, quando a soul explodiu, que a droga apareceu, não só na vida de Womack como de toda a gente. "Quando o dinheiro começou a chegar, as drogas surgiram logo a seguir. Ficava dias sem dormir. As pessoas perguntavam-me: "Como é que aguentas sem ir à cama?". E eu respondia: "Com isto". E comecei a dá-la [cocaína] a toda a gente. As pessoas perderam o controlo". Diz ter sido o responsável pela introdução em larga escala da cocaína entre as estrelas da soul, afirmação que deve mais ao lado de contador de histórias do último soul man vivo que à realidade. Tem uma boca grande que, por vezes, o trai - recentemente, deu uma entrevista ao Guardian em que disse que Elvis, para quem tocou em Suspicious Minds, roubou tudo o que fez. Ao Ípsilon confessou que "eles" não querem que ele fale de Elvis - por eles entenda-se a "indústria". E, depois, borrifando-se para a indústria, defendeu que "Elvis foi uma invenção dos brancos para roubar a música dos negros aos negros" e que o rei era "um desgraçado que não recebia royalties e que fazia o que agente mandava". Elvis é um dos dois brancos que irritam Womack - o outro é Mick Jagger: "Eu não gosto de gente com mania. O Mick Jagger... ele não é mau. Mas o Keith é que é o meu tipo de pessoas. O Mick pensa em dinheiro, o Keith gosta de música".
Como Richards, passou a maior parte dos seus dias de adulto estuporado em narcóticos. É o seu grande arrependimento: "Cheguei a um ponto em que não queria criar, só queria estar pedrado. E a música pode dar-te isso, não precisas de drogas para isso". De todos os artistas que se perderam directa ou indirectamente à conta das drogas, destaca dois: Marvin Gaye e Sly Stone (escolhas estranhas, tendo em conta que Gaye foi morto pelo pai e Sly Stone ainda está vivo, embora não componha e viva nas ruas).
"A vida do Marvin Gaye teria sido muito diferente, se ele não estivesse enterrado em drogas", defende. "Irrita-me que as pessoas falem mais da tragédia que foi a morte dele que da música. A morte dele é só uma pequena parte da vida dele. A mais pequena". Womack foi a última pessoa - além do pai de Gaye, claro - a falar com Marvin.
Quanto a Sly Stone, vale a pena ouvir o que Womack, que entrou nas gravações de There"s a Riot Going On, tem a dizer. "Filho, eu gravei com a Aretha. Eu vi aquelas canções nascerem ali, ao longo da noite, um chegava com uma frase, outro acrescentava um bocado, e a dada altura ela dizia "Vamos gravar". Mas ninguém, nem o James Brown, nem o Ray Charles, nem o Sam, tinha a criatividade do Sly". O problema de Sly Stone era simples: "Ele simplesmente adorava mais as drogas que qualquer um de nós. Foi o único que tomou mais drogas que eu. Tu não imaginas o que era a gravação de um disco do Sly Stone. As pessoas não fazem ideia. As coisas que eu vi. Ele acha que ainda consegue voltar a fazer música, mas eu acho que já não é possível saber. As drogas levaram-no para o lugar errado. Fez-lhe mal ao cérebro, fez mesmo".
O final da conversa é como o dia a seguir a um funeral. "Sinto-me muito só", diz. "Já não há gente como eu". Depois é como se fosse desenterrar o baú dos mortos e desata a mencionar toda a gente de talento que conheceu e que acha injusto as pessoas não recordarem, incluindo um grande nome da Stax, infelizmente esquecido, Johnie Taylor ("Não há ninguém como ele"). Diz que hoje só ouve Fats Domino, Chuck Berry e Ike Turner.
Ali, no final dos anos 1980, Bobby Womack, atónito com o número de amigos que haviam tombado, chamou-se a si mesmo The Last Soul Man. Não imaginava como um dia faria sentido: "Agora sou mesmo o último homem da soul. E enquanto tiver força vou cantar".
Viveu, literalmente, tudo: pobreza extrema, família partida, casamentos impróprios, relações ainda mais impróprias, morte de irmãos e filhos, divórcios, drogas e mais drogas - e conseguiu sempre voltar. "Eu tive muitas vidas", repisa no final da conversa. "Não te esqueças disso. Porque, se te esqueceres disso, eu vou voltar para te assombrar", diz, mesmo no finzinho, com a sua voz de gravilha que lhe permite um tom ameaçador. Depois, como uma criança, muda de tom e pede delicadamente para deixar um recado: "Diz à boa gente de Portugal que o Bobby Womack ama-os e a todos os seres do planeta e gostaria muito de ir cantar aí e partilhar o meu amor com toda a gente".
E depois despediu-se dizendo: "Deus pôs-nos aqui por uma razão: para falarmos uns com os outros. E eu falo a cantar". Amen.