"Como é que foste capaz de fazer isto?"

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ilustração de joão fazenda

Ainda há muitas perguntas sem resposta. Luís Castanheira, 24 anos, está detido há 17 dias. Terá assassinado a mãe, um crime que aos olhos da sociedade não tem atenuantes. Pode haver, nestes casos, uma doença, uma perturbação anti-social? "Pode", dizem os especialistas. "Mas não necessariamente." Por André Jegundo

As notícias correm rápido, mesmo entre as celas de uma prisão. Naquela terça-feira de manhã, 14 de Setembro, à hora do pequeno-almoço, os presos da camarata decidiram agir. Aproximaram-se do rapaz para lhe dar uma "lição". Não queriam ter na mesma cela o "degenerado" que terá matado a própria mãe. E, no código não escrito dos reclusos, a pena ia ser cumprida mesmo ali.

Houve murros, pontapés e insultos, mas a refrega mal teve tempo para começar. Aquele alvoroço todo chamou a atenção dos guardas prisionais, que entraram na camarata para pôr cobro ao ajuste de contas. Luís Castanheira recebeu assistência no posto médico da prisão e, no próprio dia, foi transferido para outra cela. Da ala normal de internamento, que partilhava com outros presos preventivos, passou para uma zona de protecção prisional, onde se encontram os alvos privilegiados de actos de violência entre presos: condenados por pedofilia; violadores; alguns homicidas especiais; certos reclusos mais velhos e frágeis. E, agora, um suspeito de matricídio com 24 anos.

Os casos de parricídio são pouco comuns em Portugal. E implicam quase sempre o recurso a armas brancas. Em Agosto de 1999, no dia do último eclipse solar do milénio, António Jorge (Tojó), de 20 anos, matou os pais à facada, em Ílhavo. Foi condenado a pena máxima e, segundo o que foi apurado em tribunal, cometeu o crime por dinheiro. Em 2004, no lugar de Seixas, concelho de Caminha, um rapaz, a quem seria, mais tarde, diagnosticada uma esquizofrenia, matou a mãe, de 53 anos, com golpes de espada. No ano seguinte, outro, de 17 anos, matou a mãe com uma facada nas costas, depois de uma discussão relacionada com a falta de aproveitamento na escola. E em 2008, uma mulher de 55 anos, aposentada, foi morta pelo filho, de 36 anos, que a esquartejou e guardou numa arca frigorífica.

Quase um suicídio

Num país pouco habituado a este tipo de crimes, o caso mais recente de Luís Castanheira, o estudante de Medicina que matou a mãe adoptiva, em Coimbra, impressionou. Apesar de não existir enquanto tal no código penal, o crime de parricídio não é, culturalmente, um "homicídio comum", diz o psicólogo criminal Carlos Poiares. "Matar o pai ou a mãe comporta a desprezibilidade inerente a quem destrói as suas próprias raízes: é quase um suicídio, como autodestruição das origens do sujeito", explica, por email.

"As sociedades nunca suportaram o parricídio." Historicamente, trata-se de um crime "sem qualquer atenuante" e os seus autores, continua, sempre foram sujeitos às "penas mais degradantes, infamantes e supliciantes".

O incidente na prisão de Aveiro, na manhã de 14 de Setembro, aconteceu poucas horas depois de o estudante de Medicina ter sido transferido da cela da Directoria de Coimbra da Polícia Judiciária para o Estabelecimento Prisional de Aveiro. Chegou já durante a noite, mas, logo na manhã seguinte, não passou despercebido aos outros presos da cela. Aquela cara era-lhes familiar. Afinal, tinha passado apenas uma semana desde que a notícia do homicídio da médica Eugénia Castanheira, 58 anos, ocupara as primeiras páginas dos jornais.

O corpo da médica, encontrado no quarto do apartamento, em Coimbra, a casa revirada, a carteira roubada, uma corda pendurada na varanda, sugeriam a possibilidade de um assalto com um desfecho imprevisto e violento. Mas para os investigadores da Polícia Judiciária que naquela manhã foram chamados ao apartamento do rés-do-chão na urbanização da Quinta da Lomba a encenação foi-se tornando evidente.

O grupo restrito de suspeitos ficou reduzido às "duas, três pessoas" que teriam a chave da casa, para além da médica. No próprio dia em que o corpo foi descoberto pela empregada de limpeza, amigos e ex-colegas da equipa de futebol da Académica tentaram ligar a Luís, "para dar força" ao rapaz. Mas a detenção estava por horas.

Adoptado ainda bebé

Cada caso de parricídio tem uma história própria e, apesar de a literatura científica sobre o tema ser escassa, o psiquiatra João Marques Teixeira, presidente do Colégio da Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, aponta duas categorias fundamentais para entender este tipo de crimes. "Os parricídios praticados por adolescentes tendem a ser reacções cataclísmicas a graves abusos físicos, sexuais ou emocionais, prolongados no tempo, cometidos por um indivíduo que não tem, tipicamente, uma perturbação da conduta, nem é psicótico. Os parricídios praticados por adultos tendem a ser conclusões trágicas de relacionamentos altamente conflituais entre indivíduos psicóticos não tratados e os seus progenitores", sustenta.

Mas, apesar de serem raros, existem situaçõesem que um filho - ou uma filha -, "com ou sem traços psicopatológicos", pode planear a morte dos pais "para atingir um fim específico".

"Para ele, o Outro (pai, mãe, vizinha, mulher ou marido) mais não é do que um objecto sem valor, de que quer dispor como se do relógio ou dos sapatos se tratasse; matá-lo(a) é ainda uma forma instrumental de "gerir" uma situação. Pode haver aqui uma perturbação? Quiçá uma perturbação anti-social? Pode. Mas não necessariamente", precisa Carlos Poiares.

A polícia acredita que, na noite de 7 para 8 de Setembro, Luís Castanheira se dirigiu à casa da mãe com o propósito de a matar. O motivo concreto do crime? A investigação policial ainda não o encontrou e acredita que ele pode não existir. O homicídio tem sido justificadono contexto de uma relação supostamente conflituosa entre mãe e filho. Uma conflitualidade que estaria a agravar-se com o passar do tempo.

Depois de um divórcio "longo", que culminou em Março passado, a médica Eugénia Castanheira passou a viver sozinha com o filho adoptivo, que acolheu com poucos dias de vida. Para o círculo de amigos de Luísnada transparecia, mas as contradições e os choques entre mãe e filho seriam cada vez mais fortes: o curso de Medicina que Luís, com seis matrículas mas apenas no 4.º ano, tardava em concluir e que estaria a pensar em abandonar e o estilo de vida boémio e desregrado que tanto desagradava à mãe são algumas das razões apontadas para os conflitos.

"A relação entre Luís e a mãe era um tipo de relação muito propício desta geração de jovens, em que há quase uma inversão de papéis. Os filhos sentem-se quase os donos da casa, a quem os pais tudo devem, talvez mesmo a obediência", descreve ao P2 um dos investigadores responsáveis pelo caso.

Nos dias seguintes à detenção, os amigos continuavam perplexos: "Como é que foste capaz de fazer isto, Luís?", questionavam na página do Facebook do estudante, que foi, entretanto, desactivada.

Mais agressões a pais

Todos os adolescentes e jovens, frisa Carlos Poiares, vêem os pais como "travões a muitas das suas aspirações de liberdade" e "têm contradições fortes e mesmo escaramuças" que são "naturais e fazem parte do desenvolvimento". Porém, "não matam os pais", faz questão de notar. As denúncias de agressões, no entanto, têm vindo a crescer: entre 2004 e 2009, o número de casos registados pela Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) quase duplicou (passou de 299 para 532). Na maior parte das situações, os agressores são filhos, do sexo masculino, com idades entre os 18 e os 35 anos, e as vítimas são, sobretudo, as mães, com 60 ou mais anos.

Do conflito "normativo" que faz parte das relações entre pais e filhos até ao ponto da agressão existem, no entanto, alguns sinais que o psicólogo Américo Baptista classifica como de "alerta". "Quer estejamos perante um caso de má formação de personalidade quer num caso de psicopatologia, situações prévias de agressão entre pares, de consumo de estupefacientes e de início muito prematuro da vida sexual são alguns desses sinais", afirma o professor do departamento de Psicologia da Universidade Lusófona de Lisboa.

Apesar de se tratar de uma área pouco investigada e de um "tema difícil", Américo Baptista admite que "nas famílias em que não há relações genéticas" o potencial de "tensão e violência" pode ser "maior".

E Marques Teixeira acrescenta que alguns autores reconhecem a existência de uma "dinâmica específica dos crimes de parricídio perpetrados por filhos adoptivos". Estes autores chegam mesmo a "propor uma síndrome - a síndrome da criança adoptada", que poderia explicar, "em conjunto com factores ligados à estrutura familiar", certas características que estes crimes assumem neste tipo de contexto.

Os especialistas são muito cautelosos quando se aborda este ponto. Carlos Poiares não é excepção: "Falando de filhos adoptivos, é necessário saber - lá está, conhecer para explicar, sob pena de se recair no triste ilusionismo pretensamente científico, digno de feiras e mercados - qual o estilo de vinculação entre o filho e o(s) progenitor(es): há também aqui muitas diferenças."

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