Com Pessoa até à morte
José Paulo Cavalcanti Filho, autor de Fernando Pessoa - Uma quase-autobiografia, e a obsessão de toda uma vida.
A paixão que o coleccionador brasileiro José Paulo Cavalcanti Filho tem por Fernando Pessoa encanta-o e oprime-o. Enquanto fuma o seu charuto, num hotel de Lisboa, diz que existem duas espécies de pessoas: os felizes e os desesperados. "O feliz marca a data para acabar e acaba. O desesperado, enquanto acha que há alguma coisa que pode fazer melhor, diz que não está pronto."
Fernando Pessoa - Uma quase-autobiografia (Porto Editora) foi "um desespero" - um desespero para "tentar ir às últimas consequências e chegar ao limite da precisão humanamente possível". Diz que o livro "pode ter erro", mas que o tentou evitar. "Não consigo fazer um livro melhor do que esse. É uma opressão, enquanto você não chega à descoberta. Esmaga."
Este advogado que defendeu presos políticos durante o regime militar (desde a semana passada, integra a Comissão da Verdade que investigará as violações dos direitos humanos no Brasil entre 1946 e 1988), foi ministro interino da Justiça e ex-secretário-geral do ministério da Justiça no Governo José Sarney e é consultor da Unesco e do Banco Mundial mudou a sua vida de modo a arranjar quatro horas por dia para o livro. "Deixei de ler jornal, passei só a ler primeira página e a página de opinião. O resto da informação ouvia na rádio. Passei a sair mais tarde de casa. Passei a fazer reunião com cliente na hora do almoço para poder sair do escritório às cinco. Depois do jantar, durante 30 anos, eu lia dois livros em leitura dinâmica e tocava piano 20 minutos. Eliminei isso", conta.
Desde os 17 anos, quando ouviu João Villaret declamar Pessoa, que Cavalcanti Filho não consegue deixar de se maravilhar com o universo pessoano. Não há outra figura que lhe interesse, só tem obsessão por Pessoa. "Como tenho tudo de Pessoa, agora estou na fase do resto", explica. No museu de José Paulo particular existem várias edições originais, quatro manifestos, as revistas que Pessoa dirigiu, os jornais em que escreveu, objectos pessoais. No entanto, o coleccionador não comprou a arca quando esta foi a leilão. "Podia passar pela cabeça de alguém que o Governo português não ia ficar com a arca?", pergunta. "Agora estou fazendo a colecção do imaginário de Pessoa: o que está em torno dele. Eça de Queirós é importante? Eu tenho a primeira edição dos livros de Eça. Padre António Vieira é importante? Eu tenho as primeiras edições dos livros de Vieira. Eu tenho todos os livros de Mário de Sá-Carneiro. Não consegui a primeira edição de Camões, mas consegui a primeira edição comentada de Os Lusíadas de 1669. O pai de Pessoa? Tenho os livros dedicados por ele. D. Sebastião? Tenho uma carta dele; D. Carlos e D. Amélia, tenho cartas". Já avisou a mulher e os filhos de que não herdarão a colecção. "Não mando para Portugal porque Pessoa é mais amado no Brasil do que aqui e aqui já tem muita coisa. Agora que aquilo vai para um local público, vai. Está comigo por enquanto."
Cavalcanti Filho admite que a obra de Pessoa está muito bem estudada por grandes autores portugueses, mas queria ler sobre Pessoa o que não encontrava em lado nenhum. "Queria saber mais do homem, qual era a tabacaria da Tabacaria, quem era o Esteves, quem era o menino de sua mãe. Queria saber o que não estava nos livros de teoria, o que não era considerado fundamental", conta. A ideia de fazer Fernando Pessoa - Uma quase-autobiografia ocorreu durante uma conversa que teve com uma editora brasileira que lhe disse para ser ele a fazer o tal livro que tanto queria ler. "Mas o livro só começou de verdade quando eu percebi que Pessoa era um escritor sem imaginação e que a vida dele estava na sua obra. Claro que não estou a usar imaginação no conceito banal de capacidade de sonhar. Ninguém sonhou como ele. Pessoa só escrevia sobre o que estava em volta dele. Nesse sentido, a sua obra era um testamento à espera que alguém o decifrasse", acredita o autor, que contratou um historiador (Victor Luís Eleutério) e um jornalista (Duda Guennes) para o ajudarem na tarefa.
A voz de Ophélia
O primeiro objecto importante que o biógrafo de Pessoa comprou para a sua colecção foi um exemplar de Mensagem dedicada ao primo Victoriano Braga. "O dono não leu dentro do livro, porque se lesse veria que estava todo anotado por Pessoa, corrigindo versos, como no exemplar da Casa Fernando Pessoa que depois virou a segunda edição de Mensagem, a definitiva."É um dos objectos de que mais gosta na sua colecção; o outro é "o livro que Pessoa tinha no bolso ao morrer, os Sonetos Escolhidos de Bocage": "Um amigo meu, Ronald de Carvalho, soube que eu estava escrevendo um livro sobre Pessoa. Telefonou-me e disse que tinha uma história com a Ophélia de Pessoa, que eu precisaria de conhecer. "Você amanhã almoça onde?", perguntei. "No Hotel Torre, em Brasília". No outro dia, 12h30, eu estava na porta do hotel e ele me contou uma história belíssima." Está descrita no livro. Nos 50 anos da morte de Pessoa, a TV Globo veio fazer uma reportagem e Ronald de Carvalho chefiava a equipa. Quis entrevistar Ophelia, ela disse que não lhe daria a entrevista "porque Fernando não gostaria" e ele filmou-a à janela com a sobrinha-neta Maria da Graça. "De noite, quando acabou a filmagem, Ronald bateu na porta e disse a Ophelia que não poderia sair sem ouvir o som da sua voz. E pegou uma rosa e deu-lhe, bem como um beijo na testa."
Perguntamos a Cavalcanti Filho se a história do amigo não lhe parece uma fantasia. "Ele está aí vivo, é só perguntar como foi. Quando ele deu o beijo, disse "boa noite" e foi-se retirando." Foi então que Ophélia lhe disse para voltar atrás. Queria contar-lhe o que aconteceu na noite em Fernando Pessoa morreu e ela o velou, às escondidas, chamada por uma das freiras do hospital - mas só se Ronald lhe desse a palavra de honra de que não contaria a história a ninguém enquanto ela vivesse. "A freirinha telefonou à Ophelia, ela entrou por uma entrada de serviço, para ver o Fernando morto. Quando começou o sol, estava na hora de ela se ir embora e uma freira disse-lhe: "Penso que Pessoa gostaria que você ficasse com isso". Aí lhe deu o tal livro de Bocage. Que ela botou num envelopezinho desses de supermercado de papel-manteiga e nunca tirou de lá. Deu o livro a esse ex-director da TV Globo como prova. Ela morreu, esse jornalista procurou a oportunidade para escrever e não surgiu. Disse-me: "Conta você". Se não fosse assim, como é que esse livro estava nas mãos dele? Eu emprestei-o para a exposição Fernando Pessoa - Plural como o Universo. Aliás, está no meu quarto se você quiser ver".
Ver critica de livros pág. 43 e segs.