As várias guerras de Carrie

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Algumas cenas de Segurança Nacional foram filmadas em Israel: a agente da CIA Carrie Mathison/Claire Danes dr

Para os milhões de fãs da primeira temporada de Homeland (Segurança Nacional), Carrie Mathison já se tornou num imperativo dos domingos à noite, algo tão familiar e reconhecido como os amplos ombros de Tony Soprano

A última vez que tinha visto a agente da CIA Carrie Mathison, a personagem bipolar compulsiva que Claire Danes interpreta na série Homeland [Segurança Nacional, em português] da cadeia norte-americana Showtime, foi no final da primeira temporada e ela estava acorrentada a uma mesa de hospital a fazer terapia com electrochoques. Na vez seguinte em que a vejo, ela está na fila de um aeroporto coberto de bandeiras do Líbano pronta a embarcar para a segunda temporada e, para vos ser sincero, ainda parece estar em choque.

Danes usa uma peruca castanha com corte à Bob, os seus olhos verdes estão escondidos atrás de umas lentes de contacto também castanhas, mas mesmo a 20 passos de distância - atrás de homens grandes que carregavam luzes e câmaras - não é complicado captar a sua energia nervosa, a palidez do seu rosto contorcido no meio de uma multidão que se agita. Para os milhões de fãs da primeira temporada de Segurança Nacional, a linguagem corporal arrastada de Carrie já se tornou num imperativo dos domingos à noite (em Portugal, a série pode ser vista na Fox), algo tão familiar e reconhecido como os amplos ombros de Tony Soprano; naquela cena, Carrie puxa para trás de si a sua bagagem de mão mas percebe-se claramente que tem muito mais bagagem emocional para carregar.

[A série é sobre um soldado americano, Nicholas Brody, que regressa aos EUA depois de ter estado oito anos desaparecido em combate no Iraque; Claire Danes, a agente bipolar da CIA, suspeita de que ele pertença a uma célula terrorista.]

Sendo isto o cenário de Segurança Nacional, nunca nada é o que aparenta ser. Para começar, não estamos no Líbano mas em Israel. Um terminal inutilizado do Aeroporto Internacional Ben-Gurion, em Telavive, faz o lugar de Beirute, e para qualquer sítio para onde se olhe há falsos árabes libaneses a ensaiar as suas posições. Num dístico por cima do check-in, pode ler-se "Bem-vindos a casa", apesar de não ser nada claro a que casa se refere.

Danes está a filmar em Israel há duas semanas e este é o último dia antes do seu regresso a Charlotte (na Carolina do Norte), onde vai filmar o resto da segunda temporada ao longo de seis meses. Entre as cenas, ela costuma sentar-se sozinha, ensimesmada com o seu telefone - é obcecada pelo jogo Words with Friends - e parece um bocado cansada e frágil. Se se trata de Danes, ansiosa por regressar aos Estados Unidos e ao marido, Hugh Dancy, ou Carrie Mathison, ansiosa por salvar o mundo do terrorismo islâmico (e do traidor sargento Brody), é difícil de dizer.

Segurança Nacional está a ser filmada pela segunda vez em Israel. Danes e o resto da equipa estiveram aqui a filmar para a primeira temporada. A série foi desenvolvida a partir de uma outra sobre Israel, Prisoners of War, do escritor Gideon Raff. E, como disse Alex Gansa - que criou e produziu, juntamente com Howard Gordon, a versão para a Showtime - a ideia de filmar no local foi uma redundância feliz. "Pegámos numa série israelita e adaptámo-la para a televisão americana apenas para ver como funcionaria o episódio piloto e depois levámo-la de volta a Israel para aí ser filmada com a mesma equipa da série israelita", explica Gansa. É um bom intercâmbio e provou ser eficaz ao trazer uma boa dose de realidade a uma série cuja intenção é levar à luz do dia a guerra contra o terrorismo de formas nunca antes vistas em televisão. Em Israel "há aquela sensação de caos e energia de que qualquer coisa pode acontecer a qualquer momento, algo que nunca se conseguirá enquanto filmamos em Charlotte", diz Gansa. "Apenas rezávamos para que Israel não atacasse o Irão enquanto filmávamos."

Danes recorda como foi stressante filmar algumas cenas iniciais da primeira temporada em Barta"a, uma cidade que é meio palestiniana, meio israelita. "O clima de tensão era palpável mas nunca me senti particularmente ameaçada", diz. Ela nunca tinha estado no Médio Oriente e, mais do que apreensiva, vinha curiosa. "Tem sido muito mais divertido e cosmopolita do que imaginei", diz, referindo-se a Isarel como o país no qual as pessoas "trabalham muito, preocupam-se muito e divertem-se muito também". "A vida nocturna é incrivelmente animada", continua, "e há um espírito positivo e de generosidade em relação a nós, ao contrário do que muitos poderiam supor". De facto, numa noite em que estávamos sentados no bar do hotel, que fica em frente ao mar, algumas pessoas aproximaram-se e confessaram adorar Carrie Mathison e disseram como a série era importante e como era bom voltar a ver Danes a filmar em Israel.

Da primeira vez em que esteve no país, Danes estava mais preocupada em visitar e conhecer locais. "Fomos a Jerusalém e Masada e a todos aqueles sítios fascinantes", diz. Desta vez, passeou por Telavive, foi às compras, experimentou a gastronomia, gozou a cidade. "Fui algumas vezes à praia e a Jaffa, a antiga cidade portuária perto de Telavive". Diz que foi uma experiência menos festiva mas repleta de comida - comia de uma forma descontrolada. Naquela altura, Danes ainda não tinha anunciado que estava grávida do primeiro filho, o que pode muito bem explicar o seu apetite e a vontade de fazer pausas tranquilas entre as filmagens.

Horas depois, Danes está sorridente e muito faladora mas ainda dá para sentir alguma daquela energia nervosa de Carrie Mathison. Depois da terapia de electrochoques a que Carrie foi sujeita no ultimo episódio, questiono-me se a personagem vai voltar à segunda temporada uma pessoa mudada. Um pouco, diz Danes. "Ela debateu-se com alguma perda de memória. O cérebro está um bocado entorpecido. Mas atingiu ali um momento de inactividade e o mais provável é que isso fosse o desejado."

A maneira como Danes leva à cena a demência de Carrie, fruto de um trabalho esmerado e de muita investigação, numa entrega intensa, acabou por levar espectadores da série a preocuparem-se com a própria sanidade mental da actriz. Gansa disse-me mais tarde que recebeu emails, sobretudo de "pessoas que são bipolares, preocupadas com o facto de Claire também o poder ser, de tal forma traz para a câmara uma interpretação tão convincente". Gansa diz ser muito frequente, quando vemos um actor a desempenhar o papel de alguém que é portador de uma deficiência mental, "imaginarmos Dustin Hoffman no Rain Man [Encontro de Irmãos]ou Sean Penn em Sam [A Força do Amor]. Mas, numa escala mais alargada, não sentimos que é Claire a desempenhar um papel. É a própria Carrie Mathison".

Danes leva muito a sério a responsabilidade pela condição da personagem que interpreta; mas como actriz, diz, a demência é uma forma que a deixa exausta. Pergunto-lhe se ficou ansiosa nos meses em que esteve afastada de Carrie. "Soube-me bem este afastamento. É como se a tivesse posto na prateleira do frigorífico ao lado da vodka. Até me sentia um bocado nervosa com a ideia de lhe ter tão fácil acesso, mas não, ali está ela, ao lado da vodka. Gosto muito dela [Carrie]. É bem intencionada e uma espécie de super-heroína. Por isso até tem graça voltar a pôr a minha capa da Carrie maluca."

Em parte, o prazer de assistir a Segurança Nacional vem da forma como a série dramatiza esta capa de paranóia que todos na verdade envergámos nos anos que se seguiram ao 11 de Setembro. "Carrie é perceptiva", diz Danes, "mas a fixação dela em manter o mundo são e salvo é tão intensa que ultrapassa tudo. Ela tem de ser muito autovigilante para manter o seu próprio bem-estar. Carrie carrega uma bomba-relógio e tem de a monitorizar permanentemente."

Danes sente-se recompensada por saber que as pessoas que vivem estes dilemas na vida real apreciam a série. Mantém-se em contacto com a agente da CIA - "a minha irmã mais crescida" -, que acompanhou como uma sombra enquanto se preparava para o papel e que lhe deu muitas instruções sobre as dificuldades que uma mulher enfrenta quando trabalha no Médio Oriente tendo como alvo suspeitos masculinos. Que o Presidente Obama tenha manifestado ele próprio entusiasmo pela série é algo, diz Danes, "que tem tanto de fantástico quanto de assustador".

Quando mais tarde falo com o actor que contracena com Danes, o inglês Damian Lewis, ele defende que a legitimidade de Segurança Nacional advém do facto de ser uma série que insiste na ideia de que "a guerra é feita tanto pelos soldados que estão na linha da frente quanto pelas famílias que ficam para trás". Diz também que é uma série que rejeita os paralelismos fáceis entre o islão e a violência: "Eu não a teria feito se fosse esse o caso." "Mas Brody [a sua personagem] age mais em nome próprio, o seu papel é mais o de vigilante do que o de jihadista. Penso que ter um jovem marine que encontra beleza, poesia e uma forte energia na sua religião passa uma mensagem mais subversiva do que se se tratasse de alguém a quem pura e simplesmente lhe lavaram o cérebro."

Mas sobretudo, diz Lewis, a série vive do equilíbrio da relação enigmática entre ele [sargento Brody] e Carrie Mathison. "Ainda bem que é a Claire a fazer esse papel. É um trabalho complexo e com tantas nuances, sempre às voltas com o facto de nunca se perceber muito bem se, sempre que os dois se vêem, querem dormir juntos ou matar-se um ao outro. E adoro que seja ela nesse papel porque é fantástica e tão empenhada."

Gansa confessa que no minuto em que ele e o co-autor Howard Gordon assentaram ideias sobre criarem a personagem de uma agente da CIA, Claire Danes foi o nome que lhes surgiu (de tal modo isso é verdade que Claire foi, inclusive, o nome que usaram para o primeiro esboço do argumento). Ambos tinham visto recentemente o retrato que Claire Danes fez da médica autista Temple Grandin no biopic com o mesmo nome da HBO, premiado com um Emmy [em 2010]. E ambos lhe seguiam a carreira há anos. "Já conhecíamos a Claire-actriz desde os tempos da sua adolescência e da série My So-Called Life. Ela teve sempre essa capacidade", diz Gansa.

Depois do seu papel em Temple Grandin (2009), Claire não trabalhou durante cerca de dois anos, em parte porque não lhe parecia que havia bons filmes a serem feitos - "o mundo lá fora é tramado" - mas também porque ter estado no papel daquela médica foi algo que a deixou extenuada e "não queria voltar a ter papéis ingénuos, porque isso foi o que fiz durante bastante tempo". Danes resistiu sempre a fazer papéis em que todos a esperariam ver desde que contracenou com Leonardo di Caprio no filme de Baz Luhrmann, Romeo+Juliet [Romeu e Julieta]. Foi importante esperar pela proposta certa e aproveitar o tempo para estar com o marido (casou-se com Dancy em 2009). Acabou por aceitar o papel em Segurança Nacional, e assinar por uns mais que prováveis sete anos, "porque a escrita me garantia qualidade. Tornei-me outra pessoa por ver The Wire [série também da HBO] e o que quer que fizesse teria de ter esse alcance".

A certeza de ter este trabalho também lhe permite um certo equilíbrio entre a série e a vida familiar, que poderá revelar-se mais complicado nos próximos tempos. Danes assegura que se socorreu de bons mentores, sobretudo Jodie Foster e Meryl Streep, com quem trabalhou nos filmes Home for the Holidays [Fim-de-semana em Família] e The Hours [As Horas], respectivamente. "Admiro-as tanto pela vida que conseguem ter, como pelas suas emocionantes carreiras. Têm vidas preenchidas e em família. E estão neste mundo - não são loucas - e isso é uma grande conquista. Preferia não trabalhar a tornar-me numa neurótica."

Danes começou por provar isto mesmo quando abandonou a carreira por dois anos e foi para a Universidade de Yale para estudar Psicologia, pouco depois de ter actuado no Romeu e Julieta. A ideia de ficar "refém da fama" é algo que a assusta. Quando se envolveu em 2003 com Billy Crudup - com quem contracenou no filme Stage Beauty [Beleza em Palco] e que, por causa dela, deixou a namorada, Mary-Louise Parker, grávida de sete meses - os tablóides deram-lhe logo o epíteto de destruidora de lares. Hoje em dia, diz, a sua vida é "demasiado previsível" para fazer manchetes. "Nem consigo imaginar estar no papel de Angelina Jolie ou Jennifer Aniston", diz. "Estava a ver um documentário sobre a Britney Spears e tudo aquilo que ela tem de aguentar deixou-me chocada."

O casamento, diz Danes, foi uma libertação - "Uma imensa necessidade que ficou satisfeita." Danes e Dancy vivem em Nova Iorque e têm ainda uma casa em Notting Hill, em Londres. A ela agrada-lhe esse contraste. Sentados perto do mar, em Israel, pergunto-lhe sobre como vê as dificuldades de ter uma família enquanto tanto ela como o marido procuram manter as suas carreiras de actores (perguntas que acabam por se revelar mais urgentes do que na altura poderia supor). "Gostaríamos de ter filhos, algures. E teremos de perceber como é que isso vai ser possível. Mas quando fiz o liceu já era actriz, portanto tenho alguma experiência em fazer várias coisas ao mesmo tempo."

Por enquanto, tem outro compromisso em mãos: a "louca Carrie". Danes gosta de pensar que vão envelhecer juntas. "É algo que me dá muito mais prazer do que outras coisas", e com isso está a referir-se à sua vida de actriz. "Adoro as palavras. É uma coisa física. É intelectual. É psicológica." Faz uma pausa, acaba a bebida, sorri. "É como se pudesse, ao mesmo tempo, esquiar no gelo e voar no trapézio. Pode-se pedir mais do que isto?"

a Exclusivo PÚBLICO/The New York Times

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