Ana Saramago Matos NetaSe podes ler, lê. Se leste, reflecte
a Não creio que o mais importante seja, neste contexto, falar da minha vida familiar e pessoal com o meu avô, igual a tantas outras relações avô e neta desde que o mundo é mundo. Os avôs representam essa coisa maravilhosa que é a sabedoria. Tive a sorte de ter tido um avô sábio que, nas entrelinhas dos nossos encontros, me ia ensinando e transmitindo os seus valores, as suas preocupações, as suas convicções. A lê-lo e a escutá-lo, aprendi o que é a disciplina e o trabalho. Como ele me disse há muitos anos, a propósito do ofício de ser escritor, 90% é trabalho e 10% é inspiração. Aprendi o que é a dedicação às causas, Palestina, Chiapas, Timor, Sara Ocidental, entre tantas, e, no fundo, uma única: a defesa dos Direitos Humanos. Aprendi o que é o espírito de missão com este avô que, sem qualquer queixume ou sacrifício, percorreu a imensidão do mundo para falar e comunicar com milhares de pessoas de todas as idades, raças, religiões, com o compromisso de dar o seu contributo para que o mundo fosse um lugar melhor. E deu esse contributo com a palavra: a sua "arma", a sua força! Sempre a palavra, o respeito por ela, com a consciência profunda de que há que usar a palavra certa em cada momento.
Dizia que cada um de nós tem o seu metro quadrado e que apenas precisamos de o regar diariamente, escavando, a cada dia, um pouco mais fundo. Para bem de todos nós, o seu metro quadrado é (e digo "é" porque ele persiste gigante, planetário, solar) toda a atmosfera: são os seus livros, textos, conferências, discursos, apresentações, entrevistas. No fundo, é a sua palavra escrita que se manterá enquanto existirmos, nós, os seus leitores. Já não o escutaremos. Contudo, se fecharmos os olhos enquanto lemos e relemos as suas páginas, certamente que o sentiremos a sussurrar aos nossos ouvidos.
Recentemente, estava eu na Fundação com a Rita Pais e o Sérgio Letria e perguntou se estávamos felizes. Assim do nada (pensávamos nós...), faz-nos esta pergunta mas quase como se estivesse a afirmar: estejam felizes. Ficámos os três sem resposta, o que, aliás, era recorrente nas imensas perguntas que ele nos deixou. Talvez agora lhe possa responder: sim, felizes por o havermos conhecido, por termos existido no seu tempo, por termos convivido com ele. E a essa felicidade acrescenta-se a enorme responsabilidade de o ler, de escutar a sua Blimunda que anda pelo mundo a recolher as vontades, de cuidar do nosso metro quadrado, de pensar, de pensar muito. Parafraseando uma das suas mais conhecidas epígrafes, Se podes ler, lê. Se leste, reflecte. É isso que iremos fazer.
Como tantas vezes foi dito e tão recentemente em voz bem alta: Obrigada, Saramago. E como na génese da palavra "obrigado" está o compromisso de retribuir aquilo que nos foi dado, a ti, Saramago, vamos ler-te sempre, em agradecimento por fazeres de todos nós pessoas melhores. E para podermos, como tu também disseste, contar os dias pelos dedos e encontrar a mão cheia. Lisboa, 24 de Junho de 2010