Albert Cossery
Albert Cossery viveu a maior parte da vida em Paris, escreveu sempre em francês, mas o seu mundo era outro. Nascido no Cairo, retratou todo o saber ocioso dos marginais e pobres do seu país. A pergunta que decorre da sua obra é sobretudo uma: porquê trabalhar?
Por Ricardo Dias Felner
a Era um homem fora do seu tempo, derrotado pelo seu tempo, mas foi coerente até ao fim. O romancista egípcio de língua francesa Albert Cossery morreu esta semana, com 94 anos, e tudo aconteceu como havia desejado: um último suspiro no seu quarto do hotel Louisiana, na mítica Rue de Seine, em Paris, onde vivia desde finais da década de 40. Numa altura em que os valores do trabalho, do profissionalismo, do dinamismo, do consumo e da tecnologia pulverizam o mundo, quase tudo o que o escritor representou foi sendo ultrapassado. Mas isso nunca o desviou da sua filosofia.
A indolência, a preguiça, o desprendimento material e político, a alegria dos bas-fonds, guiaram-no sempre. Como as personagens que criou, seus velhos conhecidos da cidade do Cairo, Cossery era capaz de viver a pensar, a observar, sem ter um projecto ou um objectivo imediato - sem uma ambição que não a do prazer e a da reflexão para lá do senso comum.
Também por isso só publicou oito livros (em Portugal, todos pela Antígona), um em cada dez anos. E também por isso cada um desses livros é uma pedra preciosa, de um rigor extremo no uso das palavras, sempre de uma elegância rara. O poeta e crítico literário Pedro Mexia e Júlio Henriques, um dos seus tradutores para português, são apenas alguns dos que lhe elogiaram a "invejável limpidez" e a "grande depuração" dos seus textos.
O próprio Albert Cossery não renegava este tipo de elogios. Era um autor ciente da sua qualidade, por vezes arrogante. E não gostava que a demora no seu processo criativo fosse usada para o desvalorizar: quem quisesse acrescentar algo de novo à literatura, quem tivesse horror aos lugares-comuns, não podia nem devia produzir em série.
Aos seus colegas adeptos de metas, metodologias e prazos - que diziam escrever "cinco páginas todos os dias" - acusava-os de redigirem "um texto qualquer", impublicável para os seus parâmetros. "Eu escrevo uma frase. Simplesmente, reviro-a vinte vezes para conseguir dizer alguma coisa", contrapôs, numa longa conversa com o realizador francês Michel Mitrani, que viria a ser editada em livro.
Apesar de não ser um autor pródigo, nem gostar do marketing e dos eventos literários, a sua obra tornou-se singular e foi traduzida em 15 línguas. Para além disso, Cossery criou um pequeno grupo de indefectíveis, que acompanharam o seu percurso desde o início e que se reconheceram no ambiente e na forma de estar que promovia. Luís Oliveira, editor da Antígona (que publicou em Portugal todos os seus livros), é um dos seus admiradores incondicionais. Conheceu-o em meados da década de 90 e recorda, das conversas no Café de Flore, em Saint Germain-de-Prés, onde o escritor se espreguiçava todas as tardes, "um homem que não dizia uma banalidade", mas que podia ser duro. "Quando alguma coisa não lhe agradava, fazia um olhar que gelava", lembra.
O editor foi um dos seus alvos. Sem qualquer diplomacia, para sublinhar a diferença de pensamento com Luís Oliveira, que sabia ser o seu único editor em Portugal, Cossery definiu-o certa vez como um "comerciante" e chegou mesmo a duvidar das suas qualidades. Luís Oliveira apenas lhe perguntara onde arrumava ele a sua biblioteca, visto viver num quarto modesto de um hotel modesto. O romancista respondeu-lhe: "Fique sabendo que guardo apenas entre 50 e 100 livros e que estão todos no meu quarto comigo. Se acha que existem mais de 10 livros por século que merecem a pena, então não deve continuar aqui a falar comigo".
Júlio Henriques, que fez a tradução de três dos seus livros (Mandriões no Vale Fértil, A Violência e o Escárnio e Mendigos e Altivos), e que também conversou por "três ou quatro vezes" com Cossery, confirma o seu mau génio. "Era simultaneamente muito agradável e muito intratável", diz.
Uma das coisas que o aborreciam, recorda Júlio Henriques, era precisamente ter-se tornado numa personagem do bairro de Saint Germain-de-Prés, uma espécie de símbolo da vida boémia e excitante de Saint Germain-de-Prés. Continuava a frequentar os cafés, mas gostava de ficar apenas sentado a olhar a rua e a pensar, sem ser incomodado pelas "pessoas incongruentes" - leitores, escritores ou artistas - que frequentemente o abordavam.
Entre os amigos que fez, e com quem partilhou a noite de Paris das décadas de 40 e 50, encontravam-se Albert Camus, Henri Miller, Jean Genet ou Alberto Giacometti. Todos já mortos. Nos últimos anos, não era capaz de eleger um bom escritor, alguém que valesse a pena. "A Paris dos últimos anos já não lhe dizia nada", conclui Júlio Henriques.
Contra a militância
Albert Cossery nasceu no Cairo, filho de um proprietário literato e de uma mãe analfabeta. Aos 18 anos, começou a escrever - em francês, língua usada no Egipto naquela altura pela classe média - e as suas primeiras novelas, publicadas em revistas, já reflectem o imaginário do povo ocioso e pobre do seu país.
Com 32 anos, com o pretexto de se ir formar, viaja então para Paris. Mas nunca esquece o povo e o ambiente do seu país; nunca esquece o seu tema de sempre. Os oito livros que escreveu (sete dos quais já em Paris) tinham todos o Egipto como cenário e os seus habitantes como actores.
Henry Miller veria logo na colectânea seminal Os Homens Esquecidos de Deus o ideário que o autor iria defender até à sua morte. Num ensaio elogioso, que apresentou o escritor egípcio à vanguarda artista da altura, seria o primeiro a elogiar e a perceber a coerência da filosofia cosseriana da preguiça. Daí em diante, todos os heróis criados pelo escritor egípcio eram preguiçosos.
Estes miseráveis espirituosos, movidos pelo prazer e pelo sono, não deveriam, contudo, ser confundidos com idiotas amorfos e vazios. "Há a preguiça do homem que reflectiu e a preguiça dos idiotas." "Um preguiçoso inteligente é alguém que reflectiu acerca do mundo em que vive. Não se trata, pois, de preguiça. É tempo de reflexão. E, quanto mais preguiçoso fores, mais tempo tens para reflectir", concretizaria, em 1995, no livro de Mitrani Conversas com Albert Cossery.
A ideologia que perpassa nos seus livros e na sua forma de vida nunca assumiu, contudo, contornos panfletários: o escritor nunca quis doutrinar ninguém. É verdade que a propensão libertária, o seu desprezo pela autoridade - sobretudo política e policial -, bem como a crítica implícita ao capitalismo e ao materialismo, o poderiam situar em movimentos anarquistas ou comunistas. Mas não há nos seus textos qualquer resquício de militância, apenas pessoas que pensam diferente, que vivem num mundo diferente, personagens coerentes no seu mundo coerente, que transformam cada história numa história que vale por si, passível de ser devorada por qualquer leitor descomprometido farto de enredos e sociedades de telenovela.
Em A Violência e o Escárnio, aliás, Cossery trata de esclarecer tudo isto. Lido como uma crítica à militância comunista, o livro mostra a receita para combater o autoritarismo. A certa altura, Heikal aconselha o subversivo Taher a não agir com violência - porque isso seria levar os tiranos a sério, seria contribuir para o seu prestígio - mas a vencê-los "no seu terreno", o terreno da "palhaçada", escarnecendo-se das suas atitudes.
Cossery explicaria que "as pessoas que praticam o escárnio nunca manifestam raiva seja contra quem for. Divertem-se na vida. Tudo os diverte, até mesmo as guerras". E que essa era a razão pela qual os seus conterrâneos eram pessoas alegres, "um povo pacífico", onde existia "muito pouco ódio entre as pessoas".
No livro As Cores da Infâmia, o autor daria um retrato vivo, magnífico, dessa ideia. "Impermeável ao drama e à desolação, esta chusma de gente carreava uma espantosa variedade de personagens pacificadas pela sua ociosidade; operários sem trabalho, artesões sem clientela, intelectuais desinteressados da glória, funcionários administrativos expulsos das repartições por falta de cadeiras, diplomados das universidades vergados ao peso da sua ciência estéril, enfim, os eternos trocistas, filósofos amorosos da sombra e da quietude que dela emana, para quem a deterioração espectacular da sua cidade tinha sido especialmente concebida para lhes aguçar o sentido crítico."
A escrita polida
Só uma coisa pode, no entanto, perturbar até os espíritos menos preconceituosos na obra de Cossery. Em nenhum dos seus textos, ele se refere a uma relação normal com uma mulher normal. As mulheres que encantam as suas personagens são sempre adolescentes, raparigas meigas e prestáveis, frequentemente prostitutas.
Júlio Henriques arrisca caracterizar o escritor como um misógino, mas Albert Cossery nunca abordou com ele, nem com ninguém, de forma profunda e pública, o assunto. A Michel Mitrani diria apenas, comentando o desinteresse de Rafik, personagem de Mandriões no Vale Fértil, perante uma mulher desnuda: "O sono ocupa-o mais do que o desejo. É algo que também me acontece a mim, isto é, as mulheres que amo cansam-me. Ser simpático, indulgente, durante três ou quatro horas torna-se cansativo."
Nada disto deve, no entanto, desmerecer Albert Cossery. Até porque seria redutor, injusto e pouco rigoroso, sublinhar apenas a mensagem ou o tema dos seus livros. A escrita de Cossery, o seu estilo próprio e cuidado, vale por si. A sua linguagem é culta, adjectivada e erudita sem ser rebuscada nem supérflua: a palavra certa, no momento certo. Acresce um ritmo perfeito, o encadeamento das frases, quase sempre curtas, sem um entrave; e personagens extraordinárias, fundas, compondo histórias mirabolantes e surpreendentes. Por outro lado, a ironia do princípio ao fim dos livros, o sarcasmo, o humor negro e subliminar a cada página.
Sigamos, por isso, o princípio do prazer de Cossery. Leiamos os seus livros devidamente descansados. Sejamos preguiçosos.