"A prudência era uma necessidade"

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Grazia Loparco, da congregação das Filhas de Maria Auxiliadora, fundou há dez anos uma associação para o estudo da época da II Guerra. Em Roma, e de acordo com os dados disponíveis, as casas religiosas terão acolhido, e salvo, cerca de 4300 judeus

Professora de História da Igreja na Universidade Pontifícia de Ciências da Educação, Grazia Loparco é religiosa da congregação das Filhas de Maria Auxiliadora. Há uma década, fundou com outros historiadores uma associação para o estudo da época da II Guerra, tornando-se numa referência no assunto. Várias pesquisas já feitas levaram mesmo à declaração de mais de 20 freiras e padres italianos "justos entre as nações" pelo Yad Vashem, o Memorial do Holocausto - ainda no final de Novembro, o cardeal Elia Angelo Dalla Costa, arcebispo de Florença que morreu em 1961, foi reconhecido como tal. E um livro de Gordon Thomas acabado de publicar em Portugal, Os Judeus do Papa (ed. Casa das Letras), fala do que define como um plano do Vaticano, com a envolvência de Pio XII, para salvar milhares de judeus.

Sabemos já que um terço das casas religiosas (220, em 750) em Roma acolheram judeus. Quantos?

Os dados seguros que temos falam de 4300 pessoas, numa comunidade hebraica que oscilava entre 10 mil e 12 mil. Mas o número peca provavelmente por defeito, porque nem todas as casas religiosas puderam documentar a presença de judeus.

Era um risco?

Era arriscado escrever. Muitos institutos religiosos, depois da libertação de Roma, a 4 de Junho de 1944, escreveram o que acontecera. Alguns tinham apontamentos, por vezes com nomes falsos. Temos listas com nomes, mas geralmente são posteriores à libertação: o nome era um caminho para prender as pessoas, tinha de se evitar escrever fosse o que fosse, porque se temiam perseguições. A prudência era uma necessidade.

Num artigo que escreveu no L"Osservatore Romano, em Janeiro, falava desses judeus. Quem eram eles?

Eram de todas as classes sociais, homens, mulheres e crianças, por vezes em família (nuclear ou alargada), outras sozinhos. Em alguns casos, eram os pais que confiavam as crianças às casas religiosas. Havia uma grande diversidade de estratos sociais: comerciantes, operários, menos favorecidos. Mas precisávamos de conhecer mais a fundo, para reconstruir melhor a sua vida. Os judeus em Roma estavam muito integrados.

Havia outros refugiados? No Colégio Português, houve 40 ou 50 pessoas, mas só três ou poucos mais seriam judeus...

Sim. A pesquisa centrou-se inicialmente na vertente hebraica, porque era a que tinha menos documentação. Preocupámo-nos em recolher documentação e história oral, antes que desaparecessem as testemunhas. Desta urgência documental, surgiu a escolha dos judeus. Mas, quando começámos a ler documentação, demo-nos conta de que os judeus eram uma das componentes: a Igreja e os religiosos praticaram a caridade em relação a todos os que estavam em dificuldade.

Comunistas, socialistas, partigiani...

Sim. Muita documentação dizia respeito a esses, como também a renitentes à incorporação forçada. Em função do momento, esconderam-se pessoas procuradas injustamente.

Havia uma orientação do Vaticano?

Os críticos não querem reconhecer que, da parte da Santa Sé, tenha havido uma orientação. Na documentação que temos, sabemos que ela existia. Mas são os testemunhos dos diários e das crónicas que dizem que os superiores dos religiosos tinham temor de abrir as portas, sobretudo aos judeus. E que, da parte da Santa Sé, havia indicação de dar ajuda a qualquer um. Isto era feito através do passa-palavra: muitos padres que trabalhavam no Vaticano estavam em paróquias ou eram capelães de casas religiosas.

Em crónicas de casas religiosas femininas, relatam-se as indicações que vinham do Vaticano, muitas vezes directamente com o nome de Pio XII. E havia o próprio exemplo: Montini [então substituto da Secretaria de Estado, futuro Papa] Paulo VI, que estava todos os dias próximo de Pio XII, foi o primeiro a pedir a institutos religiosos que escondessem judeus. Há escritos a contar isso...

Há mais exemplos?

Sim. Nas Oblatas Agostinianas, as irmãs diziam que acolheriam bem uma senhora judia e a sua empregada, mas tinham dificuldade em receber o marido, até pela sua idade, era idoso. Elas pediram a Montini a permissão excepcional e ele respondeu que podiam recebê-lo.

Há respostas concretas que nos dizem que havia encorajamento [a que se recebessem as pessoas]. E esse encorajamento era feito pela Santa Sé, de onde muitas vezes saíam camiões com víveres para distribuir por esses conventos.

Mais perto da Santa Sé estava a Guarda Palatina [GP]. Durante a ocupação de Roma, foram inscritos na GP [nessa época, a mais próxima do Papa, dissolvida em 1970] muitos judeus. Uma vez veio ter comigo um judeu que me mostrou uma foto do pai com a farda da Guarda e me disse: "Se o meu pai não tivesse encontrado a possibilidade de ser inscrito na GP, eu não teria nascido, porque ele teria sido preso."

A GP, que tinha normalmente 300 ou 400 membros, chegou naqueles meses a 2000 membros. Judeus, refugiados e dissidentes políticos foram inscritos na GP. Por isso se pode dizer que o Vaticano também ajudou directamente.

Com a abertura dos arquivos pode confirmar-se esta realidade?

Certamente poderão ser esclarecidas coisas que ainda hoje são dúvidas. Todavia, a partir dos 12 volumes dos Actos e Documentos da Santa Sé, já publicados por quatro jesuítas, sob a indicação de Paulo VI...

Dirigidos por Pierre Blet...

Sim... Em 1964, apareceu essa interpretação diferente sobre a figura do Papa Pio XII e Paulo VI quis esclarecer [o papel do antecessor]. A partir de alguns indícios, percebe-se que há muitas coisas mais e os historiadores esperam poder conhecer tudo.

Não me parece que isso vá mudar muito a opinião sobre a intervenção da Santa Sé e mesmo de Pio XII. Penso que serão confirmados estes indícios, mas, enquanto não tivermos os documentos, não podemos avaliar melhor.

Seria importante abrir os arquivos o mais rápido possível?

Claramente. Mas sabemos, da Secretaria de Estado, que isso não será possível antes de cinco ou seis anos, pelo motivo de que são muitíssimos documentos e é necessário fazer o tratamento arquivístico. Creio que isso poderá lançar até um confronto mais aberto mesmo com historiadores judeus que se interrogam sobre a figura de Pio XII.

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