Um líder que nasceu das circunstâncias

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Aristides Pereira em Lisboa, em 2002 fotos: miguel silva/arquivo

Primeiro Presidente de Cabo Verde morreu ontem em Coimbra, aos 87 anos. Homem de confiança de Amílcar Cabral, não sonhou em jovem com nada que se parecesse com política. O seu modo de ser ajudou a moldar a imagem do país

Será excessivo dizer que foi um líder acidental, mas Aristides Pereira, que ontem morreu nos Hospitais da Universidade de Coimbra, aos 87 anos, não parecia destinado a ser o primeiro Presidente de Cabo Verde. O seu perfil contido e ponderado destoava do de outros líderes africanos da sua geração e contribuiu para que, ainda na fase de partido único, o país começasse a ser encarado como um caso diferente.

As características pessoais de Aristides Pereira dificilmente permitiam antever nele um dos "pais de África", como em 2002 lhe chamou o PÚBLICO. "Era reservado, austero. Falava apenas quando era necessário, não era homem de improvisos, destoava dos pares do seu tempo, impunha-se pelo seu silêncio", lembra José Vicente Lopes, jornalista e escritor cabo-verdiano, que tem em preparação um livro de entrevistas com o dirigente histórico.

Afastado da política há 20 anos, Aristides Pereira, que assumiu a liderança do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) em 1973, após o assassinato de Amílcar Cabral - o líder fundador da luta pela independência -, viera em Agosto passado para Portugal, onde foi operado na sequência de uma fractura no colo do fémur agravada pela condição de diabético.

"Não nasci animal político"

Foi Presidente de Cabo Verde de 1975 a 1991, quando perdeu as primeiras eleições presidenciais livres para Mascarenhas Monteiro. O actual Presidente, Jorge Carlos Fonseca, eleito pelo MpD, oposição ao partido histórico da independência, disse ontem, citado pela Lusa, que o país perdeu uma "figura marcante" da sua história recente e referiu-se a Aristides Pereira como um "combatente pela independência".

O ex-Presidente português Mário Soares, amigo de Aristides, que conheceu em 1974, descreveu-o à agência noticiosa como "homem de grande inteligência, simpatia e modéstia, um homem de grandes predicados, muito patriota e muito sério".

O trajecto de Aristides Pereira, que um dia sonhou ser cirurgião, foi uma aparente contradição com o que dizia de si próprio. Mas ajudará também a compreender o modo como esteve na política. "Nunca sonhei, enquanto jovem, qualquer coisa que se parecesse com a política", disse em entrevista ao PÚBLICO, em 2002. "O que me levou à política foi a situação de humilhação, de exploração do povo cabo-verdiano e as injustiças do sistema colonial." "Diz-se de uma pessoa que nasce ou não animal político. Ora eu não nasci animal político. Eu nasci um homem comum. Foram as circunstâncias que levaram a que eu tivesse um papel político importante, e, estando eu nessa situação, esforcei-me por dar o melhor de mim. Mas não quer dizer que estivesse imbuído dessa intuição política", disse na mesma ocasião.

O antigo radiotelegrafista dos CTT nasceu a 17 de Novembro de 1923 na ilha da Boavista e começou a ganhar consciência política nos anos 1940, década em que emigrou para a Guiné. Em 1960 está em Conacri, ao lado de Cabral, a preparar a luta contra o colonialismo. "Foi sempre uma pessoa de extrema confiança de Amílcar Cabral", afirma Julião Soares Sousa, autor de Amílcar Cabral (1924-1973) - Vida e Morte de Um Revolucionário Africano, editado este ano pela Nova Vega. As "elevadas qualidades humanas" do antigo Presidente são destacadas por este investigador da Universidade de Coimbra, que o apresenta como "alguém extremamente sereno", que "procurava sempre ouvir a opinião dos seus companheiros". José Vicente Lopes considera que "a sua força vinha de uma autoridade moral que conseguia exercer sobre as pessoas à sua volta".

Com a morte do pai fundador da luta pela independência, Aristides assume a liderança do PAIGC, e, a 5 de Julho de 1975, torna-se Presidente da República. Viu com mágoa o fim do projecto de união política entre a Guiné e Cabo Verde, que acarinhara com Cabral e ruiu em 1980, quando Nino Vieira tomou o poder em Bissau.

Antes a autonomia?

Liderava o país na fase de partido único, quando a discordância foi reprimida, mas, considera José Vicente Lopes, "é em grande parte pelas suas qualidades pessoais, de diálogo, que Cabo Verde teve um regime de partido único diferente", por exemplo do de países como Angola. E que começou a ter protagonismo a nível internacional, ao acolher ainda em plena Guerra Fria, nos anos 1980, as primeiras negociações para a paz na África Austral.

Já retirado da política, uma declaração sua provocou grande estupefacção. "É minha firme convicção que a aspiração do povo de Cabo Verde não era a independência, mas a autonomia", disse em 1993, ao Expresso. O primeiro Presidente do país africano contrariava o seu passado e punha em causa aquilo por que lutara. Horas depois de publicada a notícia, Aristides Pereira sentiu necessidade de afirmar que não era isso que pensava. "Ou não estaria no pleno gozo das minhas faculdades mentais, ou então seria um sinal de incoerência da minha parte", referiu.

Homem da luta pela independência, Presidente no tempo do partido único, Aristides Pereira "abraçou a abertura política com sinceridade" e, depois de derrotado nas urnas, ele que "não era homem de aparatos" realizou finalmente o sonho de ser cidadão comum, refere José Vicente Lopes. Era visto, já depois de Presidente, a passear tranquilamente na Cidade da Praia.

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