Na Internet há vida depois da morte
A notícia espalhou-se, a imprensa internacional desdobrou-se em artigos sobre "a blogger mais velha do mundo" (ou a "avó blogger", como também era conhecida) e María Amelia, natural da Galiza, tornou-se uma pequena celebridade. No blogue, publicou textos e vídeos sobre o quotidiano, coleccionou as páginas dos jornais onde apareceu e, em lugar de destaque, colocou um link para várias fotos de um encontro seu com o primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero.
O último post no blogue data de 21 de Maio do ano passado e foi escrito por alguém da família. Começa de forma simples: "María Amelia López Soliño faleceu ontem, quarta-feira, 20 de Maio de 2009, às seis da manhã."
As centenas de textos e as dezenas de fotos e vídeos publicados por María Amelia continuam on-line, à disposição de qualquer pessoa, no endereço amis95.blogspot.com. O blogue está alojado no Blogger, o mais conhecido serviço deste género e que é propriedade da Google.
A Google é uma empresa que tem recursos suficientes para manter on-line os blogues para lá da morte dos utilizadores. E, para além disto, os familiares de María Amelia têm o nome de utilizador e a palavra-passe para aceder à área de administração do blogue, o que lhes permite manter a conta activa - ou até apagar tudo, se algum dia o quiserem fazer. Mas nem todos os casos são como este.
Na maior parte das vezes, a palavra-passe de um blogue, conta de e-mail ou perfil numa rede social são conhecidos apenas pelo próprio utilizador. E, quando este morre, fica frequentemente ao critério da empresa que presta o serviço a decisão sobre o que fazer com o "legado digital". Às vezes, o problema é uma questão emocional (é o caso da família que vê a página do Facebook do familiar que morreu ser inundada de comentários). Noutras situações, há assuntos importantes (como um negócio) que ficam pendentes porque os herdeiros não conseguem aceder a uma conta de e-mail.
A política seguida pelas muitas empresas que prestam serviços on-line varia. O Facebook, por exemplo, transforma o perfil dos utilizadores que morrem numa espécie de memorial. Isto significa que alguma informação é retirada e que a página fica disponível apenas para aqueles que tiverem sido confirmados pelo utilizador como "amigos".
Para que o Facebook transforme um perfil num "memorial" é preciso que alguém comunique a morte do utilizador (há no site um formulário próprio para isso) e envie uma prova de morte (uma certidão de óbito ou uma notícia sobre o assunto, por exemplo). O Facebook nunca entrega a palavra-passe de acesso. Mas, a pedido dos familiares, há a possibilidade de apagar a conta completamente.
Oportunidade de negócioJá o Twitter não especifica nos termos de utilização as regras que segue para lidar com a morte dos seus utilizadores e não respondeu a um pedido de esclarecimento do P2. Mas um porta-voz da empresa já afirmou publicamente que a política do Twitter passa por encerrar a conta a pedido de familiares, mas nunca facultar os dados de acesso.
Muitos serviços permitem que os familiares ou amigos próximos dos utilizadores que morreram acedam aos dados - mas o processo é lento. O GMail (o serviço de e-mail da Google) avisa que é preciso esperar um mês depois de enviados os comprovativos da morte do utilizador, tempo que é usado pela empresa para verificar a autenticidade da documentação. Um acesso mais rápido só será possível se houver uma ordem judicial.
Em Portugal, a lei obriga as empresas a cederem os dados aos herdeiros, esclarece o advogado da PLMJ Manuel Lopes Rocha. "Quando alguém morre, os herdeiros herdam um conjunto de direitos que não se traduzem só num património. Há um conjunto de direitos de personalidade que podem incluir a correspondência e de direitos imateriais, como os direitos de autor, que os herdeiros, naturalmente, herdam", explica o especialista. "Ora, não há razão para que não se aplique aos "bens digitais" idêntico regime. Se, para exercer esses direitos, eu tiver de solicitar a uma empresa que me dê acesso a esses elementos, ela é obrigada a dar-me acesso."
O problema é que estes processos tendem a ser burocráticos. Ter que comprovar a morte de um utilizador perante os responsáveis dos vários serviços on-line que este tenha usado pode ser uma tarefa difícil. Como não há problema que não dê origem a uma oportunidade de negócio, já há quem esteja a vender soluções para a passagem da herança digital.
O Legacy Locker é um de vários sites que permitem aos clientes guardarem palavras-passe e outros dados de acesso a serviços on-line. Em caso de morte, o Legacy Locker encarrega-se de enviar a informação às pessoas que tenham sido designadas pelo cliente.
O serviço custa 30 dólares anuais (21 euros), ou 300 dólares (210 euros) para uma subscrição vitalícia (enquanto a empresa durar, pelo menos). Há uma modalidade gratuita, mas tem várias limitações.
Deixar conselhos aos filhosO Great Goodbye é outro serviço que encontrou na morte um modelo de negócio. Aqui, os utilizadores podem escrever e-mails (ou gravar ficheiros de som e vídeo) para serem enviados apenas depois da morte.
Ao registar-se, o utilizador recebe um código que deverá entregar a pessoas de confiança. Quando uma destas pessoas introduz o código, o utilizador, caso esteja vivo, tem 21 dias para evitar que os e-mails sejam enviados. Findo esse prazo, a correspondência segue para os destinatários pré-definidos.
Este tipo de serviços pode ser usado para facilitar a vida aos herdeiros. Mas também pode servir para enviar mensagens de parabéns (há sites que permitem enviar e-mails em datas exactas - por exemplo, o aniversário de alguém), para deixar conselhos aos filhos ou até para revelar um segredo que nunca se teve coragem de contar em vida.
Alojamento permanenteDesde que explodiu a moda dos blogues, há meia dúzia de anos, que muitos políticos, escritores, cientistas e demais pensadores abriram um espaço de publicação on-line. O estilo varia entre a crónica pessoal e textos sobre as áreas em que cada um é especialista. Rapidamente, e por entre as banalidades do quotidiano, a blogosfera e os sites pessoais transformaram-se num enorme repositório de informação e conhecimento útil - e não há garantia de que este acervo permaneça on-line quando os autores morrerem (embora sites como o Internet Archive se dediquem a armazenar os conteúdos da Web, fazem-no de forma incompleta).
Há duas possibilidades para abrir um blogue. Uma, menos comum, passa por comprar um domínio próprio (ou seja, um endereço de Internet único, do estilo oseunome.com) e por contratar um serviço de alojamento de páginas. O preço do registo de um domínio ronda os dez euros anuais. O preço do alojamento (isto é, o espaço num servidor onde ficam armazenadas as páginas e toda a informação) varia muito - para uso pessoal, basta gastar umas poucas dezenas de euros por ano.
Os bloggers que optam por esta modalidade querem ter mais liberdade sobre a configuração do respectivo blogue e conseguir uma identidade mais forte na Internet. Mas há um senão: assim que a factura deixar de ser paga, o domínio volta a ser posto à venda e a informação alojada no servidor perde-se.
A opção mais comum - por ser mais barata, mais rápida e tecnicamente mais simples - é abrir um blogue num serviço gratuito como o Blogger ou o Wordpress. Deixa de haver uma factura para pagar - mas o blogue só permanecerá on-line enquanto a empresa que presta o serviço assim o quiser.
O veterano da blogosfera Dave Winner - já descrito em alguns jornais (e pelo próprio) como o "pai" dos blogues - indicou no seu popular blogue Scripting News uma possível solução para o problema: pagar a uma empresa credível uma quantia suficiente para que esta assegure a permanência on-line da informação. Winner afirmou estar disposto a pagar dez mil dólares por um serviço deste género. Seria o preço de uma morada permanente na Internet.