Cópia privada, vetos políticos e o timing das coisas
A actualização da lei da cópia privada aprovada pela maioria consegue a proeza de vir cedo de mais e tarde de mais ao mesmo tempo.
O timing é essencial em muitas coisas importantes da vida. Um bom soufflé depende do timing. Um bom home run depende do timing. Um bom isso-em-que-está-a-pensar depende do timing. E uma boa lei também depende do timing. Não basta uma apurada técnica legislativa. Uma lei, para ser boa, não pode vir cedo de mais, nem tarde de mais. A actualização da lei da cópia privada aprovada pela maioria — além de outros problemas de que padece, como o facto de se basear i) na presunção de que os adquirentes dos aparelhos os vão usar para armazenar conteúdos que não são da sua autoria e ii) num prejuízo que, a existir, não está cabalmente demonstrado — consegue a proeza de vir cedo de mais e tarde de mais ao mesmo tempo.
Tarde de mais porque está desactualizada à nascença. Ou obsoleta, como lhe chamou Cavaco Silva na nota justificativa do veto, citando o parecer da Deco sobre a lei, porque pouco “sintonizada com a evolução tecnológica já verificada”. O timing legislativo é especialmente importante nos casos de diplomas relacionados com a tecnologia. Bem sei que nestas coisas da tecnologia, como na bola, os prognósticos só devem ser feitos no fim (um exemplo: em 1959, a IBM disse aos futuros fundadores da Xerox que o tamanho do mercado das máquinas fotocopiadoras não justificava a sua produção). Mas eu não compro uma pen há anos. E é provável que Cavaco Silva também não. Vai tudo para a Dropbox. Ora, a compensação pela cópia privada não incide sobre o armazenamento remoto de conteúdos na cloud. Além de que, à medida que a popularidade dos serviços de streaming (YouTube, Spotify e afins) cresce, a cópia privada parece tender para a extinção.
Cedo de mais porque, como afirma o Presidente, “o debate sobre a 'cópia privada' tem atravessado a União Europeia” e tem “vindo a abranger a própria aplicação dos instrumentos legislativos europeus e mesmo a jurisprudência recente do Tribunal de Justiça da União Europeia”. De facto, são múltiplos os casos a que o tribunal do Luxemburgo tem dado resposta sobre esta matéria. Num acórdão recente (C-463/12, Copydan Båndkopi), o tribunal desarmou os interessados na aprovação da lei de um dos seus principais argumentos — o de que Portugal estava obrigado pelo Direito da União Europeia a actualizar a lei da cópia privada —, dizendo que a definição das situações em que não há lugar à cobrança da compensação pelo facto de o prejuízo ser mínimo é da discricionariedade dos Estados-membros.
A actividade do Tribunal de Justiça da União Europeia e as também recentes alterações legislativas em diversos Estados-membros apontam para que a cópia privada venha a ser uma das matérias objecto de revisão na primeira iniciativa legislativa do mandato de Günther Oettinger, comissário europeu para a Economia e Sociedade Digitais. Qualquer actualização corre, por isso, o sério risco de vir a revelar-se prematura.
A maioria pode ainda confirmar o voto ou alterar o diploma e sujeitá-lo a nova votação. Mas o timing das coisas — e todas as outras razões já sobejamente discutidas — aconselha a que não faça nem uma, nem outra.
Docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa