Apple recusa desbloquear iPhone de terrorista e alerta para implicações "arrepiantes"
Empresa foi intimada a criar uma versão do seu sistema operativo para que o FBI possa vasculhar o telemóvel de um dos atiradores de San Bernardino. Mas avisa que esse programa poderia depois ser usado por organizações criminosas.
A batalha que opõe a Apple à polícia federal e às agências de serviços secretos norte-americanas conheceu nas últimas horas um desenvolvimento que poderá ser decisivo para o futuro do debate sobre segurança e privacidade. Dois meses e meio depois do ataque terrorista em San Bernardino, na Califórnia, um tribunal ordenou a empresa a criar um programa para que o FBI possa desbloquear o iPhone usado por um dos atacantes. Alegando que as implicações dessa ordem são "arrepiantes", o patrão da Apple, Tim Cook, prometeu lutar contra as autoridades até ao fim.
Em causa está o acesso a dados gravados no telemóvel de Syed Rizwan Farook, o norte-americano que matou 14 pessoas no condado de San Bernardino, em Dezembro do ano passado, num ataque cometido com a sua mulher, Tashfeen Malik, uma paquistanesa que passou a maior parte da vida na Arábia Saudita. Os atacantes tinham jurado fidelidade ao Estado Islâmico (EI), mas não há indícios de que a operação tenha sido montada com ajuda externa – à semelhança de outros ataques, principalmente na Europa, terá sido planeado e organizado pelos próprios executantes, sob a influência da ideologia extremista do EI.
Ambos foram mortos pela polícia no dia do ataque, e as autoridades encontraram vários aparelhos electrónicos perto da cena do crime, em casa do casal e no carro que os dois usaram para se deslocar durante o ataque – pens digitais, discos rígidos que acabaram por ser recuperados e pelo menos dois telemóveis destruídos que foram deitados a um caixote do lixo. Mas a polícia encontrou também um telemóvel intacto no carro dos atacantes – um modelo iPhone 5C, da Apple, que ninguém no FBI conseguiu abrir até agora.
Um telemóvel blindado
Os responsáveis pela investigação dizem que precisam de ler as mensagens e ver as fotografias que estão guardadas nesse telemóvel, mas não conseguem porque o seu utilizador definiu um código de bloqueio, que pode ser constituído por quatro ou seis números, ou por uma quantidade muito superior de uma combinação entre números e letras.
As autoridades já sabem de que tipo é esse código (porque os espaços para o seu preenchimento aparecem no ecrã), mas não têm maneira de descobrir que números e/ou letras são os correctos, e nem querem arriscar – devido a uma opção que pode ter sido activada pelo utilizador, tudo o que estiver gravado no telemóvel será apagado se alguém errar dez tentativas.
É aqui que entra a Apple, como fabricante do telemóvel em causa. Segundo a polícia federal e a juíza Sheri Pym, do Tribunal Distrital para o Distrito Central da Califórnia, a empresa tem de ajudar ainda mais as autoridades neste caso – cumprindo as suas obrigações legais e ordens judiciais, a Apple já entregou à polícia tudo o que o atacante tinha guardado no iCloud, um serviço onde é possível gravar fotografias, contactos e outro tipo de documentos fora do telemóvel, na chamada "nuvem".
Os documentos gravados no serviço iCloud podem ser facilmente obtidos pela Apple, mas a informação guardada no telemóvel é outra história, principalmente nos modelos mais recentes (os que têm o botão de reconhecimento através de impressão digital). Nestes casos, a operação que permite o acesso ao aparelho é muito complicada – depende da combinação entre o código de bloqueio e uma chave que está embutida no interior do próprio aparelho, numa espécie de pequeno computador à parte daquele que faz o telemóvel funcionar, e a que a Apple garante não ter acesso.
Não é esse o caso do iPhone que o FBI quer desbloquear, porque o modelo em causa não tem esse sistema embutido no próprio aparelho. Mas para as autoridades o problema é o mesmo – apesar de a operação para aceder ao telemóvel em questão ser feita através de ligações no sistema operativo (software), e não no aparelho (hardware), só a Apple pode abrir a porta ao FBI porque qualquer novo software instalado tem de ser reconhecido pelos servidores da empresa.
Na prática, o que o tribunal da Califórnia exige é que a Apple crie uma versão do seu sistema operativo que só possa ser injectada no telemóvel de Syed Rizwan Farook, e que permita fazer três coisas: desactivar a função que permite apagar todo o conteúdo após dez tentativas; ligar esse telemóvel a um computador rápido que envie milhares e milhares de combinações possíveis até acertar; e que essas combinações possam ser enviadas sem qualquer intervalo de tempo entre elas, como acontece na versão normal do sistema operativo – entre a 1.ª e a 2.ª tentativa há um segundo de intervalo, mas essa espera vai aumentando até que da 9.ª para a 10.ª já é preciso esperar uma hora.
Uma chave mestra
Assim que foi conhecida a ordem do tribunal, houve muita discussão sobre se a Apple pode, tecnicamente, fazer o que lhe é ordenado. Mas essa não é a questão, como se depreende da resposta assinada pelo patrão da empresa, Tim Cook – como está em causa um modelo mais antigo, isso até seria possível, mas a empresa considera que iria abrir um precedente perigoso.
"Desta vez, o governo dos EUA pediu-nos uma coisa que não temos, e cuja criação consideramos ser demasiadamente perigosa. Pediram-nos para construir uma porta das traseiras para o iPhone. Mais precisamente, o FBI quer que façamos uma nova versão do sistema operativo do iPhone, contornando várias características de segurança, e que a instalemos num telemóvel encontrado durante a investigação. Nas mãos erradas, este programa – que não existe hoje em dia – teria o potencial para desbloquear qualquer iPhone que esteja nas mãos de qualquer pessoa", escreveu o patrão da Apple.
Tim Cook já anunciou que vai recorrer da ordem do tribunal, o que tem de acontecer até domingo. Mas se for mesmo obrigado a criar uma versão especial do seu sistema operativo para o telemóvel de Syed Rizwan Farook, Cook avisa que isso poderá ser catastrófico para a generalidade dos cidadãos – os que guardam os seus importantes dados bancários ou simples fotografias que não querem que caiam nas mão erradas, por exemplo.
"O governo sugere que esta ferramenta só poderia ser usada uma vez, num único telemóvel. Mas isso não é verdade. Uma vez criada, a técnica poderia ser usada uma e outra vez, em qualquer telemóvel. No mundo físico, seria o equivalente a fazer uma chave mestra, capaz de abrir centenas de milhões de fechaduras – de restaurantes a bancos, de lojas a casas. Nenhuma pessoa de bom senso acharia isso aceitável", argumenta Tim Cook.