A Web vai matar as aplicações?

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As muitas aplicações são uma das razões do sucesso do iPhone Miguel Madeira

Em Junho, o jornal inglês Financial Times passou a pedir aos leitores para deixarem de usar "imediatamente" a aplicação para iPhone e para iPad. A decisão pode parecer estranha. Os aparelhos da Apple, que deram origem a uma avalanche de smartphones e tablets de outras marcas, fazem brilhar os olhos dos patrões dos media, que esperam usá-los para vender conteúdos, em vez de os distribuírem gratuitamente na web.

O Financial Times, porém, tinha uma boa razão para querer que os utilizadores abandonassem a aplicação disponível na loja da Apple, onde todos os utilizadores de iPhone, iPad e iPod Touch (200 milhões de dispositivos em todo o mundo, um mercado gigante) têm de ir para instalar legalmente aplicações.

O jornal tem apostado em fazer dinheiro a partir de conteúdos digitais: dos 3,7 milhões de utilizadores registados no site do FT, 229 mil pagam entre 4,99 e 14,17 euros por semana para terem acesso a conteúdos exclusivos.

O problema é que a Apple passou a cobrar uma comissão de 30 por cento sobre cada compra feita a partir das aplicações. Se um leitor quisesse fazer, através da aplicação, uma assinatura dos conteúdos pagos do Financial Times, o jornal tinha de abdicar de 30 por cento desse dinheiro. Para além disto, a Apple ficava com os dados do cliente, informação preciosa para os anunciantes de um jornal.

A solução do FT foi criar aquilo que se chama uma aplicação web, que, neste caso, foi desenhada especificamente para os aparelhos da Apple.

Seja num computador ou num telefone, uma aplicação Web é essencialmente um site cujo comportamento é semelhante ao de aplicações tradicionais, as chamadas aplicações nativas. Um exemplo popular de aplicações web são serviços de e-mail que podem ser usados no browser, como o Gmail ou o Hotmail.

Dois meses depois de ter feito a mudança, o Financial Times parece estar no bom caminho. “Desde que a aplicação foi lançada teve mais de 350 mil visitantes”, avançou ao PÚBLICO uma porta-voz do jornal, Emily Gibbs. As aplicações para iPad e iPhone tinham sido descarregadas “mais de um milhão de vezes” em dois anos.

Daqueles 350 mil visitantes, 54 por cento criaram um atalho para a aplicação web do Financial Times no ecrã dos seus aparelhos, o que pode ser tido como uma medida do grau de fidelização. “A nossa prioridade agora”, explica Gibbs, “é lançar a aplicação web para dispositivos Android”, os principais rivais dos aparelhos da Apple.

Mais poder nos telemóveis

Há alguns anos, os utilizadores de computador tinham que fazer muitos tipos de tarefas em aplicações instaladas nos discos rígidos das máquinas. Hoje, de folhas de cálculo a processadores de texto e editores de imagens, há todo o tipo de aplicações para serem usadas directamente na web, que foi lançada publicamente fez ontem 20 anos e que teve desde então enormes avanços.


“Já podemos ver as pessoas a trabalhar em jogos [sofisticados] para browsers, algo que antes simplesmente nem sequer pensavam fazer”, observa ao PÚBLICO Charles McCathieNevile, o responsável pela adopção de normas web (chief standards officer) no browser norueguês Opera. O Opera foi lançado em 1995, mas nunca conseguiu uma fatia significativa do mercado. Contudo, desde cedo procurou marcar presença nos telemóveis e disponibiliza hoje várias versões móveis, tanto para smartphones, como para telemóveis mais simples.

“À medida que os telefones se tornam tão rápidos como eram os computadores há uns anos, penso que vamos assistir a uma redescoberta de material que antes só podia ser criado no formato de aplicação nativa”, argumenta McCathieNevile.

Em parte, isto acontece também graças à adopção do HTML5, uma sigla não muito conhecida, mas que promete alterar significativamente a forma como vamos usar a web nos próximos anos.

Trata-se de uma nova versão da linguagem-base para criar páginas na Internet. As especificações técnicas do HTML5 ainda não estão concluídas pela entidade responsável, o World Wide Web Consortium, mas os browsers – tanto para smartphones e tablets, como para computadores – já estão a adoptar a linguagem.

Entre outras novidades, o HTML5 permite usar os sites mesmo sem um acesso à Internet, armazenar mais informação nos próprios dispositivos e dispensa o uso de programas externos para aceder a conteúdos de vídeo ou áudio.

Uma aplicação web, porém, ainda não é uma substituição perfeita. Para começar, tem mais dificuldades em aceder a algumas componentes do aparelho, como o detector de movimentos, o GPS ou a câmara. Por outro, as aplicações web tendem a ser mais um pouco mais lentas e a ter uma utilização menos suave. E para algumas aplicações mais complexas é mesmo impraticável criar uma versão web.

O controlo apertado da Apple

O FT não foi o único afectado pela nova estratégia da Apple para espremer ainda mais receitas da sua bem sucedida loja online (que, segundo números oficiais, distribui aplicações nove vezes mais rápido do que a McDonalds vende hambúrgueres, embora muitas aplicações sejam gratuitas ou custem menos de um euro).


A Amazon, que vendia livros através de uma aplicação nativa, viu-se forçada a acabar com esta funcionalidade. Mas a livreira não arriscou uma medida tão drástica como a do jornal britânico.

A aplicação da Amazon continua a poder ser descarregada e serve para ler livros. Mas as compras têm de ser feitas na web e não dentro da aplicação. O processo de compra tornou-se assim mais complicado. Caminho semelhante seguiu também a rival Barnes & Noble.

“A estratégia parece ser a de que faz sentido submeterem-se à Apple por agora, ver o que acontece e depois avançar para HTML5”, escreveu Larry Dignan, director dos conhecidos sites de tecnologia ZDNet e TechRepublic. “Estas empresas vão dizer ‘que se lixe o iOS [o sistema da Apple], aqui está a versão em HTML5’”.

A loja de aplicações da Apple é conhecida por regras rígidas, como esta a que a Amazon decidiu sujeitar-se – e este é um dos motivos que faz com que algumas empresas e programadores se estejam a voltar para a criação de aplicações web.

Para além de ter de pagar à Apple para que a aplicação possa ser colocada na loja, a empresa decide que aplicações podem ser postas à venda, num processo de aprovação que dura vários dias.

Os critérios usados não são transparentes e têm suscitado críticas. Ficou conhecido o caso em que a Apple vetou uma aplicação de um cartoonista porque os desenhos satirizavam figuras públicas – o autor, o americano Mark Fiore, acabou por ganhar um Pulitzer, levando a Apple a convidá-lo a voltar a enviar a aplicação para a loja online.

Por outro lado, e mesmo com as comissões da Apple, a loja oferece uma forma simples e segura de fazer vendas, bem como um mercado de muitos milhares de potenciais compradores.

O iOS, que equipa o iPhone e o iPad, não é, no entanto, o único para o qual se podem descarregar aplicações. O sistema Android, criado pelo Google e à disposição de qualquer fabricante, já é líder no segmento dos smartphones.

Tal como o iOS, também o Android tem uma loja de aplicações e esta tem muito menos regras – o resultado é uma loja mais aberta, mas também mais caótica e com menos garantias de qualidade. Estudos de mercado têm indicado que a loja da Apple é, para quem lança aplicações, mais lucrativa.

Do ponto de vista de quem programa uma aplicação, o facto de existirem estes dois grandes sistemas também significa mais trabalho.

Uma aplicação nativa só funciona num sistema. Quem quiser estar no iOS e no Android tem de desenvolver duas aplicações. E, para além destas, ainda há outras plataformas, como o Windows Phone 7 e o sistema dos BlackBerry. Pelo contrário, uma aplicação web pode ser desenhada para funcionar em qualquer browser, independentemente do sistema e do aparelho.

O browser é rei

“Olá, eu sou um Mac... E eu sou um PC” – começava assim um cartoon publicado esta semana no site xkcd, que é um fenómeno de culto entre


geeks

.

O cartoon era inspirado numa série de conhecidos anúncios da Apple, em que dois personagens (o Mac e o PC) começavam sempre com aquela frase, para depois mostrar a diferença entre os dois, quase sempre humilhando o PC. Contrariamente aos anúncios, o cartoon do xkcd concluía: “E dado que agora fazes tudo num browser, somos praticamente indistinguíveis”.

É certo que o Android Market, do Google, já totalizou 4,5 mil milhões de aplicações descarregadas e a loja da Apple ultrapassou os 15 mil milhões – e que esta ainda é a forma preferencial para fornecer conteúdos aos utilizadores. Mas, em poucos anos, o browser conseguiu tornar-se rei nos computadores pessoais. E história pode muito bem repetir-se nos telemóveis.

Artigo corrigido às 19h50O FT não retirou a aplicação da loja da Apple, mas deixou de a mencionar no seu site e pediu a todos os leitores que fizessem a mudança para a aplicação web "imediatamente".
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