“A Internet não é uma esfera separada da vida”

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Começou a usar a Internet em 1992, numa altura em que ainda era preciso perceber um pouco de tecnologia para saber navegar na web. Quatro anos depois, iniciou a análise dos efeitos sociais da Internet, a que ainda hoje se dedica. O americano Clay Shirky (n. 1964), autor dos livros Eles Vêm aí: o Poder de Organizar sem Organizações (de 2008, em Portugal editado pela Actual Editora) e Cognitive Surplus: Creativity and Generosity in a Connected Age (2010), teve o seu primeiro computador apenas aos 28 anos.

Antes passou pelo teatro: fundou a companhia nova-iorquina Hard Place Theater, foi desenhador de luz para colectivos como o Wooster Group ou os Elevator Repair Service. Professor na New York University (NYU), dedica-se a analisar a forma como a Internet se transformou num meio de conversa e de organização de grupos onde os membros se tornaram produtores e não apenas consumidores - e toda a gente pode ser um canal de informação. Diz que as ferramentas das redes sociais estão a melhorar exponencialmente a nossa capacidade para partilhar, cooperar e agir em conjunto. E se há algo único na nossa era, nota, é o facto de podermos usar o nosso tempo livre em projectos para o bem comum, aquilo a que chama no seu livro “cognitive surplus” (excedente cognitivo).

Teve o seu primeiro computador aos 28 anos. O que é que o surpreendeu mais no avanço da Internet desde essa altura?

A coisa que não percebi de todo nos anos 1990 foi a ideia do fim do ciberespaço – esta ideia que todos tínhamos de que a Internet era um espaço exterior e que se ia lá, usando estas metáforas do espaço. Como matriz era um sítio onde se ia e, chegando, abandonava-se o mundo real. Acreditei nisso durante dez anos, acreditei que era para aí que caminhava. Depois comecei a ensinar na NYU (New York University) e percebi que nenhum estudante usava a palavra ciberespaço e nenhum via a Internet como um sítio a que se ia, porque basicamente fazia parte das suas vidas. Quer dizer, para eles, que estiveram sempre online, a Internet não é uma alternativa à vida real, mas um aumento da vida real. De todas as crenças erradas que tinha quando comecei a usar a Internet essa é a maior – a Internet não é uma esfera separada da vida. No momento em que alguém tem um telefone com acesso à Internet a relação com a rede muda, estar ou não estar online deixa de ser uma questão. O real e o virtual misturam-se, tanto que já nem faz sentido usar as duas palavras.

Essa diferença entre quem separa e não separa o real e o virtual corresponde a uma diferença geracional?

É parte disso. Quando estava na universidade, havia uma empresa telefónica que fazia chamadas de longa distância e com bom som. Se alguém ligava de Paris para Lisboa, era porque era uma coisa urgente. Eu nunca tive essa sensação de uma chamada de longa distância ser uma coisa especial: a qualidade das chamadas vai ser sempre boa, os preços desceram imenso e deixou de ser uma coisa especial. Para os meus pais era uma coisa especial. Essa é a vantagem que os jovens têm em relação à Internet hoje: as pessoas que a viram desenvolver-se quando eram adultos nunca serão capazes de a tomar como algo de garantido. É como a música. Para a geração mais nova, a ideia de ter os CD nunca foi suficientemente apelativa para os fazer ir a uma loja comprá-los – a música deles está no iTunes ou no Pandora (site de acesso a música disponível em alguns países, não Portugal). As pessoas mais velhas terão sempre a memória do tempo em que a música vinha de uma loja, os jovens nunca terão que lutar contra essa memória.

Fala no seu livro Eles Vêm aí… de quatro pontos essenciais na actividade dos grupos online: a partilha, a conversa, a colaboração e a acção colectiva. Como é que estes quatro aspectos vão evoluir nos próximos dez anos?

Dez anos é imenso tempo. Neste momento a grande questão na actividade de grupo online é passar da conversa à acção colectiva, mudar de “concordamos ou discordamos” para “vamo-nos juntar e fazer qualquer coisa em relação a isto”. Podem ver-se sinais disso nos protestos globais em 2011 – na Primavera Árabe, nos Indignados, nos Occupy. Todos estes grupos usam essas ferramentas para se coordenarem, mas continuam a ser protestos. O que ainda não vimos é as pessoas desenvolveram filosofias políticas, não apenas um movimento de protesto. Na Primavera Árabe o movimento era: vamo-nos livrar de Ben Ali e de Hosni Mubarak, mas depois houve os meses de pausa em que ninguém sabia como os substituir. Acho que o grande trabalho dos próximos dez anos é perceber como é que estas ferramentas se encaixam no grupo de pessoas que não quer que as coisas parem de acontecer, mas que quer fazer as coisas de outra forma. A política demora imenso tempo a mudar nestas circunstâncias, muito mais do que a economia.

Mas por exemplo?

A ideia de um partido político formado de base que tem a Internet como garantida como é que seria? Uma das características seria que poderia falar com os seus membros a toda a hora, em vez de ter uma eleição de dois em dois ou de quatro em quatro anos, que discutiria com os seus membros os assuntos que os preocupam e a toda a hora – e poderiam ser mais deliberativos, poderiam ser mais informativos e mais transparentes. O que se vê agora são partidos políticos a integrar a Internet numa prática que já existe, mas ainda não vimos ninguém dizer: “Se tivermos este meio como garantido, podemos fazer as coisas de forma diferente.”

Estes quatro passos levantam a questão de uma das coisas que cada vez mais preocupam as pessoas em relação à Internet: a privacidade e o controlo. De um lado, temos os advogados da privacidade, como Sherry Turkle, que diz que nos tornámos os instrumentos da nossa própria vigilância, do outro, pessoas como Jeff Jarvis, que defende os benefícios do “público”. De que lado está?

É complicado ficar de um lado. Não é uma coisa ou outra. Deixe-me usar uma analogia. Quando algumas das novas [tecnologias e plataformas] apareceram, houve pessoas que disseram: “Isto vai ser fantástico para a cultura nacional”. Outras disseram: “Isto vai ser uma terra de ninguém, só vai servir para entretenimento.” Os dois lados têm razão. A busca social da Internet não é se o Facebook é bom ou mau, mas como tirar vantagem das conexões da Internet sem nos tornarmos pessoas dissociadas, questão com a qual Sherry Turkle está preocupada. Esse é o grande desafio deste período. Uma das coisas interessantes que aconteceram nestes últimos dez meses é que me parece que vi um aumento do número de pessoas que perceberam que, se estiverem tempo de mais a ver o que os amigos andam a fazer no Facebook, passam menos tempo com esses amigos. A questão de Jeff Jarvis e de Sherry Turkle acaba por ser: quais são as vantagens que podemos retirar dos media sociais, ao mesmo tempo que tomamos consciência de que o uso excessivo cria problemas sociais – tal como a televisão e o telefone? Em relação aos media sociais, a questão é como os gerimos e não como nos livramos dessas ferramentas.

Podemos usar o nosso tempo livre como um bem, defende, e criar projectos comuns. Mas como aumentar a qualidade do conteúdo que produzimos na Internet?

Uma coisa é melhorar a qualidade do conteúdo do que as pessoas lêem – pode haver toneladas de lixo, desde que as pessoas consigam encontrar as coisas boas. Não é um acaso que os negócios bem sucedidos tenham sido motores de pesquisa que ajudam as pessoas a encontrar coisas na Internet. Negócios como o Yahoo ou a Amazon eram, de uma maneira ou de outra, formas de resolver o problema dos filtros. Antes havia 200 coisas para ler e 50 eram interessantes, agora há 10.000 e 500 são boas. A qualidade média desceu, mas há dez vezes mais coisas interessantes para ler. Uma parte do problema é como encontrar os 500 artigos entre 10.000 – e esse é um problema que um indivíduo sozinho não consegue resolver sem ajuda.Uma segunda parte da questão tem a ver com recomendações. As pessoas são muito sensíveis aos feedbacks positivos ao trabalho de outros. Um grande favor que podemos fazer uns aos outros é dizer: “Li isto e é fantástico.” No Twitter, uma das coisas mais fantásticas é encontrar alguém sem uma grande audiência, mas que faz um trabalho altamente interessante e chamar a atenção para isso.

Uma das questões que levanta é o facto de cada um de nós ser hoje um meio de comunicação. Que organizações estão a tirar partido disto e quem o está a fazer melhor?

Há um grupo que o está a fazer muito bem e que são organizações sem fins lucrativos – como a NPR nos Estados Unidos ou a BBC no Reino Unido. E isto deve-se em parte ao facto de o seu modelo de negócio e de organização estar menos baseado na cobrança aos utilizadores ou em receitas de publicidade. Uma das grandes histórias no jornalismo dos Estados Unidos foi o que fez Andy Carvin, da NPR, que criou um feed [fluxo] de contas de Tweet da Primavera Árabe – ele nem sequer estava a fazer jornalismo, mas viu esta oportunidade e agarrou-a, porque viu que havia pessoas a fazer coisas interessantes. O que foi fantástico foi a NPR incentivá-lo. As organizações estão fazer bem, quando vêem que os seus trabalhadores estão a fazer coisas interessantes e estranhas, mas criam espaço para essas experiências. Por exemplo, a BBC fez um trabalho incrível não tanto na secção de jornalismo, mas, por exemplo, com o programa (de ficção científica) Doctor Who – envolveram-se imenso com a comunidade de fãs.

Escreveu no seu blogue que 2012 ia ser o ano em que as organizações de media iam finalmente deixar de tratar as notícias como um produto e os leitores como consumidores. O que significa isto exactamente e quem o está a fazer?

Acho que as organizações de media começam a perceber que a forma de receber dinheiro dos leitores é perceberem o que é que lhes interessa na relação com a sua organização. The New York Times instalou um sistema de subscrição digital que não é uma paywall [o que separa conteúdos abertos de pagos], mas quando se chega aos dez artigos por mês tem de se pagar – e cerca de 3% dos leitores online aceitaram este modelo, o que gerou uma quantidade considerável de dinheiro. Isso é um modelo mental completamente diferente para os jornais, porque estão a dizer que não cobram a todos os utilizadores todos os conteúdos, aceitam que a maior parte não está disponível para pagar pelo que têm para oferecer, mas podem cobrar às pessoas que não querem que o NYT desapareça e essas pessoas vão ajudá-los. Essa mudança de modelo mental que oferece a mesma coisa a todos os leitores para o modelo que reconhece que há um grupo significativo de pessoas que se preocupa o suficiente com o facto de o negócio acabar, e que portanto tem um compromisso com a organização, é um bem central do negócio.O que ainda não vimos - mas que vamos começar a ver este ano e no próximo em jornais como o NYT, o LA Times - é: o que acontece quando esses jornais criarem o tipo de jornais que os 5% de utilizadores mais fiéis querem? Isso torna-se um modelo de negócio. Quando toda a gente tem o mesmo dinheiro para dar o mesmo a toda a hora, a forma mais fácil de atrair leitores é ter notícias sobre estrelas de Hollywood e de Desporto. Se, por outro lado, se criar o tipo de produto que os leitores mais comprometidos civicamente querem, de repente as notícias de Hollywood não funcionam. Mas ainda não sabemos como é que isso vai ser: um negócio onde os leitores mais fiéis são o centro do negócio.
 

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