“A Internet é só uma e deve permanecer assim”
Fadi Chehadé, o presidente do ICANN, a entidade americana que gere uma parte central da Internet, diz que é altura de a rede global ser menos americanizada.
No ano passado, Fadi Chehadé foi escolhido para assumir a presidência do ICANN. A tripla nacionalidade – nasceu no Líbano, é filho de pais egípcios e está radicado nos EUA desde 1980 – e o percurso profissional – criou na década de 1990 um consórcio que juntou as maiores empresas de tecnologia do mundo, muitas delas rivais – ajustam-se à missão: gerar consensos internacionais e tornar a gestão da Internet menos americanizada.
Chehadé esteve na semana passada em Lisboa, para o EuroDIG, um encontro europeu sobre a gestão da Internet.
Quer tornar o ICANN menos centrado nos EUA. O modelo seguido no passado estava errado ou agora é a altura certa para este esforço de internacionalização?
Agora é a altura certa. A Internet tornou-se demasiado importante. Não podíamos continuar à espera em Los Angeles [onde o ICANN tem sede] que o mundo viesse ter connosco. Era altura de proactivamente irmos ter com o mundo.
Não creio que o ICANN fosse fechado. Mas agora dizemos: “Estamos abertos e também estamos próximos e somos capazes de vos entender”. E entender não é uma questão de língua. É entender as culturas, o pensamento, os sistemas legais.
Há um plano para abrir centros noutros países, a começar pela China.
Vamos ter três centros globais: Los Angeles, Istambul e Singapura. São centros operacionais. As funções do ICANN vão ser espalhadas pelos três, porque conseguem cobrir todos os fusos horários. São sítios onde o núcleo do trabalho acontece: questões técnicas, questões legais. Hoje, se alguém acorda no Laos e quer ligar para o ICANN, é possível que toda a gente esteja a dormir. E se calhar só falam inglês.
À volta disto, vamos construir centros de envolvimento. O primeiro será na China e terá pessoas que vão falar com académicos, com técnicos e com o Governo para entender as necessidades da China e trazê-la para dentro do processo de decisão do ICANN. A China tem dificuldades em fazer parte da máquina do ICANN. Acontece com muitos governos. Estão habituados a ir a organizações como as Nações Unidas e votar. Aqui não fazemos as coisas por voto. O ICANN não é uma democracia, é uma máquina de consensos. Os governos têm de se sentar ao lado de académicos e técnicos para construir consensos. Não é fácil.
A China é uma prioridade?
É. Mas também já anunciámos um centro em Montevideu, vamos abrir em breve um em Tóquio e em Outubro vamos ter um na Índia. Os nossos escritórios em Bruxelas também se estão a transformar num destes centros.
O ICANN tem funcionado, mesmo num modelo centrado nos EUA. Porquê mudar?
Não vamos misturar duas coisas. O sistema do ICANN funciona. Mas é escalável? Precisamos de fazer alguma coisa para o tornar escalável. É inclusivo? Podemos fazer melhor...
Agora, o ICANN não tem problemas de transparência. Também não tem problemas de igualdade: todas as vozes são iguais. As pessoas sentam-se e às vezes discutem seis anos para fazer alguma coisa. Seria mais fácil para mim dizer: “Eu decido”. Mas, para ser sincero, só sou presidente no nome do cargo. Sou mais um coordenador da comunidade. Não posso tomar decisões. As decisões são tomadas pelas partes interessadas. É fascinante! Não há mais nenhum sítio onde isto aconteça. Isto é o mais interessante: ver governos lá sentados e são iguais a toda a gente.
E como é que esse funcionamento por consenso funciona em partes do mundo onde os governos gostam de ter muito controlo?
Está a funcionar. Quando fui à China, os chineses queriam influenciar algumas das decisões, tal como toda a gente quer. Passei dois dias a explicar-lhes que eu não tomo decisões. Eles não percebiam. Mas agora estão a perceber. Estão a trabalhar dentro do sistema.
O escândalo da espionagem da NSA [a Agência de Segurança Americana] nos EUA trouxe desconfiança em relação ao Governo e às empresas de Internet dos EUA. Pode ter um efeito colateral no ICANN e dar argumentos aos que defendem um outro modelo de governação da Internet?
O plano onde o ICANN trabalha não tem nada a ver com o caso da NSA. A questão certa é essa: pode haver aqui um efeito colateral? É claro que vai haver. As pessoas vão dizer: “Vejam o que o Governo americano e as empresas americanas estão a fazer” e pode surgir pressão.
Temos de redobrar esforços para comunicar que o envolvimento do Governo connosco não é financeiro e que eles não têm direito de fazer mudanças. Eles têm uma função de auditoria. Essa função tem sido progressivamente mais suave. E acho que nos vamos tornar cada vez mais independentes. O Governo dos EUA reconhece a necessidade de isto ser um sistema global. Mas tem de ser feito com tempo e de forma reflectida. Porque se a estabilidade da Internet é afectada, nem que seja por um nanossegundo, as pessoas vêm ter comigo e dizem que fizemos as coisas à pressa. E estamos a ser atacados todos os dias, ataque massivos. Não costumamos falar disto publicamente.
Sabe de onde vêm esses ataques?
Não, não. Estamos a trabalhar com governos, autoridades e empresas para tentar descobrir. A Internet é só uma e deve permanecer assim. É uma das últimas coisas que une a humanidade. As línguas, as religiões, até a comida dividem-nos. E o que a torna a Internet só uma é o DNS [domain name system, um sistema no centro da Internet]. O alvo dos ataques foi o DNS e sem o DNS, há dezenas de milhares de redes espalhadas.
Acha que há um risco de países como a China e a Rússia fazerem a sua Internet à parte, nomeadamente para a controlarem melhor?
Há sempre esse risco. Mas a maioria dos países chegou à conclusão que fazer parte de uma só Internet é, do ponto de vista económico, muito melhor do que balcanizar a Internet. Se não acreditassem nisso...
Uma das medidas para ajudar à internacionalização da Internet são os novos domínios de topo [extensões de endereços que podem ser qualquer palavra, como .lisboa ou .google, e que poderão incluir caracteres não romanos]. Em que é que isto vai ajudar?
Por um lado, as pessoas que não têm um teclado inglês [com caracteres romanos] vão poder escrever o endereço completo de um site. Há milhões de pessoas no Médio Oriente que não têm um teclado desses. Como é que escrevem em árabe um endereço completo? Como não podem, estamos a empurrá-los todos para um sítio: o motor de busca, onde escrevem em cirílico ou árabe ou chinês. Mas isso faz com que estejam a descobrir sites apenas através do algoritmo do motor de busca.
Por outro lado, os novos domínios vão permitir muito mais expressão. Hoje, toda a gente está a lutar por um grupo restrito de nomes em .com ou .org. É um espaço pequeno. Mas quando se cria um espaço grande, isso traz diversidade, oportunidades, inovação e escolhas.
Isso vai fazer cair o valor de mercado dos nomes de domínio.
Concordo. Há pessoas que me dizem que o ICANN fará muito menos dinheiro. Óptimo. O ICANN existe por interesse público. Se é do interesse público que os domínios sejam mais baratos, vamos fazê-lo.
Há também a questão de empresas passarem a controlar domínios com palavras genéricas. O .book, por exemplo [a que Amazon e a Google já se candidataram].
A comunidade está a avaliar isso. Acho que pode haver problemas aí. Temos de ser cautelosos, mas não demasiado. Cabe à comunidade chegar a um equilíbrio. É preciso garantir a liberdade e garantir a responsabilidade. Se alguém tiver o .child ou o .baby, temos a responsabilidade de dizer que nesses espaços é preciso haver regras. Alguém que se candidate a um domínio de topo tem de declarar as regras por que se vai guiar. E as regras são postas no contrato.
Como está a correr o processo?
Creio que estamos dentro dos prazos. Os novos domínios de topo devem estar prontos para serem atribuídos no Outono. É um esforço muito intenso.
Internacionalização, segurança, intromissões governamentais... Qual será o maior desafio que a Internet tem pela frente nos próximos anos?
[Longa pausa] O maior problema para os utilizadores vai ser ajustarem os seus estilos de vida, e a compreensão que têm de como as coisas funcionam na Internet, às novas realidades. Ainda estamos a tentar aplicar modelos antigos à forma como funcionamos no mundo novo. Vão surgir conflitos. Já está a acontecer com questões legais. Estamos num modelo pós-nacional. O que acontece agora? Que lei é que prevalece?
É um grande desafio para mim perceber como é as pessoas, os governos e os sistemas em geral se vão ajustar à nova realidade. Este telemóvel não vai ser apenas um telemóvel. Vai ser um servidor no bolso, a comunicar por exemplo com o batimento cardíaco. Surgiram os Google Glass [os óculos do Google ligados à Internet] que vêem o que estamos a ver. O nível de digitalização que estamos a permitir nas nossas vidas... Ou que, pelo menos, algumas empresas estão a empurrar para as nossa vidas... Terá de haver ajustes a nível pessoal, familiar, empresarial, governamental.
Isso vai aumentar o fosso digital? Deixa de ser um fosso de acesso para ser um fosso de estilos de vida?
Antes, o fosso digital era uma questão de acesso. Depois, uma questão de banda larga. Daqui a dez anos toda a gente vai ter mais largura de banda do que precisa. O fosso digital vai assentar na forma como as sociedades conseguirem tirar vantagens da vida digital existente. Não é uma questão saber se temos acesso ou sequer se temos conteúdos. A questão é como usar tudo o que temos para tornar a vida pessoal melhor, a vida profissional mais eficiente, as empresas mais competitivas e os países mais abertos.