Viver é cada vez mais difícil no Grande Hotel da Beira
Inaugurado em 1955 como hotel de luxo com aspirações a ser o mais requintado de África, foi-se transformando gradualmente numa ruína. Hoje é o "Prédio", eufemismo para um dos maiores edifícios ocupados do mundo. Sobrelotado e sem vestígios de saneamento:"A situação é péssima, mas uma pessoa habitua-se."
C Compramos mangas maduras à porta do Grande Hotel da Beira, que, mesmo em ruínas, não perde a imponência e magnitude em frente ao mar. Pedimos para falar com o representante dos moradores, e logo um rapaz se prontifica a ir chamar o "secretário da unidade", que se levanta da sua sesta, veste a camisa azul de botão e a boina de muçulmano e vem vagaroso, com a filharada atrás, receber os curiosos.
À hora do calor, com ar pausado e a timidez típica dos moçambicanos rurais, o senhor João desvenda a história de um albergue de 750 famílias, cerca de três mil pessoas, em aglomerados familiares - no seu caso, nove elementos - que, num mesmo quarto, fazem de tudo: dormir, banhar, comer, cozinhar. É a história de um hotel, outrora de luxo, transformado num dos maiores squats do mundo.
Como qualquer casa ocupada, tem as suas regras de convivência e de organização. Ali, a ordem tem os seguintes representantes: o secretário de unidade, o de corredor, quarteirão e bloco (andar), que se reúnem para resolver problemas dos inquilinos e dirigem o tribunal de moradores numa ex-suíte do hotel, onde se discute quem tem mais direito à casa (uma mulher com crianças leva vantagem) ou que fulano anda a atirar água suja para a varanda de outro. Duas regras são fundamentais: "Manter a limpeza e o respeito." A limpeza é realizada por nomeação de turnos, já o respeito tem de ser garantido por todos. "Já houve casos de maus tratos, violações a raparigas, cujas pessoas que os praticaram foram expulsas", conta, decidido, o anfitrião.
Como veio o senhor João viver para o "Prédio", alcunha eufemística para normalizar aquela vivência, e porque tem o mais alto cargo de chefia? "O meu irmão é militar, eles foram os primeiros a chegar em 1980 para terem uma base durante a guerra, ficou com uma casa e com esta função que depois passou para mim." Como nas heranças, as casas - os quartos neste caso - destinam-se a pessoas da família e algumas já lá estão há três gerações.
Descida aos infernos
Na escadaria, mulheres sobem com alguidares à cabeça, rapazes empenham-se na máquina de costura, crianças brincam descalças lado a lado com centopeias e ratazanas. Dali se avista o grande salão, lugar de festas e reuniões sérias, onde ao entardecer as colunas de som brindam com panza e tarrachinha, músicas africanas que pedem muito sintetizador, o gingar de ancas das crianças e adolescentes.
É a usurpação do espaço que impressiona logo: a piscina serve para lavar roupa, a madeira do chão foi usada como lareira, de qualquer pedaço de terra e canteiro se fez uma machamba (pequena horta) para capinar. Todo o espaço é precioso nesta casa sobrelotada. Precisamente por o hotel ter uma amplitude de origem, tudo parece paradoxalmente desafogado. Nos corredores, jovens reúnem-se em pachorrentas conversas, mulheres entrançam cabelo e amamentam bebés deitadas. Os quartos são polivalentes: dividem-se as privacidades com leves cortinas, levanta-se o colchão para surgir uma sala ou cozinha. Há quem viva na cave, nas antigas câmaras frigoríficas, lavandaria e elevador - qualquer canto tem uma utilidade.
Subimos ao terraço, o oceano Índico ainda existe para equilibrar esta Beira pesada que parece ter parado no tempo. Ali se vem espairecer do excesso de contacto humano, seus amores e violências domésticas.
Lá dentro retorna-se à cidade das ruínas. Aqui há muitos serviços: realizam-se aulas de ensino básico para as crianças, promovidas pelo Governo; vende-se de tudo, camarão, legumes colhidos ali mesmo no hotel, carvão, xima (farinha), frita-se peixe nos corredores. No edifício de desenho modernista, "com uma fachada curvilínea de composição monumental", escreve Ana Magalhães no livro Moderno Tropical (Tinta-da-China, 2009), "existe uma cidade alternativa, onde vivem milhares de pessoas, centenas de famílias. Dentro dos gigantescos salões definem-se habitações improvisadas, nos longos corredores montam-se bancas de mercado, nas escadarias helicoidais brincam centenas de crianças que a Cruz Vermelha Internacional visita ao fim do dia".
Para ali se viver, há que ter um bom jogo de cintura em questões de diplomacia e sociabilidade. Com a vulnerabilidade de todos, as redes de solidariedade devem funcionar. Dentro do hotel alguns cadeados mostram cuidados com os ladrões. Fora, nada de ondas com a polícia, que lhes faz favores de segurança. Imprescindíveis são as boas relações com a vizinhança em redor do "Prédio", de quem se depende por demais. Os vizinhos vendem a tão necessária água que, depois de usada, é atirada pela janela, uma vez que não há saneamento. Os vizinhos podem dar boleia se alguém tem uma urgências. Há esquemas de conforto para algumas personagens do "Prédio", com direito a puxadas de electricidade para certas casas com critérios ambíguos e, digamos, por vezes individualistas. Os outros podem recorrer às soluções mais caras de candeeiros a petróleo e baterias de gerador. Mas a grande maioria mergulha na escuridão assim que o sol se vai.
Algumas ajudas de fora minorizam carências. Uma igreja aqui e acolá, operações de desinfestação, visitas da Cruz Vermelha. Mas dureza é a palavra, viver ali a cada dia se torna mais difícil. Chuva, calor, bichos inoportunos, falta de luz, água e privacidade, tensões com os vizinhos. "Lá porque o ser humano se habitua a um problema, ele não deixa de existir", diz um cartaz na fronteira entre a África do Sul e Moçambique e aplica-se bem a esta vida no limite.
A utopia da urbanização
Apesar de desoladora e meio abandonada, consegue-se descortinar, apenas pelos edifícios, a cidade glamorosa que a Beira terá sido nos anos de 1950 e 60: os caminhos-de-ferro e o porto, num movimento constante de passageiros e mercadorias que davam corpo ao "corredor da Beira" que ligava o interior de África, especialmente a Rodésia, ao mar. As difíceis condições geográficas da cidade - baixa, pantanosa, clima tropical húmido, muito calor e muita chuva - não impediram os projectos de urbanização. Declarada zona urbana em 1892 e concessionada pelo Estado à Companhia de Moçambique, foi elevada a cidade em 1907, com um aumento populacional explosivo. O plano de urbanização foi dos irmãos arquitectos Rebelo de Andrade, em 1932. Diferenciaram-se as áreas administrativas das comerciais e industriais, turísticas e residenciais de acordo com a população europeia, asiática e africana. A cidade prosperava, apostavam-se todas as fichas nas colónias.
No pós-independência de Moçambique, com o estalar da guerra civil, sendo a Beira estrategicamente localizada a meio do país e albergando a sede da Renamo, fá-la sofrer terríveis transformações: degradação, forte migração, bloqueio às suas infra-estruturas. Em tempos de paz, conquistada em 1992, a falta de condições persiste: o investimento concentra-se em Maputo, havendo queixas de um bloqueio e burocratização excessivos para os investidores na Beira, contribuindo o facto do edil do município, Daviz Simango, não ser da Frelimo.
A luta por uma casa tem sido a guerra de muitos cidadãos num país que não vende terrenos, e cujas casas ocupadas na altura das mudanças de sistema não chegaram para os vindouros. Apesar do dinâmico comércio dos indianos, a cidade tem um ar desolador, com muitos edifícios degradados dos quais só foram restaurados aqueles que hoje são bancos, em ruas onde transitam infinitas pessoas a pedir dinheiro, ajuda, e muito mais do que em Maputo se sente a terrível fome, e quão nociva se tornou a persistente busca de ajuda externa para as mentalidades moçambicanas.
Viver e morrer no hotel
Vieram dos matos, das profundas províncias onde se arriscava a vida para roubar uma mandioca raquítica. Para todos, Beira era sinónimo de segurança, uma ideia abstracta de paz e sobrevivência, um nome que circulava de boca em boca sem ninguém conhecer ao certo. Caminharam das províncias e de lugares onde, para se ir ao baile, tinham de enfrentar leopardos. Depois de fugir à guerra dos homens, vieram "enfrentar a guerra da pobreza" ali na cidade. Porém, "os sonhos são vastos", dizem os olhos de Paíto, no auge dos seus 20 anos de representante dos jovens do "Prédio". Ali vive "por necessidade e falta" desde pequeno, crescido e apegado ao espaço, com consciência de que "a situação é péssima". "Mas uma pessoa habitua-se, só quando vem alguém de fora é que nos lembra as condições desumanas em que vivemos." E Paíto tem amigos de fora, que, com frequência, ali passam tempo entre camaradas. Os amigos observam a conversa e confirmam que vão "lá visitar o pessoal e às festas e convívios". Referem que o "Prédio" tem um espírito especial. Ser jovem ali é duro, alguns meteram-se na droga, mas também pode ser uma espécie de enorme residência de estudantes (com mais velhos à mistura). Faz-se música, praticam-se actividades desportivas como futebol, artes marciais, basquetebol e até existe um Clube Desportivo da Ponta G, que participa nos campeonatos entre bairros.
O organizador do núcleo de desporto é Albino Cardoso de 28 anos, que veio há 22 da Zambézia. Da situação de refugiados dos pais conta: "Não me sinto inferiorizado, foi uma situação da História. Chegámos depois e as casas dos colonos já estavam cedidas a este ou aquele. Muitos eram antigos serviçais dos colonos. Nós ficámos no hotel, mas eu já tenho condições para sair." É uma longa luta pelas tais "condições" que nem todos conseguem.
Há muitas histórias sinistras de acidentes dentro do Grande Hotel. Gente alcoólica a fugir ao desalento que acaba por cair de alguma escada ou janela sem protecção. Um corpo que aparece a flutuar na piscina. Gémeos que morreram no mesmo sítio à vez, um pedaço do terraço que caiu.
Ao longe reconhecemos a silhueta de Rafate, o louco do "Prédio". Gesticula e ocupa-se de estranhas tarefas. Enlouqueceu depois de uma consulta ao curandeiro que o convenceu a ter relações sexuais com a mãe como método para enriquecer. Foi apanhado e tudo aquilo o perturbou para sempre. "Agora até cão morto, rato e gato come."
Mas também há histórias felizes. Um dos habitantes decidiu oferecer à comunidade um cinema. No fundo de uma palhota, montou uma televisão onde se exibem filmes de acção e kung-fu a um metical a sessão. Para libertar a alma e praticar as crenças, há lugar para todas as prestações de culto. Transformaram o balneário da piscina numa mesquita e lá se dá expressão às salah, as cinco orações do dia que manda o islão. Mas há também igrejas. Muçulmanos, católicos, protestantes e animistas coabitam sem conflitos religiosos.
Camadas de tempo
Em quase todos os documentários, fotografias, reportagens, sobre o património das cidades das ex-colónias, é o tempo antes e o tempo depois que são confrontados. Neste jogo óbvio com a História, é claro que o presente fica sempre a perder. As imagens de destruição e degeneração favorecem o discurso dos saudosistas, que, mesmo reconhecendo erros de tempos passados, ostentam que eles traziam mais dignidade à vida das pessoas e organização às cidades.
Na cidade da Beira, a memória colonial está de facto muito presente. No restaurante Brique, pouco antes da zona do Estoril, onde chineses bebem com africanos, europeus e indianos, encontramos um português. Há meses à espera de alvará para abrir a sua empresa de transportes, ilustra bem o estado de espírito dos saudosistas: "Em 1975, quando saí de cá, apanhei uma grande porrada em Portugal, que era muito atrasado em relação à Beira, imaginem que nem sabiam o que era a Coca-Cola! Quando voltei há um ano, apanhei outra porrada com uma Beira toda "partida". Não estava à espera que estivesse tão mal."
Este discurso e todo o alarmismo acerca da insegurança da cidade - "não andem por aqui à noite, já me disseram que uns tipos assaltam turistas com catanas" - é uma espécie de descarga de consciência: quanto mais se sublinhar o horror actual, mais se destaca o esplendor de então. Em África, os saudosistas parecem ter razão: "O colonialismo era mau, mas hoje o sistema é bem pior." Parece que esta ideia atravessa todos aqueles que sobrepõem estes tempos numa perspectiva acrítica.
O Grande Hotel da Beira, enquanto edifício, encerra em si a tensão dos tempos que aqui se jogam. Inaugurado em 1955 como hotel de luxo com aspirações a ser o mais requintado de África - 370 quartos e suítes, uma imensa piscina olímpica -, pretendia promover o turismo em toda a região centro de Moçambique, base para desbravar o seu lindíssimo litoral, atraindo em particular os turistas de uma Rodésia branca e endinheirada, os portugueses e britânicos mais abastados. Aberto entre 1952 e 1963, nunca teve clientela suficiente para as suas ambições de lucro, ainda para mais com uma guerra colonial a afrouxar o turismo. Acrescida a má gestão, foi desactivado como hotel, tendo a piscina e a sala de conferências continuado a funcionar durante os anos 1960 e até depois da independência.
O arquitecto Francisco de Castro, co-autor da famosa estação de caminhos-de-ferro da cidade, acompanhou os últimos anos da construção do hotel. Num documentário de Anabela de Saint-Maurice para a RTP (Grande Hotel, 2007), o arquitecto regressava com emoção ao Grande Hotel; não seria improvável ter um ataque de coração ao ver as ruínas, mas aceitava: "São as mudanças da História!"
O último grande evento do hotel foi uma festa de fim de ano de 1980 para 81, depois foi-se transformando-se gradualmente num escombro. Primeiro os militares, membros da polícia e do exército começaram a usar o terceiro andar e os seus quarteirões como apoio logístico para a guerra. Depois de 1981, a população em geral foi ocupando por vários motivos: tornou-se num campo de refugiados, tendo chegado aos mil e tal habitantes, com moçambicanos deslocados de guerra que ali encontraram abrigo, prisioneiros políticos, o clássico êxodo rural para a cidade, simples sem-abrigo. Com as pessoas já ali nascidas e criadas, são três gerações a contar a história do seu Grande Hotel.
O futuro é cinzento
O presidente do município da Beira, Daviz Simango, já visitou o Grande Hotel e, na presença de um representante, até se ergueu a bandeira do seu partido MDM. Ouviu os moradores que reivindicam que lhes construam latrinas e lhes dêem material para trabalhos de manutenção do edifício. Muita gente está desempregada e vive de biscates. Mas as promessas eleitorais - como a de voltar a ligar o tubo de água - já não são levadas a sério; talvez por isso não aproveitaram as eleições para fazer um grupo de pressão, já que formam um significativo número de eleitores. As propostas de reabilitação tão-pouco suscitam esperança. Tal como a conversa de evacuação e realojamento lhes parece uma ficção: apesar de a Associação Muçulmana de Sofala ter conseguido realojar 30 famílias, os quartos que vagaram foram imediatamente ocupados. O espaço é precioso, há filhos a nascer a toda a hora.
As vidas que ali se reproduzem carecem de um destino, de condições mais dignas (apesar de tentarem ao máximo manter o orgulho do seu "Prédio"). Sem referências e habituados a tudo, não escondem que há-de ser melhor ter uma casa propriamente dita.
Enquanto o futuro é uma zona cinzenta, esmeram-se nas áreas de lazer. Neste fim de tarde, hão-de cair trovões sobre o Índico. Mas no hotel preparava-se uma noite festiva como são todas as sextas-feiras, conhecidas em Moçambique como a "noite dos homens", em que têm de farrar e beber. Se alguns chegarem bêbados e incomodarem uma vizinha, amanhã há-de falar-se disso entre os secretários do "Prédio". "Uma comunidade tem regras", despede-se o senhor João, na sua calma e resignação. a
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