Ray Gosling matou porque não é egoísta

Foto
O médico dos ERA Jack Kevorkian. No seu julgamento, em 1999, disse ter ajudado 130 pessoas a morrer. Está em liberdade condicional devido ao estado de saúde David Sillitoe/Guardian News & Media Ltd 2010

O que levou Ray a encostar uma almofada à cara do amante e esperar que morresse? O que o levou a desenterrar um segredo com mais de 20 anos? A história pode não ser exactamente assim, mas o debate sobre a eutanásia volta à ordem do dia em Inglaterra, o país dos cuidados paliativos. Se não fossem os princípios religiosos - diz um psicólogo português -, a maioria aceitaria. O tema chega ao Parlamento português em Maio.

Não acho que seja crime." A resposta pronta foi dada por Ray Gosling, a 15 de Fevereiro, ao programa Inside Out da BBC, que debatia naquele dia o suicídio assistido. Ray aproveitou então para contar como tinha um pacto com um ex-amante com sida e como tinham combinado, quando já nada houvesse a fazer e o sofrimento fosse insuportável, que ele o ajudaria a morrer. E assim foi. Ray contou então o seu terrível segredo. "Este é o momento para partilhar um segredo que guardo comigo há muito tempo", iniciou Gosling. Contou então a história. "Disse ao médico: "Deixe-me a sós por um minuto." E ele afastou-se. Agarrei na almofada e sufoquei-o até que morreu. Sem remorsos", frisou no fim, questionado pela apresentadora do programa, Marie Ashby. "Ele estava num sofrimento terrível. Eu estava lá, eu vi. Isso parte-nos o coração. Não acho que seja crime."

"Não vou dizer à polícia quem ele era, de onde era, não vou dar nome, morada, nome de familiares ou a região. Vou levar isso para a cova", disse Gosling, que se recusou a cooperar com as autoridades numa primeira fase. Mas depois acabou por dizer que revelou o nome do homem após ter sido detido para um interrogatório que ocupou cinco detectives e durou um dia e meio, segundo relato do seu advogado ao diário britânico The Guardian. Acabou por sair sob fiança.

Apesar de reconhecerem que, durante o interrogatório, Gosling deu informações que vão entreter os investigadores por vários meses, as autoridades de Notthingam, que estão a conduzir o caso, nem sequer têm a certeza de que o relato seja verdadeiro. Pelo menos em relação à altura e à pessoa que Gosling diz ter ajudado a morrer. O companheiro de Gosling, Bryn Allsop, morreu em 1999 de cancro no pâncreas. Poderá uma história falsa encobrir uma verdadeira? A polícia começou também a interrogar vários amigos próximos de Gosling na altura. Todos afirmam que conheciam a história. Mas não os pormenores.

A ser acusado, o que ainda não aconteceu, Gosling pode incorrer na acusação por eutanásia ou homicídio, o que, perante o quadro penal britânico, é igual e cuja pena máxima pode ser a prisão perpétua. Ou pode ser acusado de suicídio assistido. Aí o quadro penal máximo é de 14 anos de pena de prisão.

Alan Horsfall, amigo de Gosling há 40 anos, activista dos direitos homossexuais, tal como Ray Golsing, foi um dos chamados a depor na polícia: "Não se trata de um assassinato. Nunca me ocorreu que se pudesse considerar um crime."

Bob Dickinson, outro amigo de longa data, produtor de rádio, disse também já conhecer o episódio: "Fiquei chocado na altura. Mas para mim trata-se de suicídio assistido", disse ao Guardian. "Conheço o Ray há muito tempo. Ele não é um assassino. Ele é uma pessoa muito humana, obcecada com a importância da vida das pessoas comuns. Ele achou que podia usar a sua história de vida como mais uma história. Para ele, aquele é só mais um episódio."

Batalhas morais

Gosling, que se descreve como um jornalista-escritor, que marcou a geração do pós-guerra britânica com documentários de rádio e filmes sobre histórias de pessoas e estilos de vida, é um homem obstinado com as batalhas morais, corajoso na defesa dos seus pontos de vista. Acredita que os actos e as leis têm "pesos diferentes em alturas diferentes". E afirma que se for preciso ir para a prisão para pôr o país a pensar na eutanásia, que seja.

"Quando lidamos com situações de grande sofrimento, como doenças terminais, de grande degeneração física e psicológica, podemos fazer uma de duas coisas: ou sofrer tal como aquela pessoa que está connosco, ou acabar com o sofrimento dela. Nós humanos temos uma grande capacidade de empatia e somos mais altruístas do que egoístas. Acredito que a maioria das pessoas, se não fosse o peso dos pruridos religiosos, aceitaria a eutanásia", diz o psicólogo Américo Baptista, frisando que nunca teve um paciente que lhe dissesse que já tinha ajudado alguém a morrer, mas que muitos já lhe confessaram que aceitavam ajudar alguém a ter uma morte digna.

E Laura Ferreira dos Santos, investigadora do Instituto de Educação da Universidade do Minho com um livro publicado sobre morte assistida (Ajuda-me a Morrer - A Morte Assistida na Cultura do séc. XXI), lembra o contexto em que Gosling terá asfixiado aquele companheiro: "É bom não esquecer que se está a falar de sida nos anos de 1980. Não havia nada mesmo a fazer pelos doentes. A comunidade gay foi muito vítima do suicídio assistido então. Aqueles homens viam o sofrimento horrível de amigos e companheiros e não queriam passar pelo mesmo. Sabiam o que lhes ia acontecer. Não queriam passar por aquele horror e faziam pactos suicidas entre eles. Os níveis de suicídio em comunidades gay como as de São Francisco, por exemplo, eram muito elevados. Gosling, pelo que conta, também cumpriu um pacto. Na Austrália, há relatos até da cumplicidade de agentes funerários e de médicos com estes suicídios assistidos porque as mortes eram de facto horríveis."

Américo Baptista diz que casos como o de Gosling podem até ser explicados pela nossa neurologia: "A região do cérebro activada pela dor emocional é muito semelhante à da dor física, é quase como a dor de um osso partido. Partilham circuitos cerebrais. E a vontade de acabar com o sofrimento do outro e meu pode fazer-me ultrapassar facilmente as regras sócio-culturais. Tal como António Damásio diz, a emoção faz tanto parte da natureza humana como o raciocínio. Actos destes conseguem-se compreender a esta luz."

Laura Ferreira dos Santos lembra que é importante que o caso Gosling, como outros, venha de Inglaterra: "É o país dos cuidados paliativos. Só que há quem não queira isso. Haverá pessoas que por filosofia ou por opção não querem isso. E estamos a falar do segundo país a recorrer com mais frequência à Dignitas [a clínica suíça que pratica legalmente o suicídio assistido]. O primeiro é a Alemanha."

Lei obsoleta

São casos como este de Ray Gosling que lembram, pontualmente, o Reino Unido destas pessoas que não querem os cuidados paliativos. E que ressuscitam a discussão sobre a morte assistida ou que têm obrigado mesmo a decisões judiciais que talham caminho para novas abordagens legislativas. A lei em vigor é de 1961, considerada por muitos obsoleta, para responder a casos de dúvida em que se coloca a questão da compaixão versus crime. Chama-se Suicide Act e considera crime qualquer acto de ajuda, incentivo ou aconselhamento com fim ao suicídio. A lei é válida para Inglaterra e País de Gales. O quadro legal da Irlanda do Norte é idêntico. E na Escócia, apesar de não existir legislação específica, o código penal contém directivas contra estes actos.

Mas ultimamente uma sucessão de casos nesta matéria podem trazer alterações legislativas ao Reino Unido: Kay Gilderdale foi absolvida depois de ter ajudado a filha de 31 anos, também com esclerose múltipla, a morrer, já após várias tentativas de suicídio falhadas. Kay administrou um cocktail de medicamentos à filha, paralisada e que não conseguia sequer engolir, que a levou à morte. À saída do tribunal, no passado dia 1 de Fevereiro, depois de ter dito que não se arrependia de ter posto fim ao sofrimento da filha e que faria tudo de novo, desabafou: "Temos uma lei sem sentido."

Um outro caso é o da enfermeira Frances Inglis, que foi condenada a pena perpétua, convertida num mínimo de nove anos - pela compaixão do acto, disse o juiz -, por ter administrado, em 2008, uma dose de heroína letal no seu filho Tom, de 22 anos, que sofria de uma profunda paralisia cerebral desde que tinha sofrido um acidente e que precisava de cuidados 24 horas por dia. Frances, que já tinha tentado o mesmo um ano antes sem efeito, é descrita como uma mãe devota e uma cidadã muito virada para o apoio à comunidade. Afirmou em sua defesa que só quis libertar o filho de "um inferno". O juiz sentenciou: "Não podemos tomar a lei nas nossas mãos e não podemos tirar vidas por mais coagidos que nos sintamos pelas circunstâncias."

E ainda esta semana, já depois do caso Gosling, Barrie Sheldon, de 77 anos, confessou no programa Newsnight da BBC, e em declarações ao Guardian, ter ajudado a mulher, doente terminal com doença de Huntington, auxiliando-a numa toma letal de antidepressivos. Deu-lhe o cocktail letal e saiu. Barrie foi acusado e será julgado.

Mas o caso que abanou a lei de 1961 é o de Debbie Purdy, porque fez as autoridades judiciais britânicas dizerem o que pensavam sobre compaixão. Debbie Purdy, doente com esclerose múltipla progressiva, quis saber se o seu marido pode ser processado se a acompanhar à clínica suíça Dignitas onde pensa recorrer para morrer através de suicídio assistido antes que a doença de que sofre a incapacite totalmente.

Foi com base neste pedido de Purdy que o equivalente ao Ministério Público britânico (o CPS ou Crown Prosecution Service) definiu directrizes que imperarão nestes casos em que é ténue a diferença entre ajudar a morrer ou matar. Chamaram-lhe directrizes para o suicídio assistido e dizem que é crime ajudar alguém a morrer quando se trata de um menor, com doença mental ou com qualquer incapacidade que o impossibilite de decidir em consciência, que não tenha manifestado que queria morrer ou que não tenha uma doença terminal. Por outro lado, a justiça pode considerar que não existe crime quando a vítima expressa, em consciência, que quer morrer, e quem a ajuda a morrer seja motivado exclusivamente por compaixão e seja um familiar ou amigo muito próximo do doente.

Até haver legislação mais actual no Reino Unido sobre o assunto, são estas as directrizes do CPS, em fase de consulta, que imperam. A consulta acaba para o mês que vem e aí as directrizes ganham força de lei. É então que Purdy e o marido serão livres de escolher o momento para viajarem até à Suíça e recorrerem à Dignitas, se assim for a vontade dos dois.

Debate em Lisboa

Portugal pode debater em Maio a eutanásia no Parlamento, pela mão do deputado socialista Marcos Sá. A ideia partiu de uma moção apresentada no congresso socialista de Espinho, há um ano. O deputado chegou até a recolher apoio entre nomes de peso do PS, como António Almeida Santos, que defendeu um referendo, ou o próprio secretário de Estado da Saúde Manuel Pizarro. Depois, a ideia foi posta na gaveta e nem sequer faz parte do mais recente programa eleitoral do PS, mas o deputado não desistiu.

"Não estamos em condições de legislar mas estaremos sempre em condições de discutir o tema e é importante que se discuta, o que devia ser feito durante os próximos anos. Vou fazer uma intervenção política e manifestar a forma como vejo o tema. E considero obrigatório o reforço da rede de cuidados paliativos e o reforço do apoio às famílias. Fingir que os problemas não existem é que não. Para isso não contem comigo. Este não é um problema dos outros. E quero que se debata o tema na sociedade civil", diz o deputado, que não quer emitir juízos de valor sobre Gosling mas confessa: "Não consigo conceber a ideia de ser obrigado a viver quando o meu diagnóstico é irreversível e eu sofro. Vejo isto na perspectiva dos outros e na minha. Entendo que a vontade da pessoa é primordial. Um dia posso ser eu."

Para Marcos Sá, o segredo de Gosling seria crime à luz do direito penal português: "Não há dúvida. Mas estas coisas fazem-se no silêncio." Carlos Pinto de Abreu, penalista, refere que os 20 anos a que remonta o caso relatado pelo apresentador britânico já teria prescrito pela nossa lei. Neste caso, de acordo com a lei penal portuguesa, o prazo de prescrição é de cinco anos. Caso contrário, seria considerado crime de incitação ou ajuda ao suicídio com uma pena de três a cinco anos, variável conforme o contexto do acto em si.

"O problema é que em Portugal parece que não existem casos desesperados, ou não vêm para a rua, apesar de haver portugueses inscritos na Dignitas. Mas não quer dizer que venham a morrer lá. Talvez seja uma questão de zelar pela privacidade", afirma Laura Ferreira dos Santos, que frisa que Portugal é um dos poucos países sem associações de direito à morte: "Itália tem, Espanha tem. Talvez seja a nossa falta de interesse pela coisa pública. Ou talvez a força da Igreja Católica seja maior." a

amachado@publico.pt

Sugerir correcção