Bouazizi "A faísca de que precisávamos"

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A família Bouazizi, na sua casa do bairro de Nour al-Gharbi, sabe que o jovem se sentia humilhado pelos agentes do município

Um vendedor ambulante de 26 anos que sustentava a família e sonhava ter um camião imolou-se pelo fogo e incendiou a Tunísia. Não queria morrer, apenas viver em dignidade. Hoje, depois da revolução popular que derrubou um ditador, o jovem Mohamed Bouazizi é um herói na cidade onde nasceu. A sua foto está no topo da estátua que celebrava a chegada ao poder de Ben Ali. Em Sidi Bouzid, esta é a sua história.

De Tunes a Sidi Bouzid é uma viagem de quatro horas, primeiro por estradas boas e vias rápidas com portagens, depois por dentro de vilas e aldeias. As montanhas e os cactos vão substituindo as planícies verdes de Inverno à medida que as estradas vão piorando. "Até a auto-estrada contorna Sidi Bouzid", diz um habitante da cidade.

Mohamed Bouazizi nasceu em Sidi Bouzid há 26 anos e nunca visitou Tunes e as suas avenidas largas, como a Habib Bourguiba, a que os turistas chamam Champs Elisées. Também nunca foi a Sousse nem a Hammamet, com as suas marginais cheias de esplanadas e hotéis com vista para praias de areia branca e água cristalina.

Sidi Bouzid é uma pequena cidade no interior da Tunísia, 270 quilómetros a sul da capital, 140 quilómetros a oeste da costa. Longe do desenvolvimento que os 23 anos de poder de Zine El Abidine Ben Ali trouxeram a outras zonas, não aparece nos guias turísticos. Olhando para o mapa do país, é um pontinho pequeno ali no meio. Uma espécie de enclave entre montanhas, encaixado entre a Tunísia das estepes e a do Sara.

A casa de Mohamed é uma entre muitas em Nour al-Gharbi, um bairro grande onde é fácil perder a orientação, caminhos de terra e de pedra, sem alcatrão nem referências. À entrada há duas ruas mais largas: numa fica o café Pirâmide, esplanada cheia de jovens e homens menos jovens, todos desocupados; na outra há algumas mercearias, um carpinteiro e uma oficina de bate-chapas. Depois, são só ruas a perder de vista de casas mal acabadas, tijolo e cimento à vista.

Tivesse Mohamed nascido noutro lugar e talvez Ben Ali ainda não soubesse que Sidi Bouzid existe. Continuasse Mohamed vivo e Ben Ali ainda estaria sentado no seu palácio de Cartago, indiferente à vida dos 40 mil habitantes de Sidi Bouzid.

Sexta-feira, 17 de Dezembro de 2010 podia ter sido apenas mais um dia na vida rotineira de Mohamed Bouazizi. Sem pai desde os três anos, vendia fruta e legumes no mercado de rua desde os dez, primeiro depois das aulas, a tempo inteiro desde que completara o liceu. Por algum motivo, esse foi o dia em que ele não aguentou mais, sem saber que inspiraria todo um país a dizer "basta".

"O Mohamed não falava dos problemas. Tinha sempre sorrisos para a mãe e para os irmãos. Eu sabia que se sentia humilhado com os agentes do município, mas ele fingia sempre que estava tudo bem", conta a irmã Samia, 19 anos, ainda a acabar o liceu. "Acho que ele rebentou por guardar sempre tudo dentro dele."

O que fez Mohamed rebentar foi a impotência face aos funcionários municipais que costumavam procurá-lo na rua em que vendia. Exigiam-lhe uma licença que nem sequer existe para quem vende como ele, com um carro de mão e sem posto fixo. Depois, pediam-lhe dinheiro por não ter licença.

Em Sidi Bouzid, como em muitos lugares da Tunísia, é preciso pagar para trabalhar. Os funcionários do município são como o resto do Estado, caprichoso e corrupto, agem como quem tudo pode face a quem tem medo.

Samia não se lembra de nenhuma das palavras do irmão nessa sexta-feira de manhã. Sabe só que o dia começou como qualquer outro na casa da família: um pátio com dois fogões a carvão, um de barro, outro de ferro, uma sala com uma televisão e almofadas pelo chão, um frigorífico no corredor, canários numa gaiola amolgada no chão, paredes vazias, quatro quartos com colchões e mais almofadas. Mohamed, sustento da família, tinha um quarto só para ele, logo o primeiro, a seguir à entrada.

Pelas oito da manhã, Samia já tinha saído para o liceu, tal como a irmã Besmian, de 16 anos. Karim, 14 anos, e Zied, de oito, os rapazes mais novos da família, também já estavam a caminho da escola. O padrasto e tio de Mohamed, Ammar, pai dos mais novos, sem trabalho fixo, estava no café. Há mais dois irmãos, filhos do pai de Mohamed: Leila, de 24 anos, licenciada em Controlo de Qualidade, que por não encontrar trabalho continua a estudar em Monastir, cidade costeira, para ser técnica superior; e o irmão, Salem, de 30 anos, que deixou Sidi Bouzid para trabalhar numa fábrica de Sfax. Em casa ficara a mãe, Mannoubeia, de 55 anos.

"Dá-nos o papel"

Para reconstituir as horas seguintes, Samia socorre-se do que lhe contaram os amigos do irmão.

"Chegaram três polícias municipais, dois homens e a mulher que muitas vezes já procurara Mohamed para exigir a licença e dinheiro. Disseram-lhe: "Dá-nos o papel, dá-nos o papel." Era o pretexto. Puxaram-lhe pelo carro e ele agarrou-se à balança, a tentar que não lha levassem. Ela deu-lhe um estalo. Eles deitaram-no ao chão e bateram-lhe com bastões. Ele ficou ali a gritar e a chorar, com toda a gente a ver. E eles chamaram-lhe nomes e disseram palavras feias sobre o pai dele."

Mohamed repetiu os mesmos passos que dera das outras vezes que lhe calhara em sorte ser o alvo dos agentes. "Foi ao município para recuperar as coisas e a mesma mulher bateu-lhe com a porta na cara. Mohamed disse-lhe que ia à sede do Governo fazer queixa, mas lá encontrou mais portas fechadas. Os polícias gozaram com ele por ter a roupa suja", continua Samia.

E depois Mohamed fez o que ninguém podia ter imaginado. Os edifícios da sede do município e do governo regional ficam na rua principal de Sidi Bouzid, a Habib Bourguiba, a pouca distância um do outro. A menos de 200 metros há uma bomba de gasolina e foi essa a paragem seguinte de Mohamed. Comprou uma lata de gasolina e regressou à câmara municipal. Regou-se e acendeu um isqueiro.

"Eu penso que ele não queria morrer. Mas estava farto. Guardava tudo no coração. Ele não pensava nele, só na família. Pagava as viagens da Leila para a universidade. Dava o resto do dinheiro à mãe para as coisas da casa. Ria-se todos os dias, apesar de tudo. Mesmo tendo pouco, se alguém com fome lhe pedia fruta quando ele estava a vender, dava. Era um rapaz justo e só queria ser tratado com justiça."

Um rastilho

Mohamed Bouazizi sobreviveu mais de duas semanas às queimaduras. Mas no dia em que se imolou pelo fogo incendiou a Tunísia. Um país cheio de gente como ele, que passou demasiados anos a guardar tudo o que pensava e sentia.

De Mohamed já se escreveu que era engenheiro informático, diplomado no desemprego como milhares de tunisinos, como muitos jovens de Sidi Bouzid. Não era. Em casa dele não há computadores nem Internet. "Ele ainda pensou entrar no Exército, para ter um trabalho melhor, mas era preciso pagar seis mil dinares [3100 euros] e nós não tínhamos dinheiro suficiente", conta Samia. "Depois conformou-se. O sonho dele era juntar dinheiro para comprar um camião e deixar de empurrar o carro da fruta todos os dias."

"Quando o meu filho estava vivo, só pedi a Ben Ali que o salvasse. Agora que ele está morto, só peço que ajudem a minha família", diz Mannoubeia, a olhar para a fotografia do filho na fotocópia do bilhete de identidade. O original desapareceu na confusão dos últimos dias.

A família tem recebido muitas visitas, de jornalistas tunisinos e estrangeiros, de vizinhos e de gente de outros bairros. Nenhuma de responsáveis governamentais. Nenhuma a oferecer ajuda a não ser a solidariedade dos membros do Comité de Apoio e Acompanhamento de Sidi Bouzid, formado no dia da imolação pelo fogo de Mohamed. O grupo junta advogados, sindicalistas e membros do Partido Democrático Progressista (PDP), uma das formações da oposição legal na Tunísia.

"A primeira coisa que fiz foi dirigir-me ao hospital e pressionar a direcção para transferir o Mohamed para Sfax. Estava completamente calcinado, o hospital da cidade não podia fazer nada por ele", conta Ahmouni Atia, membro do comité político do PDP, enquanto bebe um chá oferecido pelas irmãs de Mohamed. "Logo nessa tarde, as pessoas da cidade juntaram-se diante do município e da sede do partido de Ben Ali. Gritavam: "A vingança de Mohamed Bouazizi." À noite já era uma multidão. Lançaram laranjas e bananas contra os edifícios, mas dispersaram sem violência e regressaram às suas casas", descreve.

Tudo podia ter ficado por aí, mas no dia seguinte os habitantes voltaram a sair à rua. E, como as autoridades pediram a intervenção das forças de segurança, Atia e os colegas de partido decidiram formar o comité e pedir a outras cidades da região que fizessem o mesmo. "A polícia atacou as pessoas com bastões e bombas de gás lacrimogéneo. E isso só indignou mais toda a gente. Primeiro só pedíamos empregos. Mas no domingo de manhã, quando se juntou mais gente, já se ouviam gritos contra o Governo. Sentimos como se Sidi Bouzid tivesse saído inteira para as ruas."

À contestação que levou o Presidente Ben Ali a fugir da Tunísia a 14 de Janeiro já se chamou "revolta da classe média", dos "licenciados desempregados", do Twitter e do Facebook. Mas tudo começou com o gesto desesperado de um jovem que nunca pensou chegar à universidade. Vivia numa cidade pequena e esquecida. Vendia legumes e fruta e estava contente com isso. Só queria ser tratado com dignidade. O seu exemplo fez com que os habitantes da sua cidade decidissem por fim protestar. Fizeram-se imagens das manifestações e a sua história correu pela Internet e chegou à Al-Jazira, a televisão árabe de notícias - a única a furar a censura no país. De repente, os tunisinos, do povo à classe média, estavam despertos.

Com Atia vieram à casa de Mohamed mais dois Bouazizi, sobrinhos do pai que o vendedor ambulante perdeu aos três anos. Também são membros do PDP. "Eu fui o primeiro a pôr na Internet as imagens dos protestos em Sidi Bouzid", diz Ali, olho negro dos três dias que passou na prisão, lá posto pela polícia política no dia 19 de Dezembro. Em poucos dias, já havia comités de apoio a Sidi Bouzid em várias cidades da região: Gasfa, Sfax, Ragueb, Kasserine. Os protestos multiplicaram-se e em menos de uma semana chegaram à capital.

A família do Diabo

Saad, o outro primo de Mohamed Bouazizi, fracturou as costelas em confrontos com agentes, mas diz que já lhe tinham feito pior no passado. "Fui prisioneiro durante dois anos por fazer um boletim que denunciava a corrupção da família Trabelsi. Na prisão espancaram-me, queimaram-me com cigarros", explica.

Trabelsi é sinónimo de Diabo, em Sidi Bouzid e por todo o país. Agora que podem falar, os tunisinos não poupam palavras para descrever Leila Trabelsi, a primeira-dama, ex-cabeleireira que começou por ser amante de Ben Ali e que com ele se casou em 1992. À família, com os seus gananciosos irmãos, que ao longo dos anos se apropriaram das empresas mais lucrativas do país e estavam presentes em quase todas as áreas da economia, os tunisinos chamam hoje "máfia". A Leila chamam "tata" (tia), agora com desdém, e comparam-na a Imelda Marcos, a antiga primeira-dama filipina que ficou conhecida por coleccionar sapatos. A tunisina tinha gostos ainda mais caros e, para além das roupas, acumulou propriedades de luxo.

Leila Bouazizi, a irmã que pôde continuar a estudar graças a Mohamed, veio de Monastir assim que soube o que acontecera. "A Samia telefonou-me e eu fiquei sem palavras. Caí no chão, penso que desmaiei", descreve. Nem uma nem outra parecem ainda ter percebido bem o impacto do acto do irmão. "O que eu sei é que antes não tínhamos liberdade e hoje os jovens de Sidi Bouzid podem falar. Agora há uma fotografia de Mohamed no centro da cidade e todos os homens choram por ele", diz Samia. "Penso que ele se tornou num símbolo", afirma Leila.

O que as irmãs sabem é que, desde que Mohamed se imolou pelo fogo diante da sede do município, a rotina da cidade mudou. De noite, durante o recolher obrigatório, os homens e rapazes de todas as idades organizam-se em grupos e sentam-se nas esquinas, em redor de fogueiras acesas e armados com paus, para protegerem as suas casas. De dia, juntam-se mulheres e raparigas, improvisam-se cartazes e marcha-se, para a frente e para trás, na Rua Habib Bourguiba.

Terça-feira à noite, no bairro Nour al-Gharbi, há grupos de vigilantes formados só por miúdos pequenos, outros por homens feitos. O grupo maior tem gente de todas as idades: Mohamed Najid, jornalista do diário Hurrya ("Primeiro era do sindicato, depois do Governo, agora não sei quem manda..."); Hafad, de 28 anos, sem trabalho; Younis, 31 anos, professor de Matemática, a trabalhar 13 horas por dia numa mercearia por 100 euros mensais; Issam, 34 anos, licenciado em Gestão, a trabalhar como funcionário administrativo no liceu do bairro por 200 euros por mês.

"Somos todos solteiros", diz Younis, e os outros riem. "Vivemos todos com os nossos pais. Ajudamo-nos uns aos outros."

"A nossa cidade sempre foi marginalizada. Mesmo aqui, os empregos melhores iam para gente de Sousse, a cidade de Ben Ali. Há 30 anos, Sousse não tinha nada. Hoje tem hotéis e lojas e casas boas, tem tudo o que nós não temos. Para nós nunca veio nada. Eles abriam concursos públicos, mas os lugares só iam para as pessoas de Sidi Bouzid que tivessem dinheiro para subornar alguém", conta Issam.

"Chamaram-nos terroristas. Mas os verdadeiros terroristas são os Trabelsi. Eles eram donos de tudo, até das estradas. É por isso que nós não temos estradas boas... Nenhum deles era daqui", diz Hafad, gorro negro enfiado na cabeça.

"Agora, ele é o rei do bairro", brinca Mohamed, o jornalista, a falar do jovem Hafad. Como rei do bairro, Hafad ordena a outros jovens que vão buscar as provas da violência com que a polícia atacou Nour al-Gharbi nos primeiros dias dos protestos. Depressa chegam rapazes e homens com o que sobra de bombas de gás lacrimogéneo, cilindros verde-tropa. Passado um pouco chega também Masjeed, 17 anos, atingido por cima do sobrolho quando estava a sair do liceu, toalha na cabeça. "Ali mora o outro Masjeed, o que perdeu um olho", indica Hafad.

Masjeed, "a segunda vítima depois de Mohamed Bouaziz", como lhe chamam os vizinhos, está em casa desde que perdeu o olho esquerdo, na manhã do dia 18 de Dezembro. A família insiste para que entremos. "Ele não está bem", diz a irmã, de 22 anos, estudante de Francês na Universidade de Gasfa. Masjeed demora um pouco mas aparece na sala, com ar perdido.

"Tenho quase 20 anos. Ainda estudo mas também vendo telemóveis numa loja. Agora não sei como vou continuar a estudar. Também não vejo bem do outro olho. Eles destruíram os meus sonhos", afirma. Em cima da mesa estão fotografias de Masjeed antes dos protestos. Ele pega nelas e olha para todas, uma a uma. Depois mostra-as, como a dizer "este era eu, agora não sei bem quem sou".

À porta da família de Masjeed está mais um jovem de bastão de madeira na mão. Quer confirmar que os visitantes são mesmo jornalistas. "Desculpem, mas a situação está difícil", diz Hannas, 18 anos. "Nos últimos quatro dias dormi seis horas. Não sabemos quem anda a fazer pilhagens. Espero que não sejam tunisinos. Não posso acreditar que seja gente do meu país. E ainda temos medo da polícia, que lançou bombas de gás lacrimogéneo mesmo para acertar nas pessoas. São tempos difíceis, mas nós somos gente de bem, só queremos proteger as nossas famílias", justifica-se.

Hannas participou nos protestos desde o primeiro dia e ainda nem sabe bem explicar o que aconteceu desde então. "Primeiro só pedíamos coisas simples. Empregos. Um hospital melhor. Universidades. Não ousávamos pensar que o regime pudesse cair. Nem sequer pensávamos que isso fosse possível." Hannas quer ser contabilista. "Quero estudar em Tunes e depois viajar para a Europa. É o que todos queremos."

Oficialmente, o desemprego na Tunísia está nos 13 por cento. Entre os jovens, será de 30 por cento e é maior ainda para os licenciados, dizem os analistas. Mas desde Habib Bourguiba, o primeiro Presidente da Tunísia independente, deposto por Ben Ali, que o país investe na educação e ter um diploma tornou-se numa ambição comum.

Metade dos dez milhões de tunisinos tem menos de 25 anos. O crescimento da economia, de quase 4 por cento ao ano, não tem chegado para absorver os milhares que entram todos os anos nas universidades. Mesmo em Sidi Bouzid, sem uma única universidade, muitas famílias sacrificam-se e mandam os filhos estudar para Monastir, Gafsa ou até Tunes. Muitos, como Hannas, sonham em chegar à Europa, mas nos últimos anos a crise começou a fechar as portas da imigração.

A noite passa-se tranquila e o dia amanhece sem violência. Pela manhã, os rapazes de Nour al-Gharbi descansam e as suas mães sentam-se nos degraus diante das portas das suas casas. Já não há restos das fogueiras da noite. Nos últimos dias, os tunisinos especializaram-se em montar e desmontar barricadas, em acender e apagar fogueiras.

A estátua de Mohamed

A pé demora-se uns 20 minutos a percorrer o caminho que Mohamed Bouazizi fazia todos os dias para chegar à rua dos vendedores ambulantes, no centro da cidade.

A fotografia de Mohamed de que falava a sua irmã, Samia, está no topo da estátua que até agora celebrava o 7 de Novembro, dia da chegada ao poder de Ben Ali, em 1987. Dourada, a meio da Rua Habib Bourguiba, tem uma pomba e a cauda de um cavalo em forma de sete, mais sete raios de Sol. Mas tudo isso mal se vê, coberto de palavras novas. Há a fotografia de Mohamed e em baixo cartazes impressos e escritos à mão. Frases como "Ben Ali fora" ou "RCD basta", "Abaixo a lei do terrorismo" e ainda listas com as universidades que os professores do secundário de Sidi Bouzid querem ver na cidade.

Kaiss, 23 anos, "a idade da revolução", está sentado nos degraus da base da estátua. "Éramos escravos há demasiado tempo", diz. "Esta era a Rua Habib Bourguiba", continua. "Agora vai chamar-se Mohamed Bouazizi." É provável que em breve Nour al-Gharbi, Sidi Bouzid e o resto da Tunísia tenham ruas com o seu nome.

Sidi Bouzid não tem cinemas nem teatros nem universidade nem indústria. "Até a auto-estrada contorna a cidade. Aqui temos agricultura, fruta, legumes. E temos vacas, mas a fábrica de leite que nos foi prometida há anos foi para Sfax. Como não há infra-estruturas para escoar a produção, o preço final dos produtos agrícolas é cinco vezes maior do que noutras zonas", garante Hajlaoui Chokri, professor de Economia de 34 anos, sem emprego há dois. "Nem os nossos representantes no Parlamento são de Sidi Bouzid", diz ainda.

"Vamos de casa para o café e do café para casa", afirma Kaiss, desempregado. Sidi Bouzid tem 40 mil habitantes e muitos cafés. "Não há mais nada para fazer", continua. Agora que podem falar, são muitos os jovens a dizer o mesmo. Os cafés da Rua Habib Bourguiba estão cheios, mas depressa se vão esvaziar.

A manifestação do dia passa diante da estátua com a foto de Mohamed Bouazizi e vai engrossando, com quem marcha a chamar por quem está encostado à parede ou sentado numa das esplanadas. Centenas de pessoas gritam "Tunísia livre" e "RCD fora".

O objectivo dos manifestantes é a sede da União Constitucional Democrática (RCD, na sigla francesa). Porque na cidade em que Mohamed Bouazizi se imolou pelo fogo, onde começou a contestação que levou o Presidente Ben Ali a fugir da Tunísia, as marchas não vão parar até o seu partido desaparecer de vez de cena.

Alguém dá um murro num carro e outros pedem que pare. Ninguém está ali para destruir nada, ninguém está ali para fazer mal a ninguém. Em menos de meia hora, os habitantes de Sidi Bouzid tomam sem violência a sede do RCD, sem que os três soldados que a guardavam tenham feito mais do que disparar alguns tiros para o ar. Agora, a casa do RCD chama-se "Casa do Povo", como se escreveu com tinta pelas paredes.

Sabra, arquitecta de 24 anos, comove-se. "Eu tenho trabalho, mas estou de todo o coração com o meu povo. Não acreditamos mais neles, nos membros do partido. Durante toda a minha vida eles só nos enganaram. Agora chega." Sabra ajuda a segurar uma faixa onde se lê "Cidade da primeira chama. Continuaremos as manifestações até arrancarmos o gang do RCD pela raiz". Outras faixas pedem "Não roubem a revolução ao povo" e "Eliminem o sistema político e levem a tribunal os verdadeiros criminosos". Muitos cartazes improvisados dizem apenas "Somos fiéis ao sangue dos mártires".

Os mártires são Mohamed Bouazizi e todos os outros tunisinos mortos pela polícia nas primeiras semanas da contestação: mais de 100, segundo informações preliminares recolhidas pelas Nações Unidas. São também os que seguiram o seu exemplo e tiraram a própria vida em protesto.

À imolação de Mohamed, seguiram-se outras. E a Tunísia, pouco habituada a extremismos, estremeceu com estes actos. Cinco dias depois de Mohamed se ter regado com gasolina, Houcine Néji, de 24 anos, licenciado e desempregado, subiu a um poste de alta tensão. "Estou farto da miséria, da privação, a minha vida não tem mais sentido", gritou para os amigos atónitos, antes de se lançar sobre os cabos, para a morte. Seguiu-se um operário, doente e pai de dois licenciados sem emprego, que se enforcou na cidade de Chebba (Leste) depois de lhe ter sido recusado um subsídio para alimentar a família. Depois, foi a vez de um jovem desempregado da região de Gafsa se imolar pelo fogo. Houve ainda um segundo universitário de uma cidade perto de Sidi Bouzid a matar-se, atirando-se contra cabos de alta tensão.

Hudda, 34 anos, professora de Francês dos últimos anos do secundário, nunca pensou ver os habitantes de Sidi Bouzid a trepar pelas grades do partido do RCD. "Antes, tinha vergonha do meu país. Um povo que cala merece ser espancado, merece que a polícia dispare a matar. Agora só tenho orgulho. São os meus alunos que alimentam esta revolta. Antes tinham sonhos, mas a falta de oportunidades deixou-os cada vez mais desiludidos. Cansaram-se e eu estou com eles."

Um país laico

A manifestação continua, para um lado e para outro. E ao longo da rua principal vão-se formando grupos de todas as idades a discutir o passado e o futuro. "Sou engenheiro. Não conseguia arranjar emprego porque diziam que eu era membro do Ennahda, o partido islamista. Mas tudo o que eu fazia era ir à mesquita nas horas das orações", conta Abdul Kader. "Estou no desemprego desde 1994. Tinha 37 anos. Agora sou um velho. Mas não me resignei."

Hamdi Bakari, 19 anos, quer mostrar um cartaz com uma lista de nomes de jovens presos sem acusação, ao abrigo da lei do terrorismo, em vigor desde 2003. Ben Ali aproveitou o ambiente pós-11 de Setembro para apertar ainda mais qualquer semblante de oposição. Em 2002, houve um atentado em Djerba, ilha tunisina com uma grande comunidade de judeus. A partir daí, a luta contra o terrorismo passou a ser pretexto para prender opositores, para encarcerar quem quer que fosse.

De acordo com associações de defesa dos direitos humanos, são milhares os presos em nome desta lei por todo o país. "Só nesta região há 800 desaparecidos", garante Hamdi. "Era preciso que isto acontecesse. Bastava uma faísca. Mohamed Bouazizi foi a faísca de que precisávamos. Bastou que alguém fizesse alguma coisa. Depois, não podíamos deixar os outros a falar sozinhos", continua Hamdi. "O meu irmão tem de ir todos os dias à polícia e não pode deixar a região. Só porque usa barba e faz as orações", descreve.

Monjer, com idade para ser pai de Hamdi, quer saber que tipo de governo deseja o rapaz. "Um governo que não discrimine os crentes", responde Hamdi. "Eu tenho 53 anos e não luto por um país islamista. Quero um país laico", replica Monjer. "A Tunísia não é um país laico, é um país islâmico. Eu falo em nome de todos os tunisinos muçulmanos", continua Hamdi. "Ah sim? Então és outro Ben Ali. Ele é que falava em nome de todos nós. Eu só falo em meu nome." Os ânimos exaltam-se por momentos. Hamdi e Monjer falam um por cima do outro e em redor há gritos de "deixa-o falar" e "todos temos direito à nossa opinião". Agora que os tunisinos começaram a falar, difícil é pararem.

Noutro grupo, alguém diz que quer um "regime onde caibam todos, mesmo os homossexuais". E logo um homem se enerva e grita: "Estás a convidar os homossexuais a virem para a Tunísia? Aqui, não os queremos." De repente, a conversa salta para as mulheres. "Foi uma mulher que bateu no Mohamed Bouazizi", diz o mesmo homem. Monjer, decidido a instigar a discussão onde possa, aproxima-se. "E é uma mulher que vai levar as tuas palavras ao mundo", diz, apontando para os jornalistas. "O que eu quero é um governo de jovens livres, de tunisinos livres. As mulheres também têm o seu papel", responde o homem, já mais calmo.

As duas mesquitas do centro da cidade têm agora as portas abertas o dia todo. "Antes só abriam para as orações", diz Lazar, vendedor ambulante como Mohamed Bouazizi. "Finalmente podemos ir rezar ao nosso Deus sem medo de sermos denunciados por isso", diz, a caminho da mesquita principal. "O Mohamed também rezava a Deus", assegura.

Ser perseguido por rezar

Foi por Ben Ali esmagar eficazmente os islamistas que os países ocidentais tinham o seu regime em tão boa conta. Mas um regime autoritário é isso mesmo, um regime sem limites: muçulmanos ou islamistas radicais foram tratados da mesma forma, o Presidente fez discursos a condenar o lenço islâmico e quem não escondesse a sua crença era identificado como suspeito a vigiar.

Aymen Ouled Sahel é um desses tunisinos. "Eu rezava e só por isso era perseguido", diz Aymen. "Sempre que chegava para visitar a minha família, recebia telefonemas de um homem, a querer saber ao que vinha", conta. Aymen estudou em Bizerte e em Tunes e hoje é engenheiro informático. Trabalha na capital, para uma empresa privada. "Decidi que nunca trabalharia para o Estado, mesmo que o emprego fosse muito bom, mesmo que me pagassem muito bem. Não queria ser um engenheiro de secretária, como os do Governo. Não fazem nada. Bebem café e assinam papéis para os chefes verem", descreve.

Filho de agricultores de uma aldeia nos arredores de Sidi Bouzid, Aymen veio de Tunes para "partilhar este momento de alegria" com a família. "Este Estado que tínhamos destruiu o país. O desenvolvimento de que falavam não passava de números. Mesmo na universidade, a formação não é boa. Eu passei seis anos na universidade e sei do que falo. A maioria dos professores não está lá para nos preparar, para nos despertar, está lá para picar o ponto e para ajudar o clã no poder a controlar-nos."

Aos 25 anos, Aymen nunca votou. "Para quê?", pergunta. "Quem era independente não podia candidatar-se a nada. Tive um professor que quis concorrer à presidência e foi internado, declarado louco, como Ben Ali fez com Bourguiba. Eles funcionavam como George Bush filho. A regra era "ou estás connosco ou contra nós"." Aymen conta que uma aldeia vizinha da sua só teve electricidade em 2004 porque se espalhou pela região que as dezenas de famílias que ali viviam se opunham ao regime. Descreve os polícias que o intimidavam como "vagabundos que antes de nós começarmos a falar já nos estavam a ofender com palavras que não usaríamos nem para os nossos inimigos". E recorda as visitas a casa dos pais de informadores do Governo interessados em saber o que pensava a família do regime.

"Nos cafés, se alguém começava uma conversa sobre política, as pessoas à volta desapareciam em minutos. No fundo, nós tínhamos medo do regime, mas o regime também tinha medo de nós. Se soubessem que estavam a fazer o melhor pelas pessoas, não precisariam de perguntar nada, não é? O regime tinha medo do povo", conclui.

O jovem engenheiro ainda tem medo. "Não é das pessoas. No princípio achei que ia haver confrontos entre as pessoas, mas depois vi um povo que merece ser livre. Mas não podemos recuar. Só Ben Ali é que fugiu, os vigilantes que trabalhavam para o Governo ficaram. Se o RCD voltar, vai ser uma catástrofe, muito pior do que antes. Vão querer vingar-se, principalmente desta região. Eles nunca pensaram que uma revolta pudesse começar aqui. Que um jovem como Mohamed Bouazizi pudesse fazer o que fez. Ele tirou a sua própria vida, não fez mal a ninguém. E isso foi muito forte. O Presidente nem sabia que nós existíamos."

Aymen, de regresso a Tunes, vai continuar a manifestar-se nas ruas da capital. Até ter a certeza de que o RCD não volta. Até deixar de ter medo. a

slorena@publico.pt

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