Vamos declarar guerra ao glúten?
Devemos comer o que andamos a comer? Não há unanimidade, nem entre os cientistas, sobre muitos dos produtos que fazem parte das nossas dietas. A Revista 2 olhou para alguns deles e para estilos de alimentação que têm dado que falar.
Logo a seguir ao Dia do Trabalhador, a exposição de produtos Sem Glúten Nem Alergénicos parou um fim-de-semana no Centro de Exposições de Meadowlands. Todos os anos, o evento atravessa o país como um espectáculo de medicina itinerante, enaltecendo-se como a maior apresentação de produtos sem glúten dos Estados Unidos. Há bandeiras presas em tendas com mensagens de boas-vindas, como “A farinha de banana-pão é a nova couve”. A farinha de banana-pão não tem glúten, tal como não tem qualquer dos outros produtos da exposição (incluindo a couve). Há batatas fritas sem glúten, molhos sem glúten, sopas sem glúten e guisados sem glúten; há pães sem glúten, croutons sem glúten, pretzels sem glúten e cerveja sem glúten. Há fusilli artesanal e penne sem glúten produzidos em Itália, e fusilli artesanal e penne sem glúten produzidos nos Estados Unidos. Dezenas de empresas montaram mesas com amostras de queijo, douradinhos, palitos de pão e palitos de soja sem glúten. Um homem distribui pacotes de pão ralado, feito por “mestres padeiros” com certificados de ausência de glúten e de organismos geneticamente modificados e de cozinha kosher. Há até comida de cão sem glúten.
O glúten, uma das proteínas mais consumidas no mundo, é criado quando duas moléculas, a glutenina e a gliadina, entram em contacto e formam uma ligação. Quando os padeiros estendem a massa, estão a criar uma membrana que dá ao pão a sua textura elástica e permite aos chefs de pizza rodar a massa no ar. O glúten também apanha dióxido de carbono que, ao fermentar, aumenta o volume do pão. Há pelo menos dez mil anos que os humanos comem trigo e o glúten que este contém. Para pessoas com a doença celíaca — que afecta 1% da população [tanto nos EUA como em Portugal, segundo a Associação Portuguesa de Celíacos; é sobretudo herdada geneticamente] — a mais pequena exposição ao glúten pode desencadear uma reacção imunitária suficientemente forte para causar danos graves na superfície do intestino delgado. As pessoas com doença celíaca têm de estar sempre em alerta com a alimentação, aprendendo a descobrir perigos escondidos em produtos vulgares, tal como proteínas de vegetais hidrolisados e vinagre de malte. Comer em restaurantes requer uma vigilância apertada. Até a reutilização da água usada para cozer massa pode ser perigosa.
Até há cerca de uma década, os outros 99% raramente pensavam no glúten. Mas, liderados por pessoas como William Davis, um cardiologista cujo livro Sem Trigo sem Barriga [editado pela Lua de Papel] criou um império assente na convicção de que o glúten é um veneno, de que a proteína se tornou no vilão da culinária. Davis acredita que até os “saudáveis” cereais integrais são destrutivos e tem culpado o glúten por tudo, desde a artrite à asma, até à esclerose múltipla e à esquizofrenia. David Perlmutter, neurologista e autor de outra das obras fundadoras do movimento sem glúten, Cérebro de Farinha: A Chocante Verdade Sobre o Trigo, o Glúten e o Açúcar — os Assassinos Silenciosos do Seu Cérebro [Lua de Papel], vai ainda mais longe. A sensibilidade ao glúten, escreve, “representa uma das maiores e menos reconhecidas ameaças de saúde da humanidade”.
Quase 20 milhões de pessoas relataram ter regularmente problemas depois de ingerir produtos que contêm glúten e um terço dos adultos americanos afirma estar a tentar eliminá-lo da sua alimentação. Um estudo que analisa as tendências da restauração americana concluiu que em 2013 os clientes pediram mais de 200 milhões de pratos sem glúten ou sem trigo (também há glúten no centeio e na cevada, e uma dieta sem glúten não pode ter qualquer destes cereais). A síndrome foi baptizada como “sensibilidade ao glúten sem doença celíaca (ou síndrome do intestino irritável)”. “Há quatro anos que não como glúten e isso mudou a minha vida”, disse-me Marie Papp, fotógrafa, na exposição. “Eu tinha dores de cabeça, enjoos, dificuldades em dormir. Sei que sou intolerante porque quando desisti me senti melhor. Provavelmente, esta explicação não é suficientemente científica para si. Mas eu sei como me senti, como me sinto e o que fiz para mudar.” Continuou: “Sou uma foodie. Há cinco anos que não comia um biscoito. E acabei de comer um aqui, sem glúten. E é óptimo.”
Trigo, ingrediente escondido
As vendas dos produtos sem glúten vão exceder os 15 mil milhões de dólares [12,6 mil milhões de euros] em 2016, o dobro dos cinco anos anteriores. O aumento da lista de produtos sem glúten tem sido uma dádiva para muitas crianças, que já não precisam de viver sabendo que nunca poderão comer pizza, bolachas ou bolos. Tal como a comida biológica, que no início só era vendida em sítios com uma clientela local, cada vez mais o mercado é dominado pelas grandes empresas. Goya e ShopRite tinham ambos bancas na exposição; tal como a Glutino, fundada em 1983 e que agora se tornou um conglomerado dos sem-glúten. “Havia muitas pequenas empresas de sem-glúten de tipo familiar”, afirmou recentemente numa entrevista ao Globe and Mail Steven Singer, co-fundador da Glutino. “Tinham uma coisa tipo batedeira ou misturadora, eram todas pessoas fantásticas, mas não havia ali negócio. E foi isso que nos moveu, a ideia de sermos a loja onde as pessoas vão comprar produtos sem glúten, sermos os líderes, os líderes do produto.”
Para muitas pessoas, evitar o glúten tornou-se uma coisa cultural, quase tanto como uma escolha dietética, e a exposição oferece uma rampa de lançamento para um novo estilo de vida. Havia um agente de viagens especializado em férias sem glúten e uma mulher que ajudava a preparar copos-de-água de casamentos sem glúten. Um vendedor mostrava placards onde se lia: “Estou livre de trigo”, “estou livre de mariscos”, “estou livre de ovos”. Também vi um anúncio de hóstias sem glúten.
O medo do glúten tornou-se tão visível que, há umas semanas, a série televisiva South Park dedicou um episódio ao assunto. South Park tornou-se a primeira cidade totalmente sem glúten do país. Agentes federais colocavam de quarentena qualquer pessoa que pudesse ter sido “contaminada” numa pizzaria Papa John’s rodeada de arame farpado. Os cidadãos eram obrigados a livrar-se dos seus alimentos pecadores e uma multidão enraivecida incendiava campos de trigo.
“Independentemente da doença que vos atacou, vamos culpar o glúten”, escreve April Peveteaux no seu divertido livro Gluten is My Bicth (o mesmo nome do seu blogue). “Se você quer ou precisa de uma dieta sem glúten, bravo! Ponha um travão no malvado do glúten... Não tem a certeza de o ‘gluten free’ ser para si? Talvez o glúten apenas lhe cause algum desconforto, mas nunca foi diagnosticado. Então que se lixe o glúten!”
O trigo fornece cerca de 20% das calorias mundiais e mais alimento do que qualquer outra fonte. A colheita de 2013, de 718 milhões de toneladas, significou praticamente 90 quilos por cada habitante da Terra. Nos Estados Unidos, o consumo de trigo parece oscilar segundo as tendências nutricionais. Aumentou estavelmente dos anos 1970 até 2000, reflectindo o crescente aumento das preocupações sobre a relação entre a carne e a gordura saturada, colesterol e doenças cardíacas. Desde então, o número de pessoas que dizem que o trigo, centeio e cevada as põe doentes aumentou, apesar de o consumo do trigo ter diminuído.
O trigo é fácil de cultivar, armazenar e transportar. As propriedades químicas da farinha e da massa também o tornam versátil. A maioria sabe que é utilizado no pão, massa, noodles e cereais. Mas o trigo tornou-se um ingrediente escondido em milhares de outros produtos, incluindo sopas, molhos, condimentos, snacks, e até em carnes processadas e vegetais congelados. Quase um terço das comidas dos supermercados americanos contém algum componente de trigo — geralmente glúten ou amido, ou ambos.
A pergunta mais óbvia é também a que é mais difícil de responder: como pode o glúten, presente num produto que há milhares de anos alimenta a humanidade, ter-se tornado de repente tão ameaçador? Existem muitas teorias mas nenhuma resposta científica satisfatória. Alguns investigadores argumentam que os genes do trigo se tornaram tóxicos. David afirma que o pão actual não tem nada que ver com o pão que há 50 anos ia parar às nossas mesas: “O que mudou é que os efeitos adversos do trigo na saúde humana foram muitas vezes ampliados... A versão do ‘trigo’ que consumimos hoje é um produto que resulta de investigação genética... Você e eu não conseguimos de forma alguma as formas de trigo que cultivávamos há 50 anos, muito menos há cem ou dez mil anos... Temos de restringir outros hidratos de carbono para além do trigo, mas o trigo ainda se destaca como o pior dos piores.”
Perlmutter é menos restritivo: “Entre nós, 40% não conseguem processar correctamente o glúten, e os outros 60% podem estar a caminho disso.”
Apesar de os padrões de alimentação terem mudado drasticamente no último século, os nossos genes não mudaram. O corpo humano não evoluiu de forma a consumir a dieta ocidental moderna, com refeições cheias de substâncias açucaradas e hidratos de carbono refinados com elevadas calorias. Quase todo o trigo que comemos hoje foi moído para ficar uma farinha branca, que tem muito glúten, mas poucas vitaminas ou nutrientes, e pode causar aumentos consideráveis no nível de açúcar no sangue que frequentemente origina diabetes e outras doenças crónicas.
Donald Kasarda, investigador no Departamento de Agricultura dos EUA, estuda há décadas a genética do trigo. Numa investigação recente publicada no Journal of Agricultural and Food Chemistry, não encontrou provas de que uma mudança nas técnicas de cultivo do trigo tenha provocado um aumento da incidência da doença celíaca. “A minha pesquisa às proteínas do trigo americano ao longo de praticamente cem anos não mostra que tenha havido um aumento quando comparamos os dados históricos com os dados recentes”, disse depois numa entrevista.
Joseph A. Murray, professor de Medicina e presidente da Sociedade Norte-Americana para o Estudo da Doença Celíaca, também estudou a genética do trigo. Concorda com Kasarda. “O grão de trigo não é muito diferente do que era há 50 anos”, disse-me Murray. “Quimicamente, os conteúdos não se alteraram muito. E há uma coisa mais importante a salientar. O consumo do trigo está a baixar, não a aumentar. Não acho que este seja um problema ligado à genética do trigo.”
Mas algo de estranho está nitidamente a passar-se. Por razões que continuam por explicar, a incidência da doença celíaca quadruplicou nos últimos 60 anos. Inicialmente, os investigadores atribuíram o aumento de casos a um maior esclarecimento do público e a melhores diagnósticos. Mas nenhum deles pode responder totalmente pelo salto desde 1950. Murray e os colegas da Mayo Clinic descobriram esse aumento quase por acaso. Murray queria examinar os efeitos a longo prazo da doença celíaca não diagnosticada. Para o fazer, analisou amostras de sangue retiradas a 9000 recrutas da Força Aérea entre 1948 e 1954. Os investigadores procuravam anticorpos de uma enzima chamada “transglutaminase”; são um marcador fiável da doença celíaca. Murray partiu do princípio de que 1% dos recrutas dariam positivo, correspondendo ao nível actual da doença celíaca. Em vez disso, a equipa descobriu anticorpos no sangue de apenas dois décimos de 1% dos soldados. Depois, comparou esses resultados com amostras retiradas recentemente de grupos demograficamente semelhantes, de homens de 20 e de 70 anos. Em ambos os grupos, os marcadores bioquímicos estavam presentes em cerca de 1% das amostras.
“Isto sugere que o que quer que tenha acontecido com a doença celíaca aconteceu desde 1950”, diz Murray. “O aumento afectou da mesma forma jovens e velhos.” Os resultados apontam para que a causa seja ambiental.
Ninguém consegue saber ao certo porque é que o aumento da doença celíaca foi tão rápido. Pode ser por causa da dieta moderna. Também há cada vez mais provas, em estudos com animais e humanos, que o nosso microbioma — as muitas espécies bacteriológicas que habitam nas nossas entranhas — pode ter um impacto significativo num variado leque de doenças. Mas nada disso explica porque é que tanta gente que não sofre de doença celíaca sente necessidade de abdicar do glúten.
Os estudos levam tempo
Há anos que a ansiedade à volta do glúten tem vindo a crescer. Mas só se tornou aguda em 2011, quando um grupo liderado por Peter Gibson, professor de Gastroenterologia na Monash University e director da unidade daquela especialidade no Alfred Hospital, em Melbourne, apresentou provas de que o glúten podia causar doenças até em pessoas que não sofriam de doença celíaca. Gibson e os colegas reuniram 34 pessoas com síndrome do intestino irritável, todas com queixas de problema de estômago que desapareceram quando deixaram de comer glúten. Colocou-as sob uma dieta sem glúten vigiada, mas, sem que os analisados soubessem, metade recebia queques e pão com glúten. Era um estudo duplamente cego, na medida em que nem os médicos nem os pacientes sabiam quais os queques e pães que continham glúten. A maioria dos que comeram o glúten afirmou que as dores voltaram; a maioria dos outros, não. O estudo foi pequeno mas meticuloso e os resultados eram convincentes. Vários estudos parecidos estão agora a decorrer, mas já se sabe que a investigação sobre a alimentação é demorada e difícil.
Gibson publicou as suas conclusões no American Journal of Gastroenterology, mas, juntamente com outros especialistas, pediu contenção na interpretação dos resultados, dado o estudo ser tão pequeno. Ainda assim, milhões de pessoas com sintomas vagos de distúrbios gástricos encontraram de repente alguma coisa concreta pela qual culpar os seus problemas. O mercado prosperou, mas o mistério essencial continua por resolver: porque é que subitamente o glúten se tornou tão perigoso? Talvez, pensaram os investigadores, os agricultores tenham aumentado o conteúdo proteico (e de glúten) no trigo, de tal forma que as pessoas deixaram de o conseguir digerir adequadamente.
Mas o trigo não é apenas glúten. O trigo também contém uma complexa combinação de hidratos de carbono, e a equipa australiana interrogou-se se estes poderiam ser responsáveis pelo problema. Gibson e os colegas lançaram um novo estudo: juntaram um grupo de 37 voluntários que aparentemente tinham dificuldades na digestão do glúten. Desta vez, os cientistas tentaram excluir os hidratos de carbono para confirmar que a culpa seria do glúten. Gibson colocou todos os voluntários sob uma dieta que não só não tinha glúten como não tinha um grupo de hidratos de carbono chamado FODMAP, a sigla inglesa para uma série de palavras que poucas pessoas memorizarão: oligossacarídeos fermentáveis, dissacarídeos, monossacarídeos e polióis. Nem todos os hidratos de carbono são considerados FODMAP, mas muitos tipos de produtos contêm-nos, incluindo os que são ricos em frutose, como o mel, maçãs, mangas e melão; lacticínios, como o leite e o gelado; e frutanos, como o alho e a cebola.
A maioria das pessoas não tem problemas em digerir FODMAP, mas estes hidratos de carbono são osmóticos, o que significa que levam água ao trato intestinal. Isso pode causar dores abdominais, inchaço e diarreia. Quando os hidratos de carbono entram no intestino delgado sem estarem digeridos, deslocam-se para o cólon, onde as bactérias começam a desfazê-los. Esse processo provoca fermentação, e um dos produtos da fermentação é o gás.
No novo estudo de Gibson, quando os sujeitos foram colocados sob uma dieta sem FODMAP nem glúten, os seus sintomas gastrointestinais diminuíram. Ao fim de duas semanas, todos os participantes afirmaram que se sentiam melhor. Depois, alguns deles receberam secretamente alimentos com glúten; os sintomas não regressaram. O estudo forneceu provas de que a investigação de 2011 estava errada — ou, pelo menos, incompleta. A causa dos sintomas parecia ser os FODMAP e não o glúten; não foram encontrados marcadores biológicos no sangue, fezes ou urina que sugerissem que o glúten causava qualquer tipo de resposta invulgar do metabolismo.
Na verdade, parece mais provável que sejam os FODMAP e não o glúten a causar distúrbios intestinais, uma vez que as bactérias fermentam regularmente os hidratos de carbono e menos frequentemente as proteínas. Apesar de uma dieta sem FODMAP ser complicada, permite às pessoas eliminar temporariamente alimentos individuais e depois reintroduzi-los sistematicamente para determinar quais, se é que algum, são responsáveis pelos seus problemas de estômago. Os FODMAP não estão tão na moda como o glúten e não são tão fáceis de compreender. Mas, biologicamente, o papel que podem ter faz mais sentido, diz Murray.
“O primeiro estudo, de 2011, deixou-nos entusiasmadíssimos”, conta Murray. “Fundamentalmente, dizia que as pessoas são intoleráveis ao glúten e baseava-se numa investigação bem concebida, duplamente cega. Quando as pessoas eram desafiadas com glúten, comendo os queques, adoeciam. Não percebíamos. Mas foi então que veio o segundo estudo. Nessa altura, já era quase demasiado tarde para voltar a pôr o génio na garrafa. Há milhões de pessoas por aí completamente convencidas de que se sentem melhor quando não comem glúten — e não querem ouvir nada diferente disso.”
A investigação do FODMAP, apesar de ter sido influente e tida em grande conta, envolveu menos de uma centena de pessoas, não as suficientes para comparar com o número de pessoas que abandonaram os alimentos com glúten. Vários grupos têm tentado repetir esses resultados. Mas esses estudos levam tempo.
Actualmente, não há análises ao sangue, biópsias, marcadores genéticos ou anticorpos que possam confirmar um diagnóstico de sensibilidade ao glúten sem doença celíaca. Existiram alguns estudos sugerindo que pessoas sem doença celíaca têm razões para eliminar o glúten da sua alimentação. Mas a maior parte dos dados são pouco claros ou apenas preliminares. Raramente os médicos diagnosticam sensibilidade ao glúten sem doença celíaca e muitos não acreditam sequer que exista. Poucas pessoas se deixaram deter pela falta de provas. “Toda a gente está a tentar perceber o que se está a passar, mas ninguém na medicina, pelo menos não no meu campo, acha que isto compete com o número de pessoas que dizem que se sentem melhor por terem retirado o glúten da sua alimentação”, afirma Murray. “É difícil dar um número para estas coisas, mas diria que pelo menos 70% disto é moda ou desejo. Simplesmente, não há nada directamente relacionado com o glúten que esteja a afectar estas pessoas.”
Da farinha ao pão
Há cerca de um mês, numa tentativa de perceber melhor o papel que o glúten desempenha na nossa dieta, apanhei um avião para Seattle, depois conduzi durante uma hora para norte, até Mount Vernon, onde se situa o Laboratório do Pão da Washington State University. O laboratório faz parte do programa de cultura de trigo da universidade; estudando a diversidade dos grãos semeados no Pacífico Noroeste, os investigadores esperam determinar quais são mais adequados para fazer pães, cerveja ou massas.
Dan Barber, chef e co-proprietário dos restaurantes Blue Hill, em Manhattan e em Pocantico Hills, sugeriu-me que visitasse Stephen Jones, um geneticista molecular e director do laboratório. Barber, no seu livro mais recente, intitulado The Third Plate (o terceiro prato), descreve Jones como um salvador do trigo tradicional num mundo que transformou a maior parte das culturas em bens industriais transaccionáveis. Eu estava mais ansioso por saber o que ele tinha a dizer sobre as implicações de se acrescentar glúten extra à massa do pão, uma prática que se tornou rotineira nas padarias industriais.
Jones, um homem bem constituído com modos simples, passou os últimos 25 anos a tentar perceber qual a melhor forma de fazer um pão. A quantidade de glúten acrescentado ao pão de fabrico industrial não pára de aumentar, e Jones tornou-se cada vez mais interessado em saber se esse glúten suplementar poderá ser responsável, pelo menos em parte, pelos distúrbios gastrointestinais de que tanta gente se queixa. “O meu doutoramento foi sobre a genética do volume de um pão — olhar para os cromossomas e relacioná-los com a força da massa do pão”, diz Jones, ao cumprimentar-me à entrada do centro de investigação. O aroma convidativo, ainda que incongruente, do pão acabado de fazer enche o edifício. O seu laboratório é único; poucas padarias têm farinógrafos Brabender, que Jones e a equipa usam na pesquisa pelo equilíbrio ideal de glúten e água numa massa, e para medir a força da farinha. Nem tão-pouco existem laboratórios com um forno de cozer Matador, que consegue fazer 12 pães de forma de uma só vez, fazendo circular o ar uniformemente, a temperaturas suficientemente quentes para garantir um pão volumoso com uma crosta o mais forte possível.
Apesar de todos os utensílios de alta tecnologia no Laboratório do Pão, a operação é sem dúvida antiquada, dependendo de moinhos de pedra de um tipo que não se usa há mais de cem anos, e da filosofia de que tudo aquilo que é necessário para fazer um pão integral verdadeiro e delicioso é tempo, talento, farinha, uma pitada de sal e muita água.
Existem fundamentalmente duas formas de transformar a farinha em pão. A primeira é a que foi feita durante a maior parte da história humana: deixar a farinha absorver o máximo possível de água e dar-lhe tempo para fermentar, um processo que permite à levedura e às bactérias activarem a massa. Ao amassar, ligam-se as duas proteínas que formam o glúten.
Até finais do século XIX, quando rolos de aço e moinhos industriais começaram a ser usados, o trigo era moído em pedras, um processo lento e impreciso. Já o aço era rápido, eficaz e de fácil manutenção, e permitia aos moleiros separar o gérmen do farelo do núcleo do trigo e depois processar rapidamente o endosperma rico em amido. Isto tornou a farinha branca. Ninguém pareceu reparar, ou preocupar-se, que ao deitar fora o resto do grão os padeiros industriais estavam a retirar ao pão as suas vitaminas, as suas fibras e quase todas as suas gorduras saudáveis.
O pão branco foi visto como um luxo comportável. Tal como muitos judeus que chegaram da Rússia na viragem do século XX, o meu bisavô nunca tinha visto pão branco, mas quando viu fez imediatamente aquilo que, pelo menos na minha família, foi referido como uma “sanduíche americana”: pegou em dois pedaços do pão preto que sempre tinha comido e colocou cautelosamente uma fatia de pão branco industrial entre eles. Dizem que ficou deliciado.
A equipa do Laboratório do Pão, que inclui o paciente e inventivo padeiro Jonathan Bethony, usa grãos integrais, água, sal e fermento. Nada mais. O pão de farinha integral, mesmo quando é bom, é geralmente denso e elástico, e raramente húmido; o pão de Bethony era incrivelmente fofo e leve. Contém apenas o glúten natural formado pelo amassar da farinha. A maioria dos padeiros, mesmo aqueles que jamais se aproximariam de uma máquina de mistura industrial, junta um aditivo chamado glúten vital do trigo para fortalecer a massa e ajudar o pão a levedar. (Geralmente, quanto mais alto for o teor proteico do trigo, mais glúten ele contém.)
O glúten vital de trigo é uma forma potente e concentrada do glúten que se encontra naturalmente em todos os pães. Faz-se ao lavar a farinha de trigo com água até se dissolverem os amidos. Os padeiros adicionam o glúten extra para dar à sua massa mais força e elasticidade necessárias para aguentar o processo muitas vezes brutal das misturas comerciais. O glúten vital de trigo aumenta a vida na prateleira e actua como uma ligação; por ser tão versátil, as empresas de alimentação adicionam-no não apenas ao pão mas a massas, snacks, cereais, bolachas de água e sal, e para engrossar centenas de alimentos e até produtos cosméticos. Quimicamente, é semelhante ao glúten normal e não é mais ameaçador. Mas o facto de ser adicionado à proteína que já existe na farinha preocupa Jones. “O glúten vital de trigo é uma muleta”, diz. “Trata-se apenas de armazenamento e funcionalidade. Nada de sabor. As pessoas agem como se fosse magia. Mas não há magia na comida.”
Jones é um cientista cuidadoso e afirmou mais do que uma vez não ter provas de que uma crescente dependência num único aditivo pode explicar a razão pela qual a doença celíaca se tornou mais comum, ou de tanta gente se queixar de ter problemas com a ingestão do glúten. Mas ele e os colegas têm a certeza de que o glúten vital de trigo faz o pão saber a papa. “Farinha que é cortada e embalada em plástico em menos de três horas — isso não é pão”, afirma. Ele e Bethany Econopouly, uma das suas doutorandas — publicaram recentemente um artigo no Huffington Post no qual argumentam que a definição legal da palavra “pão” perdeu o significado e deveria mudar: “A FDA [organismo que regula os produtos alimentares e medicinais nos EUA] estipula que, para o pão poder ser chamado ‘pão’, tem de ser feito de farinha, fermento e um ingrediente húmido, geralmente água. Quando é usada farinha branqueada, podem ser incluídos na receita químicos como peróxido de acetona, cloro ou peróxido de benzoíla (sim, aquele que se usa para tratar o acne), mascarados sob o termo ‘branqueamento’. Ingredientes opcionais são também permitidos em produtos chamados ‘pão’: gorduras sólidas, adoçantes, soja sem casca, corantes, bromato de potássio... e outros fortalecedores (como agentes branqueadores e glúten vital).”
Será que milhões de pessoas poderão simplesmente estar a comer demasiado glúten vital de trigo? Não há dados para responder a essa pergunta, mas Jones não é o único a procurar entender melhor o possível impacto psicológico. Jospeh Murray, da Mayo Clinic, começou a estudar o seu efeito no sistema imunitário. Diz que “este é um componente fundamental do pão que comemos e não sabemos muito sobre ele. É muito importante percebermos o efeito, se é que existe, quando adicionamos glúten extra ao pão”.
Paradoxalmente, o consumo crescente de glúten vital de trigo pode ser atribuído, pelo menos em parte, pela procura de produtos mais benéficos para a saúde. Não é possível fabricar, embalar e transportar grandes quantidades de pão integral industrial sem adicionar alguma coisa para fortalecer a massa. (Depois da minha viagem a Seattle, o primeiro pão que vi que se publicitava ter sido feito com farinha 100% integral continha muitos ingredientes. Os primeiros quatro, listados por ordem decrescente de peso e volume, eram farinha de trigo integral, água, glúten de trigo e fibra de trigo. Por outras palavras: glúten, água, mais glúten e glúten fibroso.) Nos vídeos promocionais do Dave’s Killer Bread, uma marca de pão famosa, o fundador, Dave, fala apaixonadamente das propriedades do glúten. Imagens da fábrica mostram paletes de sacos de 22 quilos de glúten vital de trigo. “Pergunto-me quanto deste glúten adicional pode o nosso corpo digerir”, disse-me Jones quando estive no Laboratório do Pão. “Tem de haver um limite.”
A moda das dietas
Eu estava com dificuldades em ver o glúten vital de trigo como uma substância discreta. Quando mencionei isso, Jones acenou para Econopouly e ela deixou a sala. Dois minutos depois, regressou e entregou-me uma amostra de glúten vital de trigo. Parecia uma arma pré-histórica, ou uma calcificação da espinal medula de um pequeno mamífero.” Colocamos uma ponta de glúten em Coca-Cola e durante um tempo faz espuma; depois torna-se uma bola que fica ali durante semanas”, diz Jones. “Não se desintegra em pasta ou papa. Fica ali.” Tira-me a amostra da mão e atira-a contra a bancada do laboratório. Nada acontece. “Isto é simplesmente indestrutível”, afirma.
Na manhã seguinte, antes de deixar Seattle, passo nos escritórios da Intellectual Ventures, a fábrica de patentes e invenções gerida por Nathan Myhrvold, antigo director de tecnologia da Microsoft. Há muito que Myhrvold é um chef amador sério e tem também sido conselheiro gastronómico do Zagat Survey. Há três anos, publicou Modernist Cuisine: The Art and Science of Cooking, seis volumes e 2400 páginas que rapidamente se tornaram um guia fundamental para chefs em todo o mundo. Desde então, Myhrvold e a sua equipa têm trabalhado num projecto subsequente igualmente ambicioso que para já se chama The Art and Science of Bread. O livro só estará pronto daqui a pelo menos um ano, mas Myhrvold diz que será não só a história abrangente do pão como um guia para o preparar.
O chef do projecto, Francisco Migoya, pergunta-me se eu alguma vez comi glúten. Abano a cabeça. Ele coloca uma pequena bola de glúten no micro-ondas e carrega no start. Ao fim de cerca de 20 segundos, o glúten insufla como um balão, ele tira-o, coloca-o cuidadosamente num prato e serve-o. Tem a textura de torresmos. O glúten tem uma longa história culinária e tornou-se um substituto frequente da carne e do tofu. Na Ásia, onde é particularmente popular, é chamado seitan e é frequentemente cozido em vapor, frito ou assado.
Naquele dia, Myhrvold não estava na cidade, mas encontrei-me com ele mais tarde. É muito opinativo e adora controvérsia. Dizer-lhe algo como “sem glúten” é como acenar uma bandeira encarnada a um touro. “Quando eu era miúdo, estava sempre a ver os especiais da National Geographic”, conta. “Muitas vezes, viajavam para locais remotos e falavam com xamãs sobre os espíritos maléficos. Era uma altura de verdadeira condescendência; a postura era a de que ‘nós é que sabemos’ e estas pobres gentes são muito nobres, mas acham que há espíritos por toda a parte. É exactamente disto que se trata esta coisa dos sem-glúten.” Salienta que não se está a referir a pessoas com a doença celíaca, nem questiona que algumas possam ter dificuldades em digerir o glúten. “Para a maioria das pessoas, isto não é diferente de dizer: ‘Oh, meu Deus, fomos amaldiçoados.’ Estamos a passar por uma coisa que equivale a um ataque de espíritos maléficos: o glúten vai destruir o seu cérebro, vai provocar-lhe cancro, vai matá-lo. Somos aquelas mesmas pessoas que falam com os xamãs.”
“Descobrir o efeito que uma coisa como o glúten tem na alimentação é complicado”, afirma. “Precisamos de estudos de longo prazo e não haverá uma resposta útil durante anos. Por isso, em vez de dizermos às pessoas para fazerem uma dieta sem glúten, que tal dizer — ‘Olhe, estamos a fazer uma dieta à experiência e podem passar anos até sabermos o efeito que terá’? Quanto a si não sei, mas em vez de dizer ‘coma isto porque lhe fará bem’ eu direi ‘boa sorte’.”
A moda das dietas não é nova nos Estados Unidos; é o que as pessoas fazem em vez de comer refeições equilibradas e nutritivas. Cada nova dieta tem os seus 15 minutos de fama até ser posta de parte pela dieta extraordinária que vem a seguir. Raramente são eficazes durante muito tempo. Alguns especialistas em nutrição afirmam que a preocupação actual com os produtos sem glúten lhes faz lembrar a obsessão nacional pelos alimentos sem gordura de finais dos anos 1980. Os produtos low fat estão frequentemente carregados de açúcar e calorias para compensar a falta de gordura. O mesmo acontece com muitos produtos que são anunciados como “sem glúten”.
Apesar de não haver dados científicos que demonstrem que milhões de pessoas se tornaram alérgicas ou intolerantes ao glúten (ou a outras proteínas do trigo), existem provas convincentes e repetidas de que os autodiagnósticos alimentares estão quase sempre errados, particularmente quando se estendem a quase toda a sociedade. Continuamos a sentir-nos mais confortáveis em confiar em boatos e na intuição do que nas estatísticas. Desde a década de 1990, por exemplo, que o glutamato de sódio, ou MSG, tem sido vilipendiado. Mesmo agora é comum ver restaurantes chineses a publicitar a sua comida sem MSG. Os sintomas que o glutamato de sódio supostamente provoca — dores de cabeça e palpitações são os mais citados — foram descritos inicialmente como “síndrome do restaurante chinês” numa carta publicada em 1968 pelo The New England Journal of Medicine. A Internet está cheia de sites sobre as fontes “escondidas” de MSG. No entanto, após décadas de estudo, ainda não há provas de que o glutamato de sódio cause aqueles ou outros sintomas. Isto não deverá ser surpresa, uma vez que não existem diferenças químicas entre os iões de glutamato que aparecem naturalmente no nosso organismo e aqueles que encontramos no MSG que comemos. O MSG não é sequer um aditivo: existe no tomate, parmesão, batatas, cogumelos e muitos outros alimentos.
Sem glúten? Fico com azia
O nosso medo terrível de comer gordura tem sido desde há muito um dos exemplos atrozes da falta de relação entre os factos nutricionais e os poderosos mitos que governam os nossos hábitos alimentares. Há décadas que as dietas com pouca gordura têm sido recomendadas para perder peso e prevenir doenças cardiovasculares. As empresas de alimentação alteraram milhares de produtos para os poderem rotular como baixo teor de gorduras, mas substituem essas gorduras por açúcar, sal e hidratos de carbono refinados, tornando-os ainda menos saudáveis. “Está provado que nada disto faz sentido”, diz Myhrvold. “A investigação mostra que a quantidade total de gordura na alimentação não está realmente ligada ao peso ou às doenças. O que interessa é o tipo de gordura e o total de calorias que se consome.” As gorduras más aumentam o risco de morte por doença cardiovascular e as boas diminuem-no.
A margarina é uma gordura má. Ainda assim, durante décadas os médicos aconselharam o seu consumo, em vez da manteiga, porque a manteiga está cheia de gordura saturada, que era considerada ainda mais perigosa do que a gordura da margarina. A suposição não foi testada até ao início da década de 1990, quando investigadores da Harvard School of Public Health começaram a analisar os dados do Nurses’ Health Study, que seguiu o estado de saúde de 90 mil enfermeiras durante mais de uma década. Concluiu que as mulheres que comiam quatro colheres de chá de margarina por dia tinham mais 50% de risco de doenças cardíacas do que aquelas que raramente ou nunca a comiam. Mais uma vez, a intuição seguida por tanta gente estava errada.
Peter H.R. Green, director do centro da doença celíaca da Escola Médica da Columbia University, e um dos médicos mais importantes da especialidade, afirma que a oposição ao glúten seguiu um padrão semelhante e que prejudica tantas pessoas quanto as que beneficia. “Esta é uma doença sobretudo autodiagnosticada”, disse Green quando fui ao seu consultório, no New York-Presbyterian Hospital. “Na ausência da doença celíaca, os médicos geralmente não dizem às pessoas que elas são sensíveis ao glúten. Este tornou-se um dos problemas mais difíceis que enfrento na minha prática diária.”
E continua. “Recentemente, visitei um executivo reformado de uma empresa internacional. Tinha um life coach para o ajudar, e um dos conselhos que lhe deu foi fazer uma alimentação sem glúten. É o que fazem os podologistas, os quiropatas e até os psicanalistas.” Pára, levanta-se, abana a cabeça como se estivesse prestes a dizer uma coisa que não devia, depois volta a sentar-se. “Um amigo meu disse-me que a mulher andava num psicanalista por causa da ansiedade e da depressão. E uma das primeiras coisas que ele fez foi receitar-lhe uma dieta sem glúten. Isto está a ficar descontrolado. Estamos a assistir a cada vez mais casos de ortorexia nervosa” — pessoas que progressivamente retiram diferentes alimentos esperando uma melhoria no seu estado de saúde.
“Primeiro, livram-se do glúten. Depois do milho. Depois da soja. Depois do tomate. Depois o leite. Ao fim de um tempo, já não têm mais nada para comer — e tornam-se proselitistas. O pior é o que os pais estão a fazer aos filhos. É cruel obrigar uma criança a fazer uma dieta sem glúten sem que isso tenha sido prescrito pelo médico. A capacidade de os pais verem melhorias numa criança que não come glúten é ainda menor do que em si próprios.”
A atracção inicial, e o potencial sucesso, de uma alimentação sem glúten não é difícil de compreender, sobretudo para quem tem problemas de estômago. Evitar alimentos que contêm glúten ajuda a reduzir a ingestão de hidratos de carbono, pão, cerveja e outros produtos alimentares muito calóricos. Quando seguidas à risca, essas restrições ajudam as pessoas a perder peso, ainda mais se usarem produtos como quinoa e lentilhas para substituir os amidos que têm andado a ingerir. Mas eliminar o glúten pode ser complicado, inconveniente e oneroso e há informação que nos diz que as pessoas não o conseguem fazer por muito tempo.
A dieta pode até ser pouco saudável. “Muitas vezes as versões sem glúten dos tradicionais alimentos com trigo são na realidade junk-food”, diz Green. E isto é algo que se percebe claramente quando damos uma vista de olhos pela composição de muitos produtos sem glúten. Ingredientes como fécula de batata, farinha de milho, tapioca são muitas vezes usadas para substituir a farinha branca. Mas são na verdade produtos com elevado teor de hidratos de carbono refinado que libertam tanto açúcar no sangue como as comidas que as pessoas andam a tentar evitar. “Os nossos pacientes entraram neste carrossel e deixaram a comunidade médica intrigada com o que se passa por aí”, conclui Green.
“Sabe, as pessoas deixam-nos frequentemente amostras de produtos sem glúten no nosso consultório. E sempre que os provo arrependo-me. Fico com azia. Sinto-me nauseado. Afinal, o que está na base da alimentação? Sal, açúcar, gordura e glúten. Se quem nos alimenta retira um, mais não faz do que o substituir por qualquer outro que mantenha o produto atractivo para quem o compra. Se não sofrer de doença celíaca, então estas não são as dietas para si.”
Um bolo é um bolo é um bolo
As pessoas tendem a esquecer que um bolo sem glúten não deixa de ser o que é, um bolo. Há mais de 30 anos que faço pão caseiro e poucas coisas me dão maior prazer do que transformar uns gramas de trigo em algo que sirva de alimento para os meus amigos. Mas hoje em dia não tem sido fácil acreditar no glúten. Há um par de anos, depois de tomar conhecimento de que os nutrientes e vitaminas presentes no grão de trigo se começam a deteriorar depois de ser processado, comprei um moinho caseiro e comecei a fazer a minha própria farinha. Comecei a encomendar trigo, em sacas de 20 quilos, de lugares como Montana e Dacota do Sul. Comprei livros que explicam as diferenças entre espelta, que é bom para pão integral, e a suave farinha branca, que tem menos proteínas, e é sobretudo usada para bolachas, bolos e pastéis. Um amigo deu-me massa lêveda e eu tratei dela como se fosse um animal de estimação.
Mas deparei-me com uma série de problemas. O primeiro foi técnico: não conseguia fazer o trigo levedar. Tinha decidido logo que só ia fazer pão integral, mas a combinação de grãos que eu usava simplesmente não tinha as proteínas suficientes.
Muitas vezes o pão parecia um matzo castanho, por isso comecei a pesquisar na Internet e rapidamente me deparei com a solução: glúten vital de trigo. (“Se quer manter o seu pão 100% integral, o glúten vital de trigo é o seu novo melhor amigo”, lia-se numa mensagem num fórum sobre pão. “Isto é uma farinha de glúten superconcentrado e realmente ajuda a dar às massas com pouco glúten uma consistência melhor.”) Revelou-se ser verdade. Era como injectar ar num pneu vazio. Umas poucas colheres de sopa misturadas na minha farinha e a massa tornava-se elástica e consistente e parecia um pão normal; o glúten vital de trigo tornou-se a minha varinha mágica. Gradualmente, outro problema surgiu, à medida que cada vez mais amigos diziam: “Obrigado, mas eu deixei de comer glúten.”
Contei a Jonathan Bethony, o pasteleiro do Bread Lab, a minha questão com o glúten. Depois, ele contou-me a dele: “Tornei-me pasteleiro porque achava que era toda uma forma de expressão”, afirmou enquanto amassava um pão para colocar no forno no dia seguinte. “Não parava de ouvir coisas sobre essa história do glúten, de como era tão perigoso, e isso estava mesmo a magoar-me. Comecei a perguntar-me: será que estou a tornar as pessoas doentes? Tornei-me um mensageiro da morte?” Começou a pensar em mudar de profissão.
“Lembrei-me de um dia, quando estava a trabalhar numa loja de alimentos saudáveis da moda, na Bay Area”, continuou. “A minha mulher chegou a casa e afirmou: ‘Querido, tenho de te dizer uma coisa. O médico disse-me que sou intolerante ao glúten. Não posso voltar a comer pão’.” Bethony levanta os olhos da massa. “Aguentei enquanto pude, mas rebentei. Tinha trazido um pão para casa, subi as escadas a correr e lancei-o da varanda como se fosse uma bola de futebol.” Bethony questionava-se se deveria desistir. Mas um padeiro famoso que vivia perto encorajou-o a continuar. Ensinou-o a fazer a massa apenas com farinha integral e muita água, e a esperar muito tempo para deixar o pão fermentar. Os resultados têm sido sublimes.
No final dessa semana, apanhei um avião de volta a Nova Iorque, fui para casa e deitei o meu glúten vital de trigo no lixo. Voltei a fazer o pão integral da forma como é suposto ser feito: água, fermento, farinha e sal. Vou tentar viver sem a minha varinha mágica. Mas certamente que não vou viver sem glúten. Parece-me simplesmente uma tolice.
Exclusivo PÚBLICO/The New Yorker