Uma onda vinda “não se sabe de onde” atirou os seis amigos para a morte

Grupo de pescadores lúdicos costumava sair para o mar todos os domingos. Por ser Natal, resolveram ir também no sábado. Um golpe de mar virou o barco a 500 metros da costa e só um conseguiu voltar

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Embarcação foi recuperada já na zona da praia do Dragão Vermelho Enric Vives-Rubio

“Ele queria comprar uma prenda à filha agora para o Natal, e foi para arranjar algum dinheiro”, conta João Espírito Santo, de olhos humedecidos e mãos nos bolsos, consternado. Conhecia-o bem, tal como à mulher, desempregada, e às três filhas, que terão perto de dez, seis e quatro anos. Toni, que tinha cerca de 40, também esteve desempregado. Mas há poucos meses começara a trabalhar na oficina de automóveis que Mitchell tinha no Barreiro. O peixe que pescava ao fim-de-semana era para comer e para vender aos amigos, para ajudar nas despesas. Toni era o ganha-pão da casa.

Neste domingo, no café Mirage, em Vila Chã, perto da casa onde Toni morava, não se falou de outra coisa. O naufrágio do Cochicho, o barco de recreio que levou sete amigos com idades entre os 37 e os 50 anos à pesca no sábado, de Lisboa até ao Cabo Espichel, deixou os moradores naquele pequeno bairro residencial em choque. Dizem que tanto Toni como Mitchell eram “muito experientes” no mar.

"Há anos que andavam juntos a pescar, depois juntaram-se outros e formaram um grupo. Às vezes iam até Setúbal, ou até ao Cabo da Roca”, diz Miguel Torrado, ao balcão do café. Também ele participava na pescaria uma vez por mês. Foi na semana passada, aquela do “susto”. “Ontem [no sábado] não era para ir” — “Não era o meu dia.”

O barco, registado em Peniche e atracado no porto de Santo Amaro, em Alcântara (Lisboa), pertence ao irmão de Mitchell, Danny Almeida. Os dois são filhos de ex-emigrantes no Canadá. Danny vive em França e era o irmão quem usava a embarcação — um barco em fibra de vidro, com cerca de sete metros de comprimento e uma cabine.

O grupo não costumava sair ao sábado. “Como é Natal, decidiram ir sábado e domingo”, conta Danny Almeida. Os sete saíram de Alcântara por volta das 4h e foram até ao Cabo Espichel, a ocidente de Sesimbra. “Era normal chegarem de noite ao porto, ficavam até às cinco ou seis da tarde e depois voltavam”, diz o dono do barco. Foi no regresso, quase a chegar ao Tejo, que o mar lhes trocou as voltas.
 
Uma hora a nadar

Danny recorda o relato que o irmão, condutor do barco e único sobrevivente, fez após ter passado a noite no hospital, com hipotermia. Estavam a navegar normalmente, junto à costa. Nas geleiras levavam robalos. Mitchell terá dito que “o mar não estava especialmente perigoso”, embora o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) tenha accionado o aviso amarelo para o distrito de Setúbal devido à forte ondulação.

“De repente apareceu uma onda vinda não sei de onde e não houve tempo para nada”, afirma Danny, citando o irmão. O barco virou-se a cerca de 500 metros da praia do CDS, na Costa da Caparica, mesmo em frente ao restaurante O Barbas. Foi essa a distância que Mitchell e Toni nadaram, enrodilhados nas ondas — o IPMA previa ondas de 3,5 a 4,5 metros —, agarrados a uma bóia, um de cada lado.

Terão demorado perto de uma hora a chegar a terra, onde Mitchell conseguiu pedir ajuda a um nadador-salvador que, por acaso, passeava no paredão àquela hora — cerca das 19h30. Para Toni já era tarde — chegou à praia já sem vida.

Os restantes cinco homens ficaram agarrados ao barco e foram arrastados para sul. A embarcação bateu no molhe da praia Nova, em frente ao bar Dragão Vermelho, e perdeu a cabine, tendo acabado por ser arrastada para a areia. Os cinco corpos também deram à costa, semi-despidos. Três ainda foram sujeitos a tentativas de reanimação, mas sem sucesso.

Nenhum deles tinha o colete salva-vidas vestido, apesar de existirem na embarcação.

No café Mirage pouco se sabe sobre estas cinco vítimas. Um era “o Chico”, que tinha uma loja de artigos de pesca, outro era “o João”, e dos outros não se sabe o nome.

Um deles tinha sido o único sobrevivente num naufrágio que ocorreu há alguns anos em Setúbal, conta Miguel Torrado. Os corpos dos seis pescadores foram transportados para a morgue do Hospital Garcia de Orta, em Almada, onde as famílias enlutadas foram recebidas por psicólogos do INEM.
 
No mar, nem um barco
Neste domingo, ao longo do dia, foram muitos os curiosos que aproveitaram o sol para passear à beira-mar na Costa da Caparica, onde as ondas altas, com alguns metros, varriam a areia quase deserta. Por volta das 16h, o Cochicho continuava no paredão à espera de ser rebocado, após a peritagem feita pela polícia. No mar, nem um barco.
 
A noite de sábado foi de sobressalto para quem trabalha nos restaurantes e bares à beira-mar e para os pescadores da Costa. Muitos acorreram à praia, em alvoroço, com medo que fosse um dos seus. Constança Lopes, que mora perto da praia, ouviu o helicóptero da Força Aérea que participou nas operações de socorro e correu. “Pensei que tinham encontrado os corpos dos estudantes que desapareceram no Meco”, afirma. O cenário que encontrou no areal foi bem pior do que imaginava. “Tenho aqui casa há 30 anos e não me lembro de nada como isto”, lamenta.

Também o presidente da Câmara do Barreiro, Carlos Humberto, lamentou  em comunicado a morte dos seis homens.

Este ano, a imprensa noticiou a morte de pelo menos nove pessoas em seis naufrágios, a que se somam agora mais seis vítimas mortais. Um relatório de 2012 mostra que as Estações Salva-Vidas da Autoridade Marítima resgataram 40 embarcações; 72 vidas foram salvas.
 
 
 
 

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