Um Papa anticlerical?
O Papa perdeu a devoção aos monsenhores. Pobres daqueles que já se julgavam na calha.
1. A religião é uma das grandes dimensões mentais e culturais dos seres humanos. Hoje, no Ocidente, é uma realidade controversa, mas não apagada. O acolhimento ao Papa Francisco não resulta apenas, nem sobretudo, de qualquer estratégia publicitária. Nele, as pessoas vêem uma das expressões mais genuínas da atitude de Jesus Cristo, no meio do seu povo.
O divórcio entre as Igrejas e o mundo moderno não foi provocado, apenas, pela má vontade dos incréus e dos anticlericais. O anticlericalismo foi, muitas vezes, o reverso do clericalismo. Nasci numa zona do país em que não se podia viver sem padre, desde o baptismo ao funeral. Passava-se o tempo a dizer mal deles por causa do seu autoritarismo e da arbitrariedade ameaçadora dos seus comportamentos pouco pastorais. Não eram especialmente maus, mas apenas o resultado da formatação recebida.
Hoje já não se repetem estas palavras de Pio X (1), mas elas modelaram gerações: “só na hierarquia reside o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros para os fins da sociedade. Em relação ao povo, este não tem outro direito a não ser o de se deixar conduzir e seguir docilmente os seus pastores”.
A Civiltà Cattolica (2), na época da definição da infabilidade do papa, escrevia: “a infabilidade do papa é a infabilidade do próprio Jesus Cristo […]. Quando o papa pensa, é o próprio Deus que pensa nele”.
2. O Vaticano II ainda estava longe. O século XX, sobretudo em alguns países, foi um tempo de grandes movimentos de renovação do catolicismo: missionário, ecuménico, bíblico, teológico, social, litúrgico, laical, etc. Foi, também, uma época de condenações, sobretudo das experiências mais arrojadas, como por exemplo, a suspensão dos padres operários e dos teólogos que trabalhavam em diversas frentes culturais do mundo moderno.
O Concílio alterou, profundamente, as concepções eclesiológicas que justificavam o autoritarismo da hierarquia. Dizia-se mesmo que a eclesiologia se tinha transformado numa hierarquiologia. Agora, o papa, o bispo, o padre deixavam de ser considerados uma hierarquia de poderes sobre a Igreja, mas de serviço às comunidades. Estimular a sua criatividade, na diversidade dos seus carismas e funções, era a principal tarefa dos ministérios ordenados que, por sua vez, deviam suscitar iniciativas, segundo as necessidades de tempo e de lugar. Eram bons princípios, boas práticas, mas sem meios, nem vontade, de organizar a vida da Igreja, segundo essas orientações. Veio, depois, um longo inverno na Igreja e foram ressuscitados modos de agir autoritários que paralisaram reformas urgentes.
3. Veio o Papa Francisco. Como já disse noutras ocasiões, não apareceu com o Direito Canónico na mão, para dizer o que era para continuar na mesma e o que era para reformar, como se fosse um burocrata. Veio participar numa reforma que envolvesse a Igreja toda, embora destacando responsabilidades e neutralizando forças de obstrução. Não no estilo de mandar fazer. Começou por ser ele a agir conforme aquilo que depois tem vindo a propor, em diversas circunstâncias. A perspectiva geral foi dada na Exortação Apostólica e em várias entrevistas. Não se pode esquecer a forma como respondeu às perguntas dos Superiores Maiores das Congregações Religiosas. Destacou a importância da qualidade e do estilo da formação dos jovens religiosos. Em todas as ocasiões denuncia o clericalismo, com expressões tais que levam alguns a julgar que pertence a uma organização anticlerical! O Papa perdeu a devoção aos monsenhores. Pobres daqueles que já se julgavam na calha.
Nesse Encontro, a convicção mais abrangente é esta: as grandes mudanças da história acontecem quando a realidade é vista, não a partir do centro, mas da periferia. Trata-se, para o Papa, de uma questão hermenêutica: a realidade não se compreende a partir de um centro equidistante de tudo. Para a entender bem, é preciso mover-se da posição central da tranquilidade, da zona de conforto, para as zonas agitadas das periferias. Este é o melhor caminho para escapar ao centralismo e às focagens ideológicas. Os temas do citado diálogo com os superiores das congregações religiosas foram os da coragem, da profecia, do clericalismo e dos conflitos. Nada poderá substituir a leitura da gravação feita pela Civiltà Cattolica (3).
Dirigindo-se à Comissão Teológica Internacional (06.12.2013), em vez de lhes recomendar cautela e ortodoxia, incitou os teólogos a serem pioneiros do diálogo da Igreja com as culturas; a situarem-se como profetas nas fronteiras e não ficando para trás, na caserna. O magistério e os teólogos devem estar atentos às expressões autênticas do sensus fidelium.
A sensibilidade cristã dos fiéis não é só dos homens. As mulheres são sempre as esquecidas. O jornal L’ Osservatore Romano acaba de lançar um suplemento sobre Mulheres, Igreja e Mundo, de circulação mensal, de quatro páginas a cores. Mais vale tarde do que nunca.