Prostituição no cálculo do PIB “não pode ser para disfarçar o défice”

A inclusão do dinheiro do tráfico de droga e da prostituição nos cálculos do Produto Interno Bruto não suscita oposição. Mas falta permitir que as prostitutas se colectem nas Finanças e, também, começar a discutir a criação de circuitos legais para drogas leves.

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A prostituição ou o tráfico de droga são algumas das actividades que o INE vai passar a incluir no cálculo do PIB Paulo Pimenta

A alteração foi anunciada esta semana pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) e vai fazer com que estas actividades aumentem o seu peso no Produto Interno Bruto (PIB).

“Há anos que defendo que estas actividades da economia subterrânea deviam ter uma atenção maior da parte dos Estados, porque as pessoas que estão, por exemplo, na economia da prostituição, produzem trabalho. Mas há muito de cínico nisto se o objectivo for, como parece, pôr o PIB a crescer para fazer diminuir o défice, sem que tal se traduza no reconhecimento dos direitos destas pessoas”, reagiu ao PÚBLICO o psicólogo Luís Fernandes, especialista em comportamentos desviantes e autor de várias investigações sobre estupefacientes. O aumento do peso destas actividades no PIB é residual, o que significa que terá um impacto muito reduzido na redução do défice.

“A integração destes valores no PIB é, por si só, uma vantagem porque torna ‘real’ o que muitos recusam ver”, concorda Luís Mendão, do GAT — Grupo de Activistas sobre Tratamento de VIH/Sida. O activista ressalva também, porém, que a avaliação positiva da medida cai por terra se o objectivo for apenas aumentar a receita do Governo, ignorando a necessidade de estes fenómenos serem analisados e “promovidos os direitos e a qualidade de vida quer das pessoas que usam drogas quer das pessoas que se prostituem voluntariamente”.

É já a partir de Setembro que, acatando as orientações emanadas pelo organismo estatístico europeu Eurostat para todos os Estados-membros, o INE reflectirá, com os novos métodos de cálculo, nas suas projecções o valor estimado para a prostituição, tráfico e contrabando. No anúncio desta semana, o INE calculou já que tais actividades farão aumentar o PIB em cerca de 0,4%, o equivalente a 700 milhões de euros (ver texto nestas páginas).

“Se olharmos para o fenómeno de um ponto de vista meramente económico, podemos assumir que haverá uma tendência para os governos quererem encontrar uma forma de colectarem as receitas potenciais que daí advêm”, diz temer Luís Mendão, na resposta por escrito ao PÚBLICO.

Sem querer entrar na discussão sobre o enquadramento legal de tais actividades, por entender que são “decisões e posições independentes”, o especialista em economia da Saúde Pedro Pita Barros aplaude a iniciativa. “A grande vantagem desta mudança permitirá ter uma visão mais correcta do andamento da actividade económica”, adianta, para precisar: “Uma vez que as actividades informais (ou mesmo ilegais) podem crescer em momentos de crise da economia formal, a principal consequência será provavelmente a de encontrar menores flutuações do PIB. Se em momentos de crise da economia formal, há um crescimento da economia informal, a queda do PIB medida por este indicador mais abrangente será menor, tal como se em momentos de crescimento houver passagem de actividade informal para formal, o crescimento será menor do que o indicador antigo”.

Outros casos na Europa
Quanto aos princípios, todos de acordo. Pelo menos em Portugal. Lá fora, desde que os institutos nacionais de estatística foram anunciando um a um (na Suécia, primeiro, mas também em Itália, Espanha e Reino Unido e Bélgica) a intenção de integrar estas actividades nas contas nacionais, a polémica recrudesceu do lado francês.

Coca e prostitutas vão dopar o PIB do Reino Unido, titulava em Maio a revista francesa L’Express. É que, na definição do Eurostat, “as acções económicas ilegais” devem ser consideradas como operações quando todas as partes “nelas participam voluntariamente”. Ora o instituto nacional de estatística francês, o Insee, recusa-se a contabilizar o tráfico de droga e a prostituição — salvo quando esta é declarada pelos trabalhadores do sexo para efeitos de impostos —, por considerar que não se pode falar de “participação voluntária” no negócio da prostituição e da droga.

Já em Itália, o Istat, instituto de estatística, fez saber que ter em conta uma estimativa sobre o peso destas actividades, bem como do negócio ilegal de armas e do contrabando de tabaco e álcool (negócios que existem, produzem dinheiro mas que são ilegais) fará o valor do PIB crescer 1,3%, só no primeiro ano.

A agência de notícias Bloomberg nota que assim será mais fácil à Itália cumprir a meta europeia de gastar no máximo 3% do PIB (com um PIB oficialmente mais alto). Perante este argumento do cumprimento das metas do défice, Ronan Mahieu, chefe do departamento das contas nacionais do Insee, em França, questionou, em declarações citadas pela da revista L’Expansion: “Podemos falar de acordo mútuo se prostitutas são menores ou exploradas por um proxeneta?” Mahieu entende que o critério do Eurostat da “participação voluntária” se aplica a várias coisas ilegais, mas não ao negócio da droga e da prostituição. Por isso, a França fará contas, porque o Eurostat a isso obriga, mas não divulgará números relacionados com estes dois aspectos.

Na realidade, a generalidade dos Estados já fazia uma estimativa de quanto pesaria aquilo que geralmente é conhecido como “economia paralela” e que inclui actividades legais não-declaradas e ilegais. Mas agora quer-se “explicitar” os diferentes negócios. No Reino Unido, no fim de Maio, o instituto nacional de estatística emitiu 20 páginas de brochura a dar conta de diferentes métodos para contabilizar a prostituição e a droga no seu PIB. Por exemplo, calcula-se que existam no país 58 mil prostitutas que têm, em média, 20 a 30 clientes por semana. É possível ter informação dos preços praticados. Logo, é possível calcular os montantes envolvidos no negócio.

Em Portugal, o tema só agora começou a ser debatido. Embora a discussão sobre o enquadramento legal das prostitutas seja antigo. O deputado do PS Jorge Lacão era secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros quando, em 2005, se reivindicava em vários fóruns a legalização da prostituição. “O que se fez na altura foi introduzir no Código Penal a criminalização do utente da prostituição sempre que este tenha usado meios que condicionassem a vontade da prostituta”, recorda. Hoje, o deputado diz não ver nenhum entrave a que a actividade seja enquadrada por via de recibos verdes, “desde que seja totalmente livre e não condicionada hierarquicamente por ninguém”.

Alexandra Oliveira, professora na Universidade do Porto com uma tese de doutoramento sobre o mundo da prostituição, concorda que a inclusão da actividade nos cálculos do PIB deve servir para “voltar a falar da necessidade de tornar reconhecido e legal um trabalho que existe de facto e que é clandestino”. “Há pessoas, adultas e com livre consentimento, que trocam serviços sexuais por dinheiro. Não se tratando de crianças nem de pessoas coagidas a tal, não há razão para que a actividade não seja reconhecida legalmente”, defende, sublinhando que preferia que “tal acontecesse por razões humanas mais do que por questões económicas”. Para a investigadora, o reconhecimento do trabalho sexual como ocupação formal tem, porém, um perigo à espreita: “Às vezes, as leis são feitas apenas com o objectivo de gerar receitas ao Estado, ou com preocupações de controlo social e de saúde pública, e esquecem-se os direitos das pessoas”.

Actualmente, a prostituição não é legal nem ilegal. “Simplesmente está fora dos códigos do Direito”, situa Luís Fernandes. Recorrer a uma prostituta também não é crime. “O único criminoso é aquele que instiga a prostituição para dela obter proveitos”, precisa o investigador, para quem o que tem que ser feito agora, em coerência, é permitir a quem a exerce que se colecte nas Finanças.

 “Chamem-lhe trabalhadoras sexuais ou outra coisa qualquer, o importante é reconhecer que elas fazem um trabalho e permitir que, como tal, descontem e tenham acesso aos direitos de quem trabalha”. 

É verdade que se trata de uma actividade pouco propícia à passagem de recibos. “Mas muitos dos que vão ao médico também não pedem recibo para ficar mais barato. Logo, seria possível a prostituta dizer quantos clientes atende e, a partir daí, fazer-se um cálculo”, acrescenta Fernandes. Para o investigador, “não seria preciso inventar mais nada em termos de leis” para permitir a mudança.

“A única revolução necessária seria a das mentalidades. Seria preciso inventar mentalidades um bocadinho menos hipócritas”, insiste, para recordar o que aconteceu quando, no início dos anos 1990, se começou a falar da descriminalização do consumo de drogas. “Isso foi muito mal visto e as pessoas que o defenderam muito criticadas. Hoje já ninguém estranha.”

Criação de circuitos legais
Apesar das diferenças óbvias, no caso do comércio de drogas, o director do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), João Goulão, também considera que há “passos seguintes” à inclusão da actividade no cálculo do PIB que podem ser dados.

“Há uma reflexão a fazer em torno da regulação do mercado de drogas e que pode partir das experiências que estão a ser feitas nos estados norte-americanos do Colorado e Washington e em paí-
ses como o Uruguai”, aponta.

Neste caso, foram criados circuitos legais para o comércio da cannabis, desde a produção à distribuição, e que incluem a criação de dispensários onde as pessoas podem adquirir a substância.

“Foi uma forma de responder ao grande problema que o Uruguai tem com as actividades relacionadas com a produção e tráfico de cannabis e penso que merece a pena estarmos atentos a este ‘laboratório vivo’ para percebermos que tipo de impacto teve e em que medida essa regulação esvaziou o mercado ilícito e se traduziu num aumento de receitas fiscais para o Estado”, preconiza Goulão para especificar que a cannabis tende a ter circuitos de tráfico locais, ao contrário da heroína, que provém em 90% do Afeganistão.

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