“Tenho de minimizar o estrago que o pai fez”

Exposição a comportamento desviante está identificada como segunda maior fonte de perigo para as crianças portuguesas. Para expulsar o tráfico de droga dos bairros sociais, a Câmara do Porto começou a enviar acções de despejo a arrendatários condenados

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Para expulsar o tráfico dos bairros sociais, a Câmara do Porto quer despejar inquilinos condenados nFactos/Fernando Veludo

Os dois agentes da 2ª Esquadra de Investigação Criminal da PSP bateram à porta por volta das 22h de 17 de Abril de 2012. Mariana, que vai nos 10 anos, já dormia no sofá. Rodrigo, agora com quatro, nem percebeu o que se passava. Rita, de sete, estava desperta e empertigou-se quando os viu pôr a roupa dela fora dos armários.

Falaram com Nuno à parte. Explicaram-lhe na cozinha ao que vinham. A família aguardou na sala. “Revistaram tudo, mas não partiram nada”, diz Patrícia. Encontraram pedaços de haxixe dentro da bolsa dele – 27,64 gramas. E levaram-no, tendo o cuidado de não o algemarem à frente da filha acordada.

O Tribunal de São João Novo condenou-o a cinco anos e meio de prisão. Ele cumpriu dois anos, dois meses e 22 dias. “Saí a meio da pena, devido ao meu bom comportamento, a ser a primeira vez, a não ter processos pendentes, a ter apoio familiar”, diz ele. Tinha acabado de retomar o seu antigo lugar de motorista de longo curso quando chegou a notificação de despejo da Câmara do Porto.

Alega a autarquia que Nuno foi condenado por tráfico e que Patrícia permitiu que a habitação social que lhes tinha sido atribuída fosse usada para o negócio. “A arrendatária e agregado adoptaram uma conduta que provoca incómodo sério aos vizinhos e é perturbadora da tranquilidade, ofensiva para terceiros, criadora de insegurança e compromete seriamente a paz social”, dita o documento.

Patrícia ficou escandalizada: “A câmara diz que nós, o agregado, ou seja, eu e os meus filhos, usamos a casa para isso. Como pode dizer isto? Eu nem sequer fui arguida! O auto de busca era só para ele. O haxixe estava na bolsa dele. Não havia nada em casa, nem eu ia permitir que houvesse. Ele foi preso, mas é assim: eu casei-me com ele, sou católica, não o ia abandonar quando ele mais precisava de mim.”

Reactivando uma prática dos tempos de Rui Rio, a câmara enviou semelhante carta a 41 famílias de bairros de Lordelo do Ouro. “Podiam ter sido mais”, assegura o vereador da Habitação e Acção Social, Manuel Pizarro. O deal propagou-se por ali, sobretudo desde o início da demolição do Bairro do Aleixo, antes a maior boca de tráfico de heroína, cocaína e base de coca da cidade.

Só no processo pelo qual Nuno se sentou no banco dos réus responderam 30 pessoas. Noutro desencadeado no ano seguinte, mais de 40 daquele bairro e de outros. “A Câmara do Porto não pode admitir que se utilize habitação social para praticar actos criminosos”, observa o vereador.

Diz Nuno que entregava o salário à mulher e traficava haxixe para pagar consumos. “Eu nunca vendi aqui”, assevera. “Era na rua, à beira do café [do bairro da Pasteleira]. A gente veio para cá morar em Dezembro de 2011. Eu fui preso em Abril de 2012. Os vizinhos, se têm queixas, é do barulho das crianças.”

 Patrícia demorou seis meses a levá-las ao Estabelecimento Prisional do Porto. “Tive de as levar. A Mariana virou-se contra mim. Ela não me tratava bem. Ela não falava comigo. Na mente dela eu tinha posto o pai ao lixo. Eu metia-a na psicóloga do ATL. A psicóloga disse: ´Leva-a a ver o pai.´ Eu levei-a, cheia de medo. Ela viu que ele estava bem, mudou o comportamento.”

Pior foi a outra filha, a Rita. “Foi-se fechando, foi-se fechando”, torna Patrícia, ao lado do marido, a papelada da câmara e do tribunal espalhada sobre a mesa da sala. “Agora, na escola, não dá nada. Tive de pedir ajuda às psicólogas do ATL. Uma vez, chegou à minha beira a chorar. Perguntei-lhe o que tinha e ela disse: ´Não sei ler.´ Eu disse ao Nuno: ´Estás aqui, erraste, a gente perdoou-te, mas tens de pensar nos miúdos. E chega uma notificação destas….”

Nuno compreende o objectivo: “A câmara quer resolver um problema: acabar com a droga nos bairros. Sim senhora.” Discorda do método. “Quem foi condenado em tribunal fui eu e a câmara está a condenar a minha mulher e os meus filhos. O que eles estão a fazer não me cabe na cabeça.” Não se renderam. Tinham dez dias para contestar. Contestaram, como estão a fazer outras famílias.

O vereador eleito pelo PS não se pronuncia sobre casos concretos. Diz que, para já, os despejos “são processos de intenção”, que “as pessoas se podem defender”, que terão “especial cuidado nos casos que envolvem idosos e crianças”. Entende que lhe compete pensar no bem-estar das crianças destas famílias, mas também no das crianças de todas as outras famílias expostas às rotinas do tráfico e do consumo. “Tenho recebido famílias a chorar: ‘Tire-me dali, porque aquilo não é sítio para educar os meus filhos!’” A exposição a comportamento desviante é a segunda maior situação de perigo sinalizada às comissões de protecção de crianças e jovens do país, só ultrapassada pela negligência.

O advogado da junta de freguesia falou numa hipótese de Patrícia segurar a casa: Nuno sair. “Isso para mim não é aceitável”, indigna-se ela. “Se me quisesse divorciar dele, divorciava-me quando ele foi preso. Querem separar um pai de três crianças que já sofreram pelo erro que ele cometeu? Dei-lhe uma segunda oportunidade. Não pode a câmara dar-lhe uma segunda oportunidade?”

Nuno tem andado cismado: “Fala-se tanto em reinserção social. Que reinserção é esta? A juíza deu-me uma oportunidade, as doutoras da direcção-geral de reinserção social deram-me uma oportunidade, a minha família deu-me uma oportunidade, o meu patrão deu-me uma oportunidade, e a câmara quer-me cortar braços, pernas, tudo?” Acha que lhe bastou o tempo de prisão. “A gente pode ligar para a família uma vez por dia cinco minutos. Se a chamada cair já não consegue ligar mais. Eles querem que os reclusos sintam a cadeia. Agora saí e estou a recomeçar e vem mais este tombo…”

Uma vez, Mariana chegou a casa numa aflição: “Estão a dizer que o pai foi preso!” A mãe tentou sossegá-la: “Não, o pai está a trabalhar”. E estava. Trabalhou no pavilhão, no bar, na sapataria. Quando começou a ter licença para ir uns dias a casa, Patrícia anunciou que vinha de férias. Para tudo arranjava explicação. “Uma vez a educadora até disse: ‘Dou-te os meus parabéns. Com a tua luta, consegues fazer com que os teus filhos sejam felizes.’ Tenho de minimizar o estrago que o pai fez!”

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