Saúde: esmiuçando uma deliberação

A reforma dos cuidados de saúde primários (CSP), em especial a criação de Unidades de Saúde Familiar (USF), teve como propósito permitir uma vigilância de saúde baseada em listas de utentes e em actividade programada, tendo os médicos/enfermeiros um horário que se ajusta ao acompanhamento que a sua lista exige. Pretende-se, portanto, que médico e utente colaborem para evitar atendimentos não-programados, beneficiando ambos de uma melhor organização e planeamento dos cuidados, bem como de consultas com mais tempo. A aposta numa intervenção mais preventiva e menos curativa é melhor para o utente e menos onerosa para o Estado.

A deliberação determina um atendimento de todas as situações não-programadas no próprio dia, com registo dos pedidos, triagens clínicas e fim do limite de vagas, no sentido de eliminar as filas de utentes de madrugada à porta dos centros de saúde. Se, para um leigo, isto pareceria uma boa solução, até para diminuir as idas aos serviços de urgência, ela é desajustada da realidade dos CSP. Por um lado, porque este é um problema que não foi resolvido pelos antigos centros de saúde (que tinham uma prática mais orientada para atendimentos esporádicos e a qualquer utente) e, por outro, porque há muitos motivos para um utente querer ser atendido logo de manhã que não foram levados em conta (nem todos vêm para consulta, alguns querem ser atendidos logo por uma questão de horário de trabalho ou preferência pessoal, outros vêm para ter certeza que conseguirão contactar o seu médico e ainda não utilizam contacto telefónico nem reconhecem a rapidez de marcação de consulta programada).

Há que ter em conta que aumentar horários de consulta aberta implica diminuir os de consulta programada, o que a longo prazo gera aumento da necessidade de consultas esporádicas (e, portanto, aumento destas filas) tal como o regresso a um modelo de atendimento imediato que, pela perda do estabelecimento da relação entre o médico e o utente e pela diminuição do tempo de consulta, levaria a um aumento na prescrição de meios complementares de diagnóstico e medicamentos, com prejuízo grave para a saúde do utente. Há ainda a questão da aplicabilidade: se numa unidade com nove médicos parece fácil ter sempre um disponível para consulta aberta, numa com quatro ou cinco essa necessidade teria um impacto enorme na actividade programada de cada médico e num centro de saúde no interior, dada a falta de pessoal, poderia implicar o fim de qualquer actividade programada.

A ERS refere ainda a necessidade de informar os utentes quanto a direitos, deveres e adequação de comportamento às distintas situações de saúde. É infeliz que não se compreenda que este é um processo lento e progressivo – já em curso – e que não faz sentido, só para compor uns números ou fingir poupanças em idas ao serviço de urgência, estragar o que de muito bom tem sido feito a nível dos CSP em Portugal.

Importa recordar que esta declaração não aparece isolada. Na senda da poupança orçamental, foram encerrados ou diminuídos os Serviços de Atendimento de Situações Urgentes (SASU). Se se pretende privilegiar a actividade programada, se encerra os SASU onde se fazia atendimento aberto e se dificulta o alargamento de horário nas USF, então em que ficamos? Lembro também a recente intenção do Ministério da Saúde de obrigar os médicos de família a fazer consultas de medicina do trabalho, impondo uma nova tarefa e desrespeitando os médicos com formação especializada nessa área.

Este Governo tem sido perito em propor medidas para depois recuar e aprovar outras no meio da confusão. Enquanto combatemos estas, não podemos esquecer que os médicos estão em quebra de negociação com o ministério, com greve marcada pela FNAM para Julho e com a ordem a defender de forma intransigente a profissão e a qualidade do SNS.

Num momento em que os médicos de família são obrigados a seguir listas de 1900 utentes, cada vez mais utilizadores, dada a crise – a somar ao trabalho administrativo e organizativo que a USF impõe –, a lidar com problemas informáticos e ainda a colmatar falhas que o Governo criou ou não soube ou quis resolver, como as consultas urgentes e a medicina do trabalho, é importante que não só os médicos mas todos os portugueses tenham consciência do que se passa e o combatam. Não podemos ser “tigres de papel” nem tão-pouco obedecer a “leis da rolha”.

Médico interno de Medicina Geral e Familiar

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