São Tomé: quando a merenda escolar ajuda a agricultura de um país

Conseguir que os pequenos agricultores regressem à terra, reduzir o desemprego, reintroduzir vegetais na alimentação das crianças, oferecer refeições quentes nas escolas – o projecto que está a ser lançado em São Tomé, com o apoio do Instituto Marquês de Vale Flor, pode ajudar a resolver vários problemas ao mesmo tempo.

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A solução, que já começou a ser lançada, tem o nome de Projecto Descentralizado de Segurança Alimentar (PDSA) e prevê que as merendas escolares passem a integrar obrigatoriamente hortícolas, e que estes sejam comprados pelo Estado aos pequenos agricultores, que assim passam a ter garantia de escoamento dos seus produtos – algo que até aqui não acontecia. E quem está à frente deste programa, lançado pelo Instituto Marquês de Vale Flor, é precisamente Celso Garrido.

O retrato que a FAO (Food and Agriculture Organization, das Nações Unidas) traça da situação em São Tomé é preocupante, indicando que a situação de pobreza tem vindo a piorar: um quarto da população é pobre e um terço está em risco de pobreza. Um inquérito do Programa Alimentar Mundial (PAM) realizado em 2007 indica que 36 mil pessoas encontram-se em situação de insegurança alimentar, e, dessas, 16 mil têm um consumo alimentar pobre.
Outro problema identificado pela FAO é a enorme dependência que o país tem do exterior “quer em termos orçamentais, quer em termos de ajuda alimentar”. Essa é uma situação que Celso também conhece bem e que o projecto que lidera quer ajudar a combater.

“Antes, há mais de dez anos, tudo o que as crianças comiam nas escolas era dado pelo Programa Alimentar Mundial (PAM) e era tudo importado”, conta. “Agora que o PAM vai começar a deixar alguns distritos [três, para já, e todos até 2016, ano em que o Estado são-tomense assumirá o Programa de Alimentação Escolar, responsável pelo fornecimento de alimentos a todas as escolas do país], estamos a começar a incorporar na dieta alimentar das crianças alguns produtos produzidos localmente. Por exemplo, a mandioca, que temos em grande quantidade, pode substituir a farinha de milho, que o país não produz.”

Tudo começou em 2008, numa altura em que os problemas de insegurança alimentar se fizeram sentir de forma mais preocupante. Surge então uma iniciativa, que parte do Instituto Marquês de Vale Flor e de um conjunto de ONG, para uma candidatura a um programa da União Europeia que pretendia precisamente ajudar os países a terem alimentos disponíveis para as respectivas populações. A proposta foi aprovada e o programa começou em 2009.

“Houve uma primeira fase em que o objectivo era produzir alimentos e disponibilizá-los para a população”, explica Celso. “Conseguimos importar sementes de qualidade para hortícolas, dos quais tínhamos deficiências no mercado local, produtos como cebola, tomate, feijão-verde, repolho, pimentão. E importámos alguns factores de produção, nomeadamente adubos.”

Um dos problemas identificados tinha a ver com a forma como as sementes eram importadas pelos agricultores. “As sementes não são produzidas localmente, e a importação nem sempre obedece ao ciclo produtivo. As pessoas fazem-na de uma forma não muito coerente, por isso há momentos em que existe muita semente e outros em que não existe nenhuma.” O PDSA tentou resolver esta dificuldade, importando as sementes de acordo com o calendário agrícola “para estarem disponíveis na altura certa e a um preço acessível”. Esse era, aliás, outro problema. “Quando são importadas por empresas privadas, têm um custo elevadíssimo. Um quilo de sementes importadas chega a custar mil e tal euros, e um pequeno agricultor não tem essa capacidade.” Com o apoio do programa, houve uma alteração: “Nós compramos as sementes, distribuímos às cooperativas, que depois distribuem aos seus associados por um valor muito insignificante.”

Com sementes mais baratas, e a garantia de que os produtos são comprados para serem integrados nas ementas escolares, muitos pequenos agricultores que tinham abandonado as suas parcelas de terreno, por não conseguirem tirar qualquer lucro da venda de meia dúzia de produtos num mercado local, começaram a pensar voltar a trabalhar a terra.

E assim, a pouco e pouco, os hortícolas começam a aparecer nas merendas das escolas (por enquanto apenas nas primárias e pré-primárias) – o que, lembra Celso, representa já um universo de 45 mil alunos. E, acrescenta o coordenador do programa, este é um número com tendência para aumentar, porque “já se constatou que quando não há um prato quente nas escolas, a afluência dos alunos cai”. Além disso, “se o agricultor conseguir esse mercado, vai produzir com cuidado, porque sabe que os seus filhos também vão comer daquela comida”.

Tomate a preço fixo
O programa, que garante também a construção de centros para o armazenamento de alimentos, tem ainda a vantagem de garantir um preço fixo para os produtos (a definição desse preço para cada produto é algo que está actualmente em negociação). Isso pretende resolver o problema da enorme instabilidade de preços em São Tomé. “Há meses em que um quilo de tomate custa o equivalente a uns cêntimos de euro, e o agricultor quase que abandona a produção, mas depois vem o tempo da chuva, e o mesmo quilo de tomate pode estar a dois euros e meio. O que nós pretendemos é conseguir o preço fixo para cada produto.”

Para além do cultivo de hortícolas, o PDSA está também a trabalhar noutras frentes. Uma delas é a da transformação dos produtos locais, “agregando valor, por exemplo, à mandioca”. Partindo de um produto que é, juntamente com a banana e a matabala, uma das bases da alimentação no país, os responsáveis pelo programa fizeram um estudo e concluíram que a transformação da mandioca em farinha era feita por “senhoras que trabalhavam há mais de 40 anos de forma precária, sem condições de higiene, com pequenas infra-estruturas o mais modestas possível”. E, apesar disso, são elas geralmente a base de sustento das suas famílias.

O objectivo foi, portanto, melhorar as condições de trabalho destas mulheres, criando uma cooperativa e construindo uma pequena fábrica, que foi inaugurada em 2011. “As mulheres participaram activamente na construção da fábrica, e ela já funciona, apesar de algumas limitações, porque estamos a falar de pessoas que outrora não tinham espírito de associativismo. Neste momento já estamos a trabalhar no melhoramento e higienização do produto final, e já se fazem alguns derivados da farinha que são fornecidos ao Programa de Alimentação e Saúde Escolar”, conta Celso.

Voltemos ao diagnóstico que a FAO faz de São Tomé: “As principais dificuldades do país são: baixa produção agrícola, elevados índices de inflação, elevados custos dos factores de produção, incapacidade de gerar emprego, instabilidade do valor da moeda, incapacidade de assegurar mecanismos de estabilidade financeira, insuficiência de infra-estruturas socioeconómicas, êxodo rural e desigualdade de acesso a recursos.”

É certo que o PDSA não poderá resolver todos estes problemas, mas, à sua escala, pode começar a lidar com alguns: reduzir o desemprego, contrariar o êxodo rural, diminuir a dependência do exterior. “Estamos a falar de um país que tem entre dez mil e 13 mil agricultores familiares num universo de 137 mil habitantes, dos quais 30% são crianças. Portanto é um número representativo”, diz Celso. “Um núcleo familiar tem entre quatro e sete filhos, por isso, é muita gente que depende desta agricultura. Se não se dedicassem a ela, a única actividade alternativa seria o comércio a retalho, e isso leva mais pessoas para as cidades, e não desenvolve um país.”

E – o mais importante –, se tudo correr como previsto, este programa vai melhorar a dieta das crianças nas escolas. Celso espera que a influência positiva se espalhe e que os bons hábitos adquiridos pelos filhos acabem por influenciar os pais, levando-os, a pouco e pouco, a introduzir mais hortícolas nas suas refeições. Assim, “paulatinamente”, como Celso gosta de dizer, se vai tentando mudar um país.

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