Reportagem: do lado de lá da porta da Urgência
Uma ambulância estaciona à porta do serviço de urgência. Estão sempre a chegar. Esta vem de Peniche. São quase 20h00. Fernando Sousa, 35 anos, coordenador da equipa de 18 enfermeiros (dez mulheres e oito homens), que se encontra no segundo turno do dia, já estava à espera deste doente. Início de acidente vascular cerebral, 70 anos, “via verde AVC”. Quer isto dizer que vai beneficiar de uma intervenção urgente para tentar libertar o trombo e desentupir a artéria. Se se conseguir, pode ser que a situação se torne reversível.
O homem chega consciente mas confuso, o lado esquerdo do corpo paralisado. É preciso fazer análises e uma TAC (Tomografia Axial Computorizada) com urgência para confirmar que se trata de um AVC isquémico, antes de começar o tratamento designado de trombólise usado para dissolver o coágulo, que deve ser realizado no espaço de seis horas desde que os sintomas se instalaram.
A médica neurologista Ruth Geraldes é chamada de urgência e observa o doente. “A que horas é que isto começou? Levante a perna”, pede. “Vamos embora depressa”, diz ao enfermeiro que empurra a maca para um elevador até gabinete onde o doente vai fazer a TAC. No corredor há uma mulher a chorar silenciosamente e outra que se dirige ao enfermeiro a protestar: “Afinal onde é que eu vou buscar as roupas do meu marido? Há meia hora que ando aqui e me mandam de um sítio para outro… Isto realmente…” “Pergunte ali àquele senhor”, responde o enfermeiro, apontando para um auxiliar, enquanto continua a empurrar a maca. Agora ele não pode parar. Está numa corrida contra o tempo.
Os enfermeiros
Fernando Sousa, enfermeiro há 13 anos, tem um turno de oito horas pela frente. Passa pela sala de aerossóis para onde são encaminhados os doentes com dificuldades respiratórias. Passa pela pequena cirurgia, pela sala de tratamentos, pelo Serviço de Observação (SO). E vai atendendo o telemóvel que toca permanentemente a pedir instruções, a passar informações. Como coordenador da equipa de enfermeiros, compete-lhe fazer a gestão dos recursos humanos e do material necessário para as necessidades que vão surgindo.
Chega nova ambulância do INEM. Traz uma mulher idosa. Vem com dificuldades respiratórias, uma máscara de oxigénio. Atrás, vem outra mulher, feições semelhantes, ansiosa. É a filha que a vem acompanhar. O médico esclarece-a sobre o seu estado. Uma enfermeira explica-lhe que a mãe vai ficar internada no SO. Lá fora, há doentes à espera de ser atendidos há quase duas horas. O Serviço de Urgência “é muito desgastante” mas é o que Fernando Sousa gosta de fazer . “Nenhum dia é igual a outro, tem de se ser rápido. Pensar rápido, agir rápido, está a ver? E há o imprevisto”. “Não há dias nem horas aqui, de repente cai o Carmo e a Trindade”, diz Carlos Neto, o enfermeiro-chefe da Urgência de Santa Maria onde trabalha há 26 anos. “É preciso gostar para se trabalhar aqui”.
Os enfermeiros circulam pelos corredores, transferem os doentes das macas, dão-lhes medicamentos, monitorizam-nos, fazem pensos, injectam, algaliam. “Têm de saber olhar para o doente, avaliá-lo… Este doente não está bem”. É um complemento do trabalho do médico. Por vezes, muito stressante, quando há situações graves e muitos doentes para atender. Às vezes, muito gratificante, às vezes muito ingrato, diz Carlos Neto.
“É preciso ir para o hospital?”, pergunta o doente que entrou com o quadro de AVC, já no SO enquanto o enfermeiro lhe injecta o medicamento para dissolver o trombo sob a vigilância do médico. “O senhor já está no hospital, no hospital de Santa Maria”, esclarece outra enfermeira. “Agora, vamos ficar sempre a fazer-lhe perguntas, sim?”
As assistentes sociais
Por dia, dizem os números, cerca de 600 pessoas são atendidas no Serviço de Urgência do Hospital de Santa Maria, o maior do país. A grande maioria não precisava de recorrer às urgências, mas apenas a um centro de saúde. Destes, apenas vem referenciada uma pequena percentagem, revelam igualmente os números disponíveis. O Serviço de Urgência é também uma porta aberta para os problemas sociais. Uma parte das pessoas que se desloca ao hospital queixa-se de que se sente só, de que lhe falta dinheiro para os medicamentos, de que tem fome. Há sem-abrigos que vão dormir na sala de espera da Urgência, cabeça repousada em cima de sacos, para fugir do frio. Há idosos sem família, vítimas de maus-tratos, dementes, alcoólicos, gente sem identificação, toxicodependentes e todos os problemas que lhes estão por trás as assistentes sociais do Serviço Social dirigido por Conceição Patrício procuram resolver.
Argentina Castilho já viu de tudo, desde que está há seis anos na Urgência. Conta como resolveu o caso de um homem idoso que entrou no banco com indicação para ficar internado, muito preocupado por deixar a mulher só, demente e invisual e um cão diabético. Argentina conseguiu que a mulher fosse recebida num lar da emergência social e tratou do cão em casa, antes de poder colocá-lo provisoriamente num canil. “O senhor perguntava insistentemente por ele…”
Conta também a história de uma mulher vítima de violência doméstica e de como pediu a colaboração da polícia para a proteger. E o caso de um homem rejeitado pelo filho que não recebeu o pai, apesar deste ter alta clínica. “Acabou por morrer no hospital”.
As assistentes sociais contactam com tribunais e responsáveis de instituições, “trabalham” as famílias, tentam ultrapassar dificuldades e resolver conflitos e situações urgentes. “E ao contrário do que muita gente pensa, não são apenas problemas de gente pobre. Há gente com muito dinheiro envolvida em conflitos, sobretudo familiares, que temos de resolver”, diz Conceição Patrício “orgulhosamente no Serviço Social” vai para volta de 30 anos.
Os médicos
Uma jovem mulher com tosse e quase afónica é uma das doze pessoas que a médica ucraniana Tatyana Koval, de 38 anos, vai observar no seu gabinete durante as seis horas que vai permanecer na Urgência. Alta, loura e sorridente, diz que “foi o destino” que a mandou para Portugal há seis anos.
Apesar de já ser internista no seu país, aqui só pode exercer clínica geral, visto que a Ordem dos Médicos não reconhece equivalência às especialidades feitas nos outros países. Mesmo assim, Tatyana Koval, médica já efectiva na Urgência, considera-se satisfeita num trabalho que faz “com muito gosto”.
Chama um outro doente que aguarda na sala, uma jovem de 19 anos, com possibilidade de estar grávida, enquanto no gabinete ao lado, a médica brasileira Suely, 43 anos, natural de Aracajú, recebe um jovem seu conterrâneo com um quadro de sinusite a quem receita antibiótico. Antes, já viu dez doentes. Suely é endocrinologista mas, à semelhança da sua colega ucraniana, só pode exercer clínica geral em Portugal, onde se fixou há quatro anos porque casou com um português.
Ambas observam os doentes aos quais foi distribuída uma pulseira verde (que designa os casos pouco urgentes) na triagem. Segundo a directora do serviço de urgência, a médica Margarida Lucas, 43 por cento dos doentes que aí chegam tem prioridade verde. “A maior parte não tem médico de família e a outra não passa pelo centro de saúde”, revela. Seguem-se os que têm prioridade amarela (40%), identificados como urgentes, e os que têm prioridade laranja (12 %), como muito urgentes. Estes são internados no SO onde ficam em permanente observação. São os chamados doentes “críticos”. É aqui que se encontram os médicos Ana Moleiro e Diogo Cruz, internistas. Estão a fazer um turno de 12 horas. Estão os dois a observar uma dos 16 doentes internados. Uma mulher com hipertiróidismo e arritmia cardíaca. Estão a tentar estabilizá-la para evitar que entre em insuficiência cardíaca. Tiram-lhe sangue para análises, pedem-lhe que lhes explique o que aconteceu. Do outro lado da sua cama, uma jovem recém-chegada, politraumatizada, imobilizada com um colar em consequência de um acidente, recebe maiores atenções.
Em torno de uma mesa equipada com monitores através dos quais é possível aceder a grande número de informações sobre cada um dos doentes, há médicos que procuram dados, seguem a evolução das pessoas internadas, atendem telefones, correm para outros serviços.
Diogo Cruz, 34 anos, já está há muitas horas no hospital, mas diz que é exactamente esta a vida que escolheu. Conta que fez a especialidade de Medicina Interna pela maior possibilidade de “tratar o maior número de diferentes doentes”. E com um sorriso diz que, apesar das muitas horas de trabalho e de stress, se sente um “privilegiado” por exercer uma profissão de que “gosta”, por “trabalhar no hospital de Santa Maria e em Lisboa”.
Os médicos de turno acorrem ainda à sala que recebe os casos mais urgentes das urgências. Os casos de emergência. Politraumatizados, estados de choque e de inconsciência, hemorragias graves. A campainha toca. Vêm a correr. Enfermeiros e médicos com treino em reanimação. Numa das vezes, para acudir a um homem que fez uma tentativa de suicídio com envenenamento. Da outra, para assistir a uma mulher de 30 anos com ruptura súbita de um aneurisma. Trouxeram-na da rua, inconsciente. Seguiu para o bloco operatório.
Auxiliares e vigilantes
Vêem-se por todo o lado. Vestem bastas e calças azuis. Há quem os confunda com os enfermeiros. Transportam os doentes e os tabuleiros com comida, limpam e arrumam, fazem o espólio das roupas.
Silvia Bastos, 30 anos, deixou de “encartar” páginas de jornais para se tornar auxiliar. Diz que gosta de “lidar com os doentes”, do “movimento da urgência” e que o sangue “não a impressiona”. Trabalha com Georges Gizow, filho de mãe portuguesa e de pai búlgaro. Nasceu em Beirute e viveu na Bulgária, onde se licenciou em jornalismo e trabalhou em vários jornais. Veio para Portugal com os pais e não teve outro remédio senão aceitar o trabalho que lhe aparecesse à frente. Trabalhou no McDonnalds, em limpezas e numa churrasqueira. Até que encontrou o emprego de auxiliar em Santa Maria. “Todos os dias se passam coisas diferentes, é um trabalho um pouco parecido com o jornalismo”, ironiza.
Testemunha de tudo é José Luís de Sousa, o vigilante. Farda vermelha, horas de pé a controlar as passagens. “Só pode entrar um acompanhante”, passa o dia a dizer. Às vezes, “há pessoas mais conflituosas e somos muito maltratados”, conta José Luís. “Quando se pode, facilita-se, mas nem sempre é possível e as pessoas não percebem”. Durante 30 anos, ele foi primeiro escriturário na Quimigal e chegou a ser futebolista “ Depois, tornou-se vendedor e em Agosto do ano passado, ocupou o lugar de vigilante em Santa Maria, um dos 80 que lá fazem serviço. Sousa vai circulando pelos vários serviços. Onde mais gosta de ficar é na ginecologia. “Arranjei lá bons amigos. Vêm ter comigo, mostram-me os miúdos. Passam por aí…’Oh Sousa, está bom?…’ É lindo”, comenta. Mas nunca perde a atenção. “A senhora, por favor, não pode entrar…”