Reforma do mapa judiciário obriga a transferir electronicamente seis milhões de processos

Destes dois milhões de processos terão que ser transportados fisicamente para outros tribunais. É uma das muitas dificuldades logísticas associadas àquela que é considerada a mais importante reforma da Justiça nos últimos 100 anos.

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nFactos/Fernando Veludo

Estas são estimativas do Ministério da Justiça (MJ), que deverá ter a operação concluída até 1 de Setembro, data em que serão formalmente extintos todos os tribunais existentes, renascendo a esmagadora maioria com uma nova organização e novos nomes. Vão encerrar 20 tribunais e 27 vão ser reduzidos a secções de proximidade.

Mas a transferência dos processos é apenas uma das muitas dificuldades logísticas associadas àquela que é considerada a mais importante reforma da Justiça nos últimos 100 anos e que deverá estar no terreno dentro de seis meses.

A mudança obrigará à realização de obras em 105 tribunais por todo o país, das quais apenas 38 estão concluídas, e à criação de um novo sistema informático que permita que todos os tribunais existentes em cada uma das novas 23 comarcas (a maioria corresponde à área de um distrito) possam estar ligados em rede. Isto para permitir que em qualquer dos edifícios da comarca se possam obter informações sobre os processos que correm na mesma e se possam entregar documentos.

Ainda se aguarda a nomeação dos responsáveis que irão gerir as comarcas, ou seja, os juízes-presidentes, os procuradores coordenadores e os administradores judiciários. Os cursos de formação ministrados pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) para os candidatos às novas funções já terminaram, mas os conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público ainda aguardam pelas listagens dos magistrados aprovados.

A Lei de Organização do Sistema Judiciário, publicada no final de Agosto do ano passado, previa que os órgãos de gestão das comarcas fossem nomeados até seis meses antes do arranque das comarcas. Tal implicaria que estes responsáveis fossem nomeados até 1 de Março, o que é manifestamente impossível, já que ainda nem sequer estão abertos os respectivos procedimentos de selecção.

A regulamentação daquela lei também deveria ter sido aprovada pelo Governo até final de Outubro, mas apenas ocorreu em definitivo na passada quinta-feira. Aguarda-se ainda a sua publicação em Diário da República, tendo o PS anunciado que irá pedir a apreciação parlamentar do decreto, o que, a acontecer, atrasará ainda mais a reforma. Por fazer está ainda a discussão dos estatutos socioprofissionais de juízes, procuradores e funcionários judiciais, processos negociais inevitáveis para o arranque da reforma que poderão demorar meses.

Até 1 de Setembro terão que ser definidos os quadros dos funcionários judiciais e recolocados mais de sete mil profissionais. Os conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público terão ainda uma tarefa inédita: movimentar todos os juízes e procuradores que trabalham nos tribunais de primeira instância e colocá-los nos quadros definidos pelo ministério.

A juíza Albertina Pedroso, do Conselho Superior da Magistratura (CSM), explica que a aplicação informática de que o organismo dispõe não tem as funcionalidades necessárias para tal e que, por isso, está a ser desenvolvida uma nova aplicação. “Pela primeira vez, irão ser movimentados num único movimento todos os juízes de primeira instância. À dimensão do movimento acresce ainda a existência de especialização em maior número, as regras de preferências de colocação dos juízes e a transformação das unidades orgânicas”, afirma.

Para o CSM, diz Albertina Pedroso, a transferência electrónica e física dos processos é “um dos mais relevantes” aspectos da transição. “O conselho tem transmitido que deve ser utilizada uma solução tecnológica diversa da de 2009 [lançamento da comarcas piloto] que implicava muito trabalho manual e que se revelou muito demorada quando então estavam em causa apenas três comarcas”, sustenta a juíza.

E há motivos para temer esta solução, como comprova o juiz-presidente da comarca-piloto do Baixo Vouga, Paulo Brandão. “A instalação da comarca em Abril de 2009 foi catastrófica”, admite o magistrado. A transferência electrónica apagou alguns processos do sistema informático e também se perderam processos físicos. “Alguns processos demoraram um ano a localizar”, reconhece Paulo Brandão, que acredita que será possível evitar a repetição do caos e passado cinco anos faz um balanço positivo do novo modelo, que só vai ser parcialmente reproduzido na reforma em curso.

O MJ adianta que está a fazer o necessário para adaptar o programa informático Citius, que funciona nos tribunais, e que serão investidos 1,2 milhões de euros em servidores e equipamentos para armazenar dados e 800 mil euros em recursos humanos. “Estamos na fase de implementação da arquitectura do sistema que irá suportar a evolução a realizar sobre o Citius”, precisa. Quanto ao transporte dos cerca de dois milhões de processos, o ministério admite que as transportadoras ainda não foram contratadas e que ainda não contactou formalmente os organismos públicos que poderão colaborar na mudança. Diz, contudo, que já começou a fazer prospecções de mercado.  

José Carlos Fernandes, representante do Conselho Superior do Ministério Público no grupo de trabalho criado pelo MJ para acompanhar a transição, está preocupado com a falta de recursos humanos, nomeadamente de procuradores e de oficiais de justiça. “Não obstante os quadros legais fixados registarem um aumento de cerca de 50 magistrados face à última proposta, continuam a ser claramente insuficientes”, considera o procurador, precisando que o Ministério Público necessita de maios de 100 novos magistrados para exercer “cabalmente as funções”. Não percebe, por isso, porque é que o Governo anunciou um novo curso de formação de magistrados que recrutará 60 juízes e apenas 20 procuradores.

Quanto aos oficiais de justiça, José Carlos Fernandes nota que “existem inúmeras carências nos serviços do Ministério Público, com situações verdadeiramente preocupantes de escassez ou inexistência de oficiais de justiça”, estimando em cerca de 1000 a carência destes funcionários. O magistrado não se mostra muito preocupado com a logística da instalação do novo modelo, elogiando o “forte desempenho do Ministério da Justiça” num trabalho que apelida de “sério” e “inovador”.

Já o presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, Fernando Jorge, está muito preocupado com a concretização prática da reforma. “É como mudar de casa, os primeiros dias são sempre complicados”, diz. Mas, a uma situação de inevitável turbulência, Fernando Jorge soma várias agravantes. Não saberem ainda os quadros dos funcionários judiciais em cada comarca, se irá haver o prometido reforço dos profissionais e não conhecerem nada sobre as alterações informáticas no sistema com que terão que lidar diariamente. “Não falta muita coisa. Falta quase tudo, com excepção do projecto de arquitectura da casa”, resume. 

Como vão funcionar os tribunais?
O novo modelo extingue todos os tribunais existentes e cria 23 novas comarcas que correspondem, na maioria dos casos, à área dos distritos. Em cada comarca passa a existir apenas um tribunal judicial de primeira instância, habitualmente sedeado na capital de distrito. 

Aí ficarão instaladas as instâncias centrais, que tratam dos processos mais complexos do distrito na área civil e na área criminal. Para resolver os litígios cíveis de valor superior a 50.000 euros ou processos criminais julgados por um tribunal colectivo, advogados e cidadãos terão que se deslocar quase sempre à sede do distrito. 

Aí funcionarão igualmente unidades de competência especializada, designadamente, secções de Comércio, Execução, Família e Menores, Instrução Criminal, Trabalho, que também podem existir noutras localidades do distrito. As instâncias locais espalhadas pelo distrito lidam com os casos menos graves, ou seja, a generalidade das acções cíveis de valor igual ou inferior a 50.000 euros e os crimes com uma moldura penal baixa. 

As secções de proximidade ficarão nas localidades com poucos processos (250 por ano foi o limite definido para encerrar tribunais), mas que se justificam manter pela distância da unidade mais próxima ou pela inexistência de uma rede de transportes.  Encerram os tribunais de Sever do Vouga, Penela, Portel, Monchique, Fornos de Algodres, Meda, Bombarral, Cadaval, Castelo de Vide, Ferreira do Zêzere, Mação, Sines, Paredes de Coura, Boticas, Murça, Sabrosa, Mesão Frio, Armamar, Resende e Tabuaço. A última versão do mapa retira desta lista Carrazeda de Ansiães, no distrito de Bragança, e de Castro Daire, em Viseu, que passam a secções de proximidade.

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