Reclusos que são como pastores de Belém
Como é o Natal na prisão? Pode ser só “ficar fechado” na cela “a pensar”. Na paróquia de São Tiago de Priscos quatro reclusos do Estabelecimento Prisional de Braga andaram a construir um presépio. “Natal é dar-lhes oportunidade de trabalharem, de se reinserirem”, diz o padre.
Sabe o que é passar o Natal numa cadeia. Passou três vezes o Natal naquela cadeia, construída em 1972, quatro anos antes de ele nascer. “Não podemos fazer nada se não comer e ir para a cela. Ficamos fechados a pensar. É o pior dia do ano. Pensamos muito. Pensamos porque fomos fazer aquilo…” Aquilo, no caso dele, é tráfico e consumo de base de cocaína, crack à portuguesa.
A Direcção-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais não sabe quantas ceias serão hoje servidas nas cadeias. Só depois do Natal poderá dizer quantos dos 14.148 reclusos — quase todos homens (94%), a maior parte portugueses (82,3%) já condenados (82,9%) — estiveram fora nestes dias.
Não há uma saída jurisdicional natalícia, embora em nenhuma altura do ano haja tantas solicitações. Os pedidos vão sendo apreciados durante o ano pelos tribunais de execução de penas ou pelos directores dos estabelecimentos prisionais, entidades que têm poder de decisão.
Não é para todos. A prisão preventiva, medida de coacção a que está sujeito o ex-primeiro ministro José Sócrates, não admite esse direito. Só pode pedir para sair uns dias quem já está condenado, cumpriu um quarto ou um sexto da pena, consoante a duração, não infringiu regras, e tem algum enquadramento lá fora.
Pagando, quem fica pode almoçar com a família em dia marcado, uma ou duas semanas antes, conforme a lotação da prisão. No Estabelecimento Prisional Regional de Braga o almoço familiar foi na quarta, dia 17, e na sexta, dia 19. Alguns não querem fazer isso. Hugo nunca quis. “É pior… Pensa-se ainda mais…”
Hugo passou os últimos três meses a trabalhar na paróquia de São Tiago de Priscos, em Braga. Com um encarregado de obra, três reclusos e centenas de voluntários, esteve a fazer um presépio de cerca de 30 mil metros quadrados, mais de 90 cenários, 600 figurantes, com direito a presença do arcebispo primaz, D. Jorge Ortiga, e do presidente da Câmara de Braga, Ricardo Rio, no dia da inauguração.
Alguns não quererão jantar
Frederico é o único dos quatro reclusos que trabalharam no presépio a passar a consoada no Estabelecimento Prisional Regional de Braga. O antigo comercial, de 55 anos, usou a saída precária pouco antes do Natal. Falta-lhe pouco para a liberdade condicional e tinha de encontrar-se com alguém que lhe poderá abrir as portas do mercado laboral. Hoje, véspera de Natal, janta no sítio do costume.
O jantar serve-se na cantina, como nos outros dias, entre as 17h30 e as 18h30. Haverá bacalhau, batatas e couves no prato. Aparecerá a directora, o chefe dos guardas e o padre. Alguns não quererão jantar. Dirão que preferem ficar na cela, a pensar. E algum guarda ou técnico irá lá, incitá-lo a sair do buraco, a ir jantar, diz a experiência de Elisabete Dias, directora do Estabelecimento Prisional Regional de Braga. “Não forçamos, mas incentivamos a ir.”
Impossível esquecer que é Natal. As decorações natalícias invadem todos os espaços comuns da prisão. As televisões não param de lembrar que é Natal, que as famílias se juntam, que se abraçam, que se riem, que trocam prendas, que comem até se fartarem. E os reclusos, nota Elisabete Dias, sentem ainda mais a reclusão. Não é à toa que alguns pedem para serem transferidos uns dias para outra prisão onde têm o pai ou a mãe ou um filho ou uma filha ou outro familiar qualquer.
Não mói só a privação de liberdade, a vigilância permanente, a ausência de silêncio, o convívio forçado com quem está. “As pessoas sentem mais que têm família”, observa o padre João Torres, responsável pela Pastoral Penitenciária de Braga. “Mesmo que estejam zangados, sabem que têm alguém do outro lado. Há alguém que espera por elas, um pai, uma mãe, uma mulher, um filho. Pior é estar detido e não ter em quem pensar. É horrível. A pior prisão é essa.”
Esta noite, na Igreja de São Tiago de Priscos, durante o sermão, há-de falar em quem está atrás das grades. “Os reclusos são como pastores de Belém, a quem apareceu o anjo a anunciar o nascimento de Jesus. Os pastores de Belém viviam afastados, viviam à margem da sociedade. Os reclusos estão afastados, estão à margem. Natal é dar-lhes oportunidade de trabalharem, de se relacionarem, de se reinserirem.”
Parece-lhe que há um afastamento do autêntico espírito de Natal. “Como nasce Jesus?” César Augusto publicara um decreto a ordenar recenseamento. Cada um tinha de ir à terra de origem. José e Maria viviam na Nazaré, na Galileia, e tiveram de ir a Belém, na Judeia. Em nenhuma estalagem lhes abriram a porta. “Se fosse uma menina, a estalagem teria de fechar 60 dias para ser purificada. Se fosse um menino, 30. Era um preceito judaico. Num período de recenseamento, com tanta gente na cidade, ninguém ia aceitar uma grávida. Ia perder negócio. A exclusão nasce aí”, diz.
“O Natal não é uma coisa fofinha”, enfatiza o sacerdote, de 38 anos. “Jesus nasce no meio do estrume!” Maria envolve-o em panos e deita-o numa manjedoura. “Qual é a mãe que deita o filho na palha? A comissão de protecção tira-lho logo!” O paralelismo com a actualidade parece-lhe pertinente num país que muito empobreceu. “Quantas pessoas nascem numa situação precária?”
“O Natal é uma realidade fria que deve levar cada um de nós ao encontro do outro”, começa a definir, agora pela positiva, o padre João Torres. O Natal é um exercício de procura do “código secreto” da felicidade que é “gente que se relaciona com gente”. ” E “quem disse que o Natal não pode durar o ano todo”?
Natal no resto do ano
Haverá reclusos a trabalhar ali um ano inteiro. O projecto “Mais Natal – Priscos” ganhou o orçamento participativo 2015 da Câmara Municipal de Braga. Talvez porque vir embrulhado num discurso sobre humanizar, dignificar, reinserir através do trabalho e da interacção com a comunidade.
Já é “o maior presépio do mundo”, pelo menos do mundo que o padre João Torres conhece. Quando ali chegou, há nove anos, não se fazia. Convencido de que “a paróquia tem mais pontos a distanciar as pessoas do que a aproximá-las”, quis trocar as voltas aos paroquianos. “Era preciso arranjar um espaço que congregasse as pessoas e era preciso ir à procura das pessoas para que elas sentissem que são católicas na medida em que se encontram com outras e fazem alguma coisa pelas outras”, explica.
Os reclusos, com a orientação de um mestre de obra e a ajuda de centenas de voluntários, estão a construir estruturas permanentes, em pedra. Durante o ano, tais estruturas deverão ser usadas para outros eventos, incluindo um projecto de inclusão social de comunidades ciganas.
Para além do curral, há uma aldeia romana, uma aldeia judia, um acampamento militar. Quem ali for há-de deparar-se com ferreiros a forjar ferro, sapateiros a concertar sandálias, serradores a serrar lenha, tecedeira a tecer, oleiros a amassar o barro, padeiras a amassar a farinha… A grande novidade deste ano é a recriação das catacumbas, que o padre João Torres descreve como um “monumento evocativo aos cristãos perseguidos por todo o mundo”. “Numa época de crescente perseguição, queremos aprimorar o direito humano à liberdade de religião”, diz.
Hugo adora passar os dias ali. “Gosto do sítio. Gosto de estar a trabalhar. Gosto de não estar metido na prisão.” E gosta de ganhar “400 e tal euros” e não 60, como ganhava quando trabalhou dentro do estabelecimento prisional. Já pode apanhar um comboio para ir até casa sem ter de pedir dinheiro à família para o bilhete. “Já tenho algum dinheiro para prendas de Natal.” A caminho de casa há-de passar por um centro comercial. “Vou comprar uns carritos para os mais novos — um tem 4 anos e outro 7. Às mais velhas vou comprar uma camisolita — uma tem 18 e a outra 20.”
Nota: A pedido dos reclusos, o nome deles foi alterado.