Procuradoria-Geral da República diz que rendeiros da Herdade dos Machados mantêm terrenos

Ministério da Agricultura pretendia ver aplicado o despacho que publicou em Agosto de 2003 em que se exigia aos rendeiros da exploração a devolução das terras que lhes tinham sido entregues por Sá Carneiro.

Foto
PCP considera "lamentável" que o Governo esteja envolvido neste processo Enric Vives-Rubio

O modelo alternativo de Reforma Agrária defendido por Sá Carneiro persiste em manter-se, pese embora as inúmeras tentativas para o alterar feitas pelos herdeiros de Ermelinda Neves Bernardino Santos Jorge, proprietários da Herdade dos Machados, com uma área superior a 6100 hectares, desde que foram expropriados em Dezembro de 1975 durante o VI Governo Provisório. Desde Setembro de 1979 que a administração da Casa Agrícola Santos Jorge pretende reaver a totalidade da área expropriada e posteriormente intervencionada. Neste sentido, a 25 de Julho de 1979, o Conselho de Ministros determinou "a cessação da intervenção do Estado na gestão da Casa Agrícola Santos Jorge, SARL, e a sua restituição aos respectivos titulares".

O problema complica-se no ano seguinte, quando Sá Carneiro manda retalhar cerca de 3000 hectares para os distribuir por 94 trabalhadores da exploração, que desde então se tornaram rendeiros do Estado. Este foi o modelo de Reforma Agrária defendido pelo antigo primeiro-ministro para o contrapor à solução defendida pelos comunistas. Só que a alternativa dita social-democrata veio a transformar-se numa persistente dor de cabeça tanto para a casa agrícola como para os rendeiros, que passaram a temer a sua expulsão das terras.

O seu receio tomou corpo em Agosto de 2003, quando o então ministro da Agricultura Sevinate Pinto, durante o Governo de Durão Barroso, publicou um despacho em que alegava estar em causa um direito de reserva de exploração, a atribuir à Casa Agrícola Santos Jorge, por dificuldades colocadas pelos rendeiros na "libertação dos lotes arrendados". A tutela defendia a "execução" do direito de reserva e a "denúncia" dos contratos de arrendamento. Os visados na decisão de Sevinate Pinto recorreram para o Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja (TAFB) e a instância judicial deu-lhes razão e anulou o despacho, recordou ao PÚBLICO Francisco Farinho, porta-voz dos rendeiros da Herdade dos Machados.

O agricultor explicou que não esteve envolvido em nenhuma ocupação da herdade, onde diz ter trabalhado 26 anos, e que Sá Carneiro lhe facultou os lotes de terra como forma de indemnização pelos anos que trabalhou na exploração. Francisco Farinho esclareceu que o tribunal não deu razão aos proprietários da casa agrícola porque estes se apresentaram como rendeiros e, assim sendo, "não era possível dar terras a um rendeiro que eram de outros rendeiros".

Em Novembro de 2011 deu entrada na Procuradoria-Geral da República uma solicitação apresentada pelo actual secretário de Estado das Florestas e Desenvolvimento Rura em que se pedia um parecer sobre o despacho ministerial de Agosto de 2003, assinado por Sevinate Pinto, sobre  a caducidade dos contratos de arrendamento e sobre a indemnização pela "privação de uso e fruição de reserva até à sua devolução final". O parecer votado na sessão do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República de 10 de Outubro de 2013 e agora publicado não reconheceu os argumentos apresentados pelo secretário de Estado e determinou que o "Estado/Administração está proibido de praticar qualquer acto incompatível com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja".

O conselho consultivo classifica como "inadmissível a ratificação" pelo Ministério da Agricultura do despacho do ministro da Agricultura de Agosto de 2003, o qual foi anulado pelo TAF de Beja, e propõe que se faça uma "reavaliação integral" de uma eventual iniciativa de denúncia dos contratos de arrendamento rural. 

O PÚBLICO contactou Jorge Tavares, administrador da Casa Agrícola Santos Jorge, que não quis adiantar qualquer comentário ao parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, sugerindo um contacto com o advogado da empresa, com quem não foi possível falar.

Filho de ferreiro fundou a herdade na segunda metade do séc. XIX
Tudo terá começado quando José Maria Santos, filho de um ferreiro de Lisboa, nascido em 1832, se deslocou a casa de Maria Cândida Ferreira Braga São Romão, baronesa e viúva do milionário Manuel José Gomes da Costa São Romão, para tratar da sua cadela que estava doente. A paixão terá surgido e José Maria Santos casou-se com a baronesa e passou a ser conhecido como o "Morgado da Canita".

Foi por esta via que um jovem de 25 anos e de origens humildes morreu dono de 50 mil hectares de terra que incluíam as três maiores explorações agrícolas do país (herdades da Palma, de Rio Frio e dos Machados).

A colossal fortuna que o "Morgado da Canita" rapidamente acumulou justificou a compra de bens fundiários nos concelhos de Beja, Serpa e Moura. Foi nesta última que juntou várias parcelas de terra e formou a Herdade dos Machados. Em pouco tempo, tornou-a numa das mais bem-sucedidas explorações do século passado.

Aproveitando as potencialidades das terras, apostou na inovação, mecanização e diversificação produtiva. Em poucos anos, José Maria Santos transformou as três maiores propriedades do país (Rio Frio, Palma e Machados) em explorações agrícolas altamente rentáveis. Na primeira plantou a maior vinha do mundo, na segunda o maior montado do mundo e na terceira o maior olival da Península Ibérica.

José Maria Santos morreu em Junho em 1913, sem filhos, e deixou em testamento a Herdade dos Machados a um sobrinho, Samuel dos Santos Lupi, que morreu pouco tempo depois. A exploração ficou nas mãos do seu filho, Samuel Lupi dos Santos Jorge, que se manteve à frente da propriedade até morrer, em 1964. Quando se deu a revolução de 25 de Abril de 1974, a Herdade dos Machados estava nas mãos de Ermelinda Martinez, a sua mulher.

Quando a herdade foi ocupada, na sequência da Reforma Agrária, existia um figueiral com 350 hectares, um pomar de citrinos com 20 hectares, uma vinha com 85 hectares e as culturas regadas somavam 200 hectares. A quinta tinha 900 bovinos, 8 mil ovinos e 400 caprinos. Além do grande parque de máquinas e infra-estruturas modernas, a exploração tinha uma adega, lagar de azeite, queijaria, fábrica de rações e actividades complementares para a produção de compotas, frutos secos e azeitona de conserva que alimentavam o mercado lisboeta.

Sugerir correcção
Comentar