Delegados da Bial suspeitos de forjarem estudo científico para justificar subornos a médicos
Dezassete arguidos constituídos após buscas na empresa. Delegados de informação médica e chefes de vendas terão aliciado médicos com cartões de compras e cheques. Estão em causa crimes de corrupção, burla e falsificação de documentos.
Ao final da tarde desta quarta-feira, em 24 buscas, tinham já sido constituídos 17 arguidos, a maioria deles delegados de informação médica, chefes de vendas nacionais e regionais da Bial e uma empresa. A par de dezenas de médicos, que não foram constituídos arguidos, são suspeitos de crimes de corrupção activa e passiva para acto lícito e ilícito, burla qualificada agravada e falsificação de documentos num inquérito-crime que está a ser investigado desde 2012.
No centro das suspeitas estão delegados e chefes de vendas da Bial que alegadamente aliciavam há vários anos médicos de todo o país, nomeadamente da especialidade de medicina geral e familiar, para que prescrevessem medicamentos produzidos por aquela farmacêutica em troca de vantagens patrimoniais. Também foram feitas buscas em casas de arguidos.
Os indícios recolhidos pela investigação dão conta de que os médicos recebiam verbas através de cheques bancários e contavam ainda com montantes de que podiam dispor através de cartões de compras nos hipermercados Continente (do grupo Sonae, o mesmo a que pertence o PÚBLICO) que lhes eram oferecidos pelos delegados de informação médica. Os indícios apontam ainda para a oferta de cartões semelhantes de uma empresa espanhola e de uma empresa mundial sediada na Alemanha, a Springer, uma editora de livros académicos e científicos. Porém, não estão em causa quaisquer suspeitas de crime relativamente às empresas emissoras desses cartões.
Os delegados tinham a preocupação de dar uma aparência de normalidade para não levantar suspeitas. Terão recorrido à organização de um estudo científico que incluiu um programa de questionários a médicos, produzidos por uma empresa de consultadoria na área da saúde sediada no Estoril, para justificarem os pagamentos aos clínicos que classificavam contabilisticamente como prémios. Essa empresa, a Formifarma, que o PÚBLICO tentou contactar sem sucesso, foi constituída arguida, assim como alguns dos seus funcionários.
“Investigam-se, entre outras, matérias relacionadas com pagamentos efectuados a título de estudos científicos mas que se reportariam à prescrição de fármacos”, confirmou a PGR em comunicado, assegurando também que a Bial “não se encontra entre os arguidos constituídos”.
Ao final da tarde desta quarta-feira, a PJ já tinha apreendido dezenas de documentos e ficheiros informáticos nos computadores da farmacêutica, nomeadamente uma lista de pagamentos a médicos.
Vários procuradores do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, que lidera a investigação, e o juiz Carlos Alexandre do Tribunal Central de Instrução Criminal estiveram também presentes nestas buscas que começaram manhã cedo, pelas 7h. A operação contou apenas com mandados de busca, não existindo mandados de detenção.
Bial surpreendida
Em comunicado entretanto enviado às redacções, a Bial diz ter sido “surpreendida com uma investigação em curso de âmbito nacional” e confirmou as buscas nas suas instalações. “Estranhando o sentido desta diligência, BIAL está, como sempre esteve, totalmente disponível para colaborar com as autoridades em tudo o que entenderem necessário”, acrescentou a farmacêutica, que garantiu que irá continuar a “prestar às autoridades, sempre que necessário, toda a colaboração solicitada para o cabal esclarecimento da realidade”.
Esta investigação resulta de várias denúncias apresentadas por delegados de informação médica não envolvidos neste processo; e da extracção de uma certidão do processo-crime Remédio Santo — também investigado em 2012 pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção da PJ e no âmbito do qual, no final do ano passado, foram condenados 13 arguidos a penas de prisão efectiva, algumas de nove e oito anos. Ficou então provado o crime de associação criminosa numa burla ao SNS. Três ficaram com pena suspensa e dois foram absolvidos.
Nesse processo, estavam em causa seis médicos, dois farmacêuticos, sete delegados de informação médica, uma esteticista (ex-delegada de informação médica), um empresário brasileiro e um comerciante de pão, acusados de falsificação de documentos, burla qualificada e associação criminosa.
Usavam um esquema de receitas falsas através do qual aviavam medicamentos, alguns dos quais comparticipados a 100%, e que eram depois reintroduzidos no mercado para a venda em países estrangeiros. As receitas eram passadas com o nome de utentes do SNS que nunca vinham a descobrir a utilização da sua identidade. Os arguidos foram ainda condenados a pagar mais de três milhões de euros, o valor que se apurou ser a burla. Um montante residual se comparado com os 200 milhões que o Ministério da Saúde estima ter sido o valor do prejuízo para o SNS nos últimos anos.
De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna de 2014, só nesse ano foram detectadas fraudes que lesaram o Estado português na área da saúde em 5,5 milhões de euros.