Plano de combate ao tráfico de pessoas alerta para riscos "quase diários" em escolas e redes sociais
Projectos-piloto estão a ser lançados em Odivelas e Odemira, onde uma investigação identificou a presença de vítimas estrangeiras e de perigos potenciais para jovens nacionais e estrangeiros. É um plano de combate local que pretende ser nacional.
À primeira sessão de fotografias, Joana vai sozinha e é surpreendida: é forçada a despir-se, fotografada nua e mais tarde levada para um apartamento, onde fica obrigada a prostituir-se. Cinco anos passam e a adolescente torna-se mulher. Hoje, sofre de episódios psicóticos todos os dias.
Filipa, 19 anos, pesquisa na Net ofertas de emprego temporário como muitos estudantes universitários, como ela, que querem juntar dinheiro nas férias. Entusiasma-se com um anúncio no Facebook e confia na mensagem que a aconselha, de forma insistente, a não perder “a oportunidade” da sua vida: um trabalho temporário mas bem remunerado numa multinacional que lhe trata de toda a documentação e lhe paga a viagem de avião e o alojamento. No destino é forçada a trabalhar 14 horas por dia na apanha da framboesa, sem ser paga.
Mário joga futebol e nunca pensou numa carreira internacional. “Mas devia pensar”, garante-lhe um homem que se aproxima do campo onde ele joga com elogios ao talento do jovem. Apresenta-se, de fato cinzento, como uma pessoa com preciosos contactos em Espanha e Holanda “para o colocar lá”. “Ligue-me que eu trato de tudo”, promete. Mário é levado para o estrangeiro e o sonho transforma-se num pesadelo: todos os dias trabalha 16 horas num restaurante, sem conseguir ganhar nada.
“Estas abordagens à porta da escola são quase diárias. Não são situações abstractas, são reais. Isto resulta de experiências muito concretas de jovens”, diz Miguel Santos Neves, presidente do think tank português, NSIS (Network of Strategic and International Studies), que reúne investigadores do extinto Instituto de Estudos Estratégicos Internacionais (IEEI). São também reais as situações de vítimas identificadas na Internet, completa a directora do NSIS Cláudia Pedra. “Através das redes sociais, os traficantes investigam o perfil das pessoas e enviam as ofertas de trabalho que para ela são as mais aliciantes.”
Em meio rural e urbano
O NSIS, um centro de investigação e acção na área dos direitos humanos e das relações internacionais (e que tem como área privilegiada de pesquisa o tráfico de pessoas), reconstituiu em vídeos as situações de Joana, Filipa e Mário (nomes fictícios) para a apresentação do Plano Local de Combate ao Tráfico de Pessoas em duas freguesias do país: Pontinha-Famões, onde o projecto foi apresentado na quarta-feira, e São Teotónio, onde o será nesta sexta-feira.
Ambas as freguesias são, em Portugal, um local de especial incidência de casos de vítimas, sobretudo estrangeiros. Com uma diferença: se em São Teotónio (concelho de Odemira) foram identificadas vítimas de exploração laboral, na actividade agrícola, na Pontinha-Famões (concelho de Odivelas) foram encontradas sobretudo mulheres exploradas sexualmente, colocadas em apartamentos, longe dos olhos da sociedade, ou em casas de alterne ou na rua.
O objectivo, no médio prazo, é estender estes dois projectos-pilotos a outros pontos do país. O plano, explica Cláudia Pedra, tem em conta a forma como o tráfico se processa: “Ele começa e termina numa comunidade.” Ambas – São Teotónio e Pontinha-Famões – podem pois ser local de destino de vítimas estrangeiras ou de origem de vítimas nacionais.
O plano, que estará formalmente em marcha entre Janeiro de 2015 e Dezembro de 2017, tem vindo a ser trabalhado no último ano nestas duas freguesias – junto de entidades que nele vão participar, como escolas, centros de saúde, juntas de freguesias e a Polícia de Segurança Pública (PSP).
“Foi possível comprovar nas escolas que o fenómeno está em enorme expansão”, reforçou o responsável. “Os alunos começaram a reportar as situações à escola, e nalguns casos também à PSP e à comissão de protecção [de crianças e jovens].”
Mensagens virais
Com o lançamento de uma campanha em Outubro, com mensagens virais na Internet e acções públicas e iniciativas locais de sensibilização, “muitas pessoas começaram a identificar situações que antes não relacionavam com o risco de tráfico”, nota Cláudia Pedra. Situações que podem ser actos de aliciamento ou identificação de vítimas que antes passariam mais despercebidas.
Muitos jovens, exemplifica Cláudia Pedra, expõem com facilidade nas redes sociais o seu perfil, revelando o nome da escola e o seu desporto favorito, a sua carreira de sonho, a relação (por vezes má) com os pais ou o sentimento da incompreensão ou da falta de amigos. “O traficante faz um trabalho de investigação de fundo e essa pessoa torna-se numa potencial vítima”, conclui. A campanha alerta para esses riscos. O objectivo é levar “as pessoas da comunidade a ficarem mais alertas” e a interpretarem os sinais em situações que podem ser suspeitas. Um exemplo: mulheres que se dirigem às Unidades Móveis de Saúde (mesmo quando acompanhadas por alguém da rede) e cuja situação levanta suspeitas aos profissionais de saúde.
No caso de Joana, Filipa e Mário, como noutros, as vítimas podem conseguir fugir ou ser ajudadas a fugir por profissionais de saúde, organizações não governamentais (ONG), padres, no quadro de uma investigação da Polícia Judiciária (PJ) ou de uma acção de inspectores do trabalho.
O plano pretende mais do que isso: prevenir e dar um apoio às vítimas que não está a ser dado, garantem os investigadores do NSIS que se inspiraram em projectos deste tipo realizados noutros países. Está em formação uma equipa interdisciplinar para receber os casos de vítimas que, uma vez identificadas, serão apoiadas e encaminhadas.