O juiz e a funcionária
Quando não é assim, a lei penal é ilegítima e injusta. As penas também.
Siga esta estória:
O carro do juiz está um chaço. Nem vale o último conserto. Decide-se por um em segunda mão que espiou no stand. Dez mil euros! Conhece o dono do stand de que é cliente há muito tempo. Traz um desconto de dois mil euros.
Isto sucede todos os dias aos clientes do stand do juiz e em todos os stands. Toda a gente pede descontos. Negócios. É o mercado “a funcionar”, como eles dizem.
Para o juiz ou funcionário público, o mercado não funciona. O Estado é interventivo. Mete o bedelho. O juiz “aceitou ou solicitou” uma vantagem patrimonial que lhe não era devida. Diz o Estado que foi por ser juiz que lhe fizeram o desconto. Não estava a “ser juiz”, a julgar, a despachar processos no tribunal. Era uma questão da sua vida privada. Não tinha nada com o cargo. Muito do que o juiz faz não é função de juiz. Mas foi “por causa do cargo”. Pela sua condição de juiz: prisão até cinco anos ou multa até 600 dias para o juiz, prisão até três anos ou multa até 300 dias para o dono do stand.
O Estado está no estado puro. Adão antes da maçã de Eva. Existe para os cidadãos. E para o juiz. Por isso eles dizem que as pessoas não estão bem, mas o Estado está muito melhor.
O Estado sabe que o juiz não estava no exercício de funções. Mas pediu e aceitou um desconto. Um juiz é sempre juiz mesmo quando compra um carro! Não o devia ter feito. Um dia, sabe-se lá, o dono do stand acabava por querer ser compensado pelo juiz. Um juiz não pede nem aceita descontos no preço do carro. Paga e pronto.
O Ministério Público faz inquérito. Não atenta nos grandes princípios constitucionais. Interpreta a lei à letrinha. Acusa o juiz e o dono do stand. Outro juiz vai sentenciar se o desconto foi feito em razão do cargo ou como se faz a toda a gente. Ao cliente, não ao juiz. O juiz e o dono do stand são julgados. Isso não interessa nem perturba. Ser julgado é uma corriqueirice que pode acontecer a qualquer um. Somos todos justiciáveis.
Impressivo é o aniversário da funcionária da conservatória. Com autorização do chefe, oferece um lanchezinho aos colegas de repartição, depois das horas de trabalho. Dois advogados estão por ali em serviço profissional. São convidados para a festinha. No regresso, acordam numa prendinha à funcionária. Um belo lenço de boutique elegante. Cento e vinte euros. Entregam-no no dia seguinte, na secretaria da conservatória.
O Estado não aprecia festas de aniversário de funcionárias. Gosta delas cabisbaixas, tristes e deprimidas. Temerosas da requalificação profissional. Se possível, feiinhas. Nada de lenço de boutique chique. Tresanda a corrupção. Por ser funcionária é que os advogados a agraciaram com um lencinho que lhe fica a matar. O que prejudica a isenção da funcionária. Perturba a seriedade do serviço. Lá se foi a “integridade das suas funções”. Não tem nada que aceitar o lenço que lhe não era devido. Os advogados não tinham nada que lho oferecer. Sabem muito bem que o aniversário da funcionária está ligadinho às altas funções que o Estado, de seriedade ad infinitum, lhe atribui. Que jurou por sua honra cumprir com lealdade.
Seguem a via sacra do juiz e do dono do stand.
Um Estado de Direito não se dá com absurdos. Reserva o grosso das suas energias para as grandes questões criminais.
Não tenho opinião firmada sobre isto. Como se vê do texto.
Procurador-geral adjunto