O enigma da colocação central de professores
Isso corresponde mais ou menos à memória que tenho da repetição de problemas com a abertura dos anos escolares. Tão repetitiva, que deixei de prestar atenção. Todos os anos, por esta altura, surgem os problemas na colocação central de professores. A gravidade desses problemas varia. Mas a existência de problemas parece invariável.
Não seria altura de perguntar por que motivo devem os professores ser colocados centralmente pelo Ministério da Educação? Não seria altura de olhar para outros sistemas de ensino público e observar como funcionam?
Por coincidência, a última edição de The Economist publica um editorial sobre o ensino público inglês. Esse sistema nem sequer era centralizado: as escolas dependiam apenas do poder municipal. Mesmo assim, há cerca de dez anos, o Governo trabalhista de Tony Blair iniciou uma reforma ambiciosa: as escolas públicas poderiam voluntariamente requerer total autonomia, incluindo face ao poder local.
O actual Governo conservador-liberal manteve a reforma do trabalhista Tony Blair. Gradualmente, mais escolas adquiriram total controlo sobre o seu programa educativo, a contratação de professores e funcionários, bem como o seu próprio orçamento. Dois terços das escolas públicas inglesas, cerca de quatro mil, detém agora o estatuto de “academias”, ou escolas públicas autónomas.
Os resultados obtidos pelos alunos das academias têm melhorado mais rapidamente do que os das escolas que permanecem na esfera do controlo político. Nalguns casos, citados por The Economist, os resultados são mesmo espetaculares: escolas com taxas de sucesso de 3% em 2006 registam agora, como academias, taxas de sucesso de 79%. Curiosamente, os sindicatos ingleses continuam a ser fervorosamente contra o novo sistema de autonomia das escolas.
Parece relativamente compreensível que um sistema descentralizado e concorrencial funcione menos mal do que um sistema centralizado ou dependente de decisões políticas. Foi por isso que o modelo soviético faliu: porque assentava num modelo de decisão centralizado, em que os decisores locais não eram livres de tomar as suas próprias decisões — nem eram responsáveis pelos resultados das decisões que (não) tomavam.
Voltando ao caso português, o grande mistério não reside na repetição de problemas na colocação central dos professores. O enorme mistério reside em saber por que motivo toda a gente protesta contra esses problemas — e quase ninguém protesta contra um sistema absurdo de colocação central de professores.
É um verdadeiro enigma. Mas há um famoso alerta de Tocqueville que pode ser útil para uma reflexão séria sobre este enigma nacional. Referindo-se à ameaça que a paixão da igualdade pode constituir contra o usufruto da liberdade — sobretudo naqueles países, como a França, em que a paixão pela igualdade supera a paixão pela liberdade — disse ele em 1840: “(...)Vejo uma multidão imensa de homens semelhantes e de igual condição girando sem descanso à volta de si mesmos, (…) Acima desses homens, ergue-se um poder imenso e tutelar que se encarrega sozinho da organização dos seus prazeres e de velar pelo seu destino. É um poder absoluto, pormenorizado, ordenado, previdente e suave. Seria semelhante ao poder paternal se, como este, tivesse por objectivo preparar os homens para a idade viril; mas ele apenas procura, pelo contrário, mantê-los irrevogavelmente na infância. Agrada-lhe que os cidadãos se divirtam, conquanto pensem apenas nisso. Trabalha de boa vontade para lhes assegurar a felicidade, mas com a condição de ser o único obreiro e árbitro dessa felicidade. Garante-lhes a segurança, previne e satisfaz as suas necessidades, facilita-lhes os prazeres, conduz os seus principais assuntos, dirige a sua indústria, regulamenta as suas sucessões, divide as suas heranças. Será também possível poupar inteiramente aos cidadãos o trabalho de pensar e a dificuldade de viver? (...)
“A igualdade preparou os homens para tudo isto, predispondo-os a aceitar este sofrimento e, até, a considerá-lo um benefício” ( Da Democracia na América, Vol. II, Quarta Parte, Capítulo VI).
Aproveito para deixar estas palavras de Tocqueville à consideração do meu estimado amigo, e colega-cronista no “Público”, Paulo Rangel — que amavelmente me tem interpelado nestas páginas.