O almanaque que prevê o tempo há 85 anos
Falar do Borda d’Água é falar da tradição e do mundo rural, mas também das hortas de varanda nas cidades e dos jovens agricultores que hoje o compram.
É entre o movimento das pessoas que sobem e descem a Rua Garrett, em Lisboa, que o senhor Pires, como é conhecido, vende o Borda d’Água. De vez em quando, sobe até ao Bairro Alto, à livraria da Editorial Minerva, responsável pela publicação do almanaque, e compra no máximo 15 exemplares, “para não andar muito carregado”. Cada um custa-lhe um euro e é vendido por dois. “A reforma é pouca. Vender uns quatro ou cinco dá pelo menos para uma refeição.”
Alberto Pires tem 77 anos, é reformado e começou a vender o almanaque em 1996 por sugestão de um amigo. Passou a ser a rotina de todos os dias de manhã, excepto ao domingo. “É preciso ter uma grande força de vontade e persistência”, diz. De vez em quando, troca a Rua Garrett pela estação do Rossio. “Às vezes, estou no Chiado três, quatro dias, não vendo nada e então tenho de descer.” Melhor do que ninguém, conhece quem compra o almanaque e sabe que a agricultura é o que mais interessa aos leitores, embora as tabelas das marés também tenham interesse para os pescadores. “Os compradores são diversos. Lá em baixo, na estação do Rossio, é gente mais ligada à agricultura. Aqui no Chiado é um ambiente mais seleccionado. Pela aparência, são pessoas abastadas. Há também gente nova, tanto do sexo feminino, como masculino. Mas as pessoas andam sem dinheiro, passam com uma indiferença formidável, não olham para as montras nem nada.”
O senhor Pires é um dos dois únicos vendedores de rua na zona de Lisboa que Narcisa Fernandes, sócia-gerente da Editorial Minerva, conhece. O outro vendedor, conta, é um senhor “com a idade do Borda d’Água” que por vezes vende dentro do comboio na linha de Cascais. Muitas outras pessoas vendem o almanaque nas ruas, pelo país fora, até nos semáforos, mas praticamente todas representam o que se transformou no maior problema da editora nos últimos anos: a falsificação do Borda d’Água. “Em média, são uns 70 mil que eu estou a perder por ano, sobretudo de há quatro anos para cá, por causa da venda dos falsos.” Não fossem os almanaques falsos vendidos, Narcisa Fernandes acredita que voltaria ao seu topo de vendas: 350 mil exemplares em 2006. “Durante uns anos seguidos, por volta de 1970 e 1980, vendíamos uns 150 mil ou 200 mil. Quando começou a subir, fiquei satisfeita.”
O Borda d’Água continua a ter algumas marcas da sua identidade. É impresso numa tipografia tradicional que conserva as mesmas máquinas e o mesmo espaço (na Rua da Alegria) desde o início da década de 1930 — o primeiro espaço da editora no Bairro Alto mantém-se mas a funcionar como livraria. Há também 85 anos que na primeira página aparece o “senhor da meteorologia”, um boneco vestido de fraque, com uma cartola na cabeça, um jornal e um guarda-chuva debaixo do braço. Aparece também a ferradura vermelha, com o “M” de Minerva, por cima da cartola e que serve para dar sorte para o ano. As páginas ainda vêm coladas em cima e de lado: a impressão é feita em folhas grandes, que são depois dobradas nas máquinas antigas. Essa foi, aliás, uma das formas de distinguir os almanaques originais dos falsificados que, por serem fotocopiados, vinham já com as folhas abertas. “Durante um tempo, os falsos eram vendidos com a ferradura preta e por aí dava para perceber. Depois passaram a fazê-los também com a ferradura vermelha”, explica a responsável da editora.
Dentro das 24 páginas que o compõem, estão as “indicações das fases da lua, do calendário, das festas religiosas, dos feriados nacionais, as indicações para a agricultura, a entrada da lua nos signos do zodíaco, a astrologia, os eclipses, as feiras e mercados, as tabelas das enchentes e vazantes das marés, o início das estações e tantas outras contribuições de utilidade diária”. É com esta descrição dos conteúdos que arranca o almanaque de 2014.
Publicado anualmente, há uma página dedicada a cada um dos 12 meses do ano onde é feita uma série de sugestões relativas à agricultura, à jardinagem e à criação de animais. Para Janeiro de 2014, por exemplo, o almanaque aconselha a semear alface romana, couve-repolho e rabanete. Nos jardins, aconselha a semear begónias, girassóis ou lírios e a colher violetas, amores-perfeitos ou camélias.
Os conteúdos de cada almanaque começam a ser preparados em Janeiro ou Fevereiro do ano anterior. Célia Cadete, directora do Borda d’Água há cinco anos, que também é professora de Filosofia e Psicologia no ensino secundário, é a única responsável pela produção dos conteúdos. Começa por recolher os dados sobre a meteorologia e as luas junto do Observatório Astronómico de Lisboa. Depois conjuga essa informação com sugestões que ouve e recolhe dos leitores.
Ao longo do ano, vai compilando a informação que recebe através de emails, telefonemas ou cartas. Chegam-lhe pequenos papéis dos leitores com dicas ligadas à agricultura, com provérbios ou com informação sobre uma feira que não apareceu no almanaque do ano anterior. Célia Cadete conta ter um dia recebido um telefonema para saber se um diospireiro devia ser podado. “Quando não sei na altura, pergunto a algumas pessoas, tanto a alguém de Agronomia como a mais idosos que estejam ligados à agricultura. Depois, volto a contactar a pessoa e transmito o que me disseram.” E as sugestões são úteis para quem procura a melhor altura para as suas plantações ou se lança em novas experiências. “Recebo dicas como ‘não se deve semear feijão nas duas primeiras semanas de Julho porque ganha ferrugem [doença causada por um fungo]’.”
A maior parte das cartas são escritas à mão e vêm de aldeias de todo o país. “Penso que o Borda d’Água é interessante nesse sentido. Tentamos receber informação e passá-la no ano seguinte às pessoas. É uma forma de o tornar dinâmico”, acrescenta.
Célia Cadete diz também incluir outras histórias que ouvia os avós contarem. “Por exemplo, quando o lodo vem acima nos lagos, é sinal de que o tempo vai mudar para chuva ou trovoada. Ou quando há formigas a aparecer em casa é sinal de que vai chover. Os meus avós iam contando essas pequenas histórias que dão para identificar algumas coisas.”
Consultar as luas
Ilídio Carreira procura sobretudo as referências às luas. Há 19 anos que trabalha nas sementeiras da família e assegura, juntamente com o irmão, a produção anual de 600 toneladas de nabo e 200 toneladas de beterraba. Semeiam 40 hectares de terreno por ano e vendem para todo o país. “Começámos em Ribeiradas [no concelho de Sobral de Monte Agraço], onde tínhamos um barracão.” Ilídio conta que tudo “foi crescendo naturalmente” e o dinheiro que ganharam permitiu-lhes mudar para os terrenos onde estão hoje, perto da mesma localidade.
Dificilmente se vê o limite das terras que agora lhes pertencem, compradas pouco a pouco aos filhos dos vizinhos que foram morrendo. “A malta da minha idade não liga muito a isto”, explica. Há um ponto em particular de que se orgulha. “Um dos nossos sucessos foi fazer tudo com o nosso dinheiro. Nunca pedimos à banca.”
Ilídio tem 38 anos e quatro filhos. Habituado ao campo, não hesita em lembrar o quão duro o trabalho pode ser. Os nabais a perder de vista são interrompidos pelas enormes torres eólicas instaladas nos terrenos devido ao muito vento que por ali passa. Ilídio diz que é pela liberdade que gosta tanto daquilo que faz. Mas nunca ganharam tão pouco como agora. “É por causa das margens: há mais concorrência e anda tudo espremido. Quem paga é o produtor.” Ter de reagir à concorrência obriga a que sejam encontrados alguns truques para que as colheitas sejam feitas nas alturas certas, com mais qualidade e sobretudo nas épocas em que outros produtores não conseguem garantir tanto produto. É por isso que, para Ilídio Carreira, as fases da lua, sobretudo o quarto minguante, são tão importantes. “Antes, todos os velhotes ligavam ao minguante. Por exemplo, se a cebola for semeada no crescente apodrece”, diz.
Há cerca de quatro anos, começou a comprar o Borda d’Água, onde assinala com círculos os dias em que deve semear. “É um dos meus empregados, o senhor Guilherme, que o compra todos os anos na Feira de São Martinho, no Sobral de Monte Agraço.”
Para além das luas, Ilídio pouco mais consulta. “O almanaque também fala na diária do tempo, mas isso não bate assim tão certo.” Para alguns dias do ano, tendo em conta as mudanças da lua, o Borda d’Água aponta as suas previsões do estado do tempo: desde “vento e trovoadas” ou “nuvens e chuva”, a tempo “fresco”, “variado”, “húmido” ou “brusco”. Para a próxima quarta-feira, dia 8 de Janeiro, por exemplo, o almanaque prevê “tempo revolto”.
Quanto à veracidade dessas previsões do tempo, Célia Cadete é clara. “Nós nunca erramos, as nossas previsões são sempre magníficas, por isso é que são previsões”, ironiza. “Mas habitualmente dão certo. Uma pessoa perguntava-me ontem: ‘Mas como é que tem a certeza que dá certo?’ E eu disse-lhe: ‘Dá certo, mas às vezes depende do sítio onde está’.”
Narcisa Fernandes responde de forma semelhante. “Um dia ligaram-me porque o Borda d’Água dizia que ia chover e não estava a chover. Perguntei onde é que a senhora estava e disse-me que estava em Coimbra. Respondi-lhe: ‘Sabe, o Borda d’Água é feito para o continente e para as ilhas, e pode muito bem estar a chover nos Açores’.” A sócia-gerente da Editorial Minerva conta ainda que em 2013 teve um engano no almanaque. “Repetimos um mesmo mês. Nem sabe os telefonemas e as devoluções que tive. As pessoas ligavam chateadas porque tinham ido fazer as suas plantações, tinham gasto dinheiro e agora quem é que o pagava? Já tinham saído uns 100 mil exemplares assim.” É essa a primeira tiragem do Borda d’Água no mês de Julho: 100 mil exemplares, que ficam prontos em 15 dias e que são todos vendidos até ao fim do mês. Mantendo a tradição, os almanaques são empilhados em pequenos montes, com uma folha por cima e uma por baixo, atados com uma fita de plástico e enviados para os vários clientes pelo país fora que depois o vendem em tabacarias, papelarias, supermercados, feiras e, até mesmo, garante Narcisa Fernandes, farmácias. Logo a seguir à primeira tiragem, há outra de 100 mil exemplares. Todos os anos, a editora encomenda 600 resmas de papel reciclado, com 500 folhas cada.
Criado em 1929 por Manuel Rodrigues, que fundou a Editorial Minerva dois anos antes, o Borda d’Água começou por ser apenas uma folha. Chamavam-lhe “a folhinha”, e assim foi conhecido durante algum tempo. Nessa altura, os livros da editora consistiam também em “folhinhas”, distribuídas porta a porta. “Entregavam a folha de um romance para ver se a pessoa gostava”, conta a responsável pela editora. Se gostasse, entregava-se outra, que então já teria um custo.
O fundador do almanaque foi também o primeiro director e responsável pelos conteúdos. Mais tarde, em 1948, entrou Artur Campos, a pessoa que mais marcou a história do Borda d’Água, segundo a editora. “Vivia no Bairro Alto, num quarto andar, em frente à livraria da editora. Só tinha a quarta classe. Ia para a janela e fazia uma multiplicação, a partir da lua e das estrelas, e assim previa o tempo, mas nunca contou exactamente como fazia.” Foi director durante 40 anos, até 1988. E foi também durante esse período que ocorreu o momento mais significativo para a editora e para o destino do Borda d’Água.
É preciso dar um passo atrás para o perceber. Narcisa Fernandes começou a trabalhar na Minerva com 13 anos, através da mãe, também funcionária da editora. A sua função era carimbar à mão a ferradura vermelha, na capa do almanaque, que tinha sempre de acertar em cima da cartola do boneco. Nove horas por dia, seis dias por semana, durante seis anos. Cresceu na editora, foi este o único trabalho que teve. Logo após o 25 de Abril, os patrões desistiram da editora e os funcionários chegaram-se à frente. “Foi quando entrámos em acordo e criámos uma cooperativa para pagar as dívidas que existiam. Foi uma luta. Não tínhamos o objectivo de sermos ricos. Só queríamos que a editora vivesse. São as nossas vidas que estão aqui dentro.”
O valor do papel
A estrutura dos conteúdos foi sempre a mesma ao longo do tempo. “Mesmo durante o Estado Novo, o almanaque nunca fugiu à regra. Antes do 25 de Abril, não havia o juízo do ano na última página, havia apenas uma canção. Em 1975 é que começou a haver esse texto, onde fazemos a previsão do ano seguinte, porque já se podia falar no que nos apetecesse. Mas, de resto, não havia problema, o Borda d’Água não tinha nada de mal. Só falávamos no tempo, nas hortas, nas luas.”
Depois de Artur Campos, houve mais dois directores, até que, em 2008, Narcisa Fernandes quis pôr, pela primeira vez, uma mulher à frente do almanaque e escolheu a actual directora. Mais recentemente, questionaram-se sobre a evolução para uma edição digital ou para a disponibilização dos conteúdos online, mas Narcisa Fernandes é clara. “Já tentámos, mas não. Sinceramente, isto é uma coisa tão pequenina que não faz sentido”, aponta, acrescentando que isso provocaria uma queda nas vendas. Quanto aos dois euros que hoje custa o Borda d’Água, a editora diz que equivale “a uma bica e um bolo”.
Há quem sublinhe a utilidade que o Borda d’Água, em papel, pode ter. Cristina Santos Silva quis fazer algumas experiências de plantações pequenas nos terrenos que tem à volta de casa, numa aldeia junto do rio, perto da Lousã, onde passa os fins-de-semana e as férias com os filhos e o marido. Aos 43 anos, começou por plantar flores, como begónias, dálias e amores-perfeitos. “Fui fazendo essas experiências, mas morria tudo. Há uns quatro ou cinco anos, a minha sogra perguntou-me: ‘Por que é que não compra o Borda d’Água’?”
Um tempo depois quis plantar “alguma coisa” com os filhos e disseram-lhe que o mais fácil era cenouras. “Vi no almanaque quando devíamos plantar e, de facto, quando fomos ver, havia umas cenourinhas que apanhámos e cozemos. Sei que está tudo na Internet, mas lá não temos Internet, portanto em papel dá-me imenso jeito.”
Cristina é funcionária pública, formada em Sociologia e a trabalhar em Lisboa, mas confessa imaginar-se a dedicar-se à agricultura. “Para mim, o meio urbano já se esgotou um bocadinho. Sinto-me num compasso de espera. Neste momento, a saída era para o mundo rural. Acho que o futuro vai ser por aí.” Para além das cenouras, decidiu plantar ervas aromáticas na varanda da casa em Lisboa. “Comprei um kit de ervas aromáticas e perguntei-me: ‘E agora quando é que planto isto?’ Consultei o Borda d’Água, plantei e já cresceram. Tenho orégãos, cidreira, salsa e manjericão.”
Seja em centros urbanos ou zonas rurais, mais de oito décadas depois de o almanaque ter saído pela primeira vez, continuam a existir leitores, sejam eles mais novos ou mais velhos. Célia Cadete acredita que a tradição de comprar o Borda d’Água se vai mantendo de geração para geração. E os pedidos de encomendas continuam a acontecer. Como quando receberam uma encomenda de 10 mil exemplares, após o deputado comunista Bruno Dias ter levado o Borda d’Água para uma comissão parlamentar de Economia, em Junho de 2013, com o ministro então responsável pela pasta, Álvaro Santos Pereira. O deputado considerou o almanaque como um “elemento central da estratégia do Governo”, numa referência às declarações do ministro das Finanças, Vítor Gaspar, que considerara “as condições meteorológicas” como uma causa do baixo investimento no primeiro trimestre do ano. “Tive de fazer 10 mil exemplares de 2013, mesmo que na altura já tivéssemos o de 2014. Depois perguntei à pessoa que os encomendou e confirmou-me que os tinha vendido todos”, conta Narcisa Fernandes.
O mesmo Borda d’Água que há 60 anos custava dois escudos hoje sustenta uma grande parte da Editorial Minerva, refere a editora. “É um balão que nos ajuda a sobreviver.” O senhor Pires não tem dúvidas, no entanto, de que já vendeu mais do que hoje em dia. Dezembro e Janeiro continua a ser a melhor época, mas há dias difíceis. “Agora está muito mau, as pessoas não têm dinheiro. Às vezes, até falo sozinho, não são coisas disparatadas, sei o que estou a dizer, mas é só para me distrair.” Quanto ao futuro do almanaque, receia que a crise venha a ter um impacto maior nas vendas.
Para 2014 o Borda d’Água aponta: “Inverno áspero mas pouco frio, a Primavera será húmida, o Verão quente e o Outono temperado.” Os que nascerem neste ano “serão de estatura mediana com olhos pequenos e atractivos, testa larga e alta, mãos esbeltas e dedos compridos”. E deixa um conselho: “Os escritores que aproveitem e desenvolvam as suas inspirações; os músicos que componham; os pintores que encham as telas de cores e de emoções; os actores que interpretem os textos intemporais e os escultores que procurem dominar a pedra ou o metal com a sua criatividade.” O objectivo, como lembra Célia Cadete, é o mesmo: “Manter e não deixar esquecer a tradição.”