O advogado do Diabo
Brandir o chavão-espantalho do “eduquês” e deturpar as palavras e o pensamento alheios não constituem boas práticas de discussão.
“O adversário é o melhor amigo do investigador”
Perante os comentários que o meu artigo ("Orgulho e Preconceito", PÚBLICO, 24 de Dezembro) suscitou ao editor Guilherme Valente ("A mísera ambição do eduquês", PÚBLICO, 31 de Dezembro), aqui ficam umas breves reflexões:
Os testes internacionais de desempenho dos alunos têm centrado as atenções de escolas, professores, cientistas, políticos e técnicos da educação no desempenho dos alunos e, através deste desempenho, nos resultados das intervenções educativas. Neste aspecto têm tido uma importância inegável, contribuindo para diagnosticar problemas e dificuldades, aferir o estado do sistema, comparar a eficácia de diferentes medidas, monitorizar a sua aplicação, avançar no conhecimento, etc. Mas é evidente que não são o alfa e o ómega da educação, não têm só vantagens e podem e devem ser questionados, analisados criticamente quanto às suas funções, instrumentos e efeitos.
Esse questionamento tem vindo a fazer-se e espero que continue (1). O que não se pode é defender a participação de Portugal em testes internacionais e a divulgação dos seus resultados quando estes revelam um desempenho fraco dos alunos e só os questionar quando revelam um progresso considerável…
Também se estranha a recusa em considerar os resultados (positivos!) obtidos aos 10 anos pelos alunos portugueses com a justificação de que não haveria aí grande diferenciação, quando se sabe que os primeiros anos são fundamentais para o desenvolvimento e as aprendizagens.
Além disso, o autor esquece-se que o Governo português desistiu de participar no estudo comparativo sobre competências da população adulta, no âmbito do PIAAC (Programme for the International Assessment for Adult Competencies) (ver relatório recente da OCDE), apesar de nele já ter investido uma quantia avultada e de os seus resultados poderem ser importantes para a tomada de decisões numa população que é afinal, neste momento, a mais carenciada de formação.
Ou seja: a G.V. parece que só interessam o PISA e os alunos de 15 anos. Porquê? Que funções atribui a estas avaliações internacionais?
Para quem trabalha em educação, o principal interesse destes estudos consiste no seu possível contributo para a melhoria das aprendizagens dos alunos.
Isso não é compatível com a crença de G.V. em que o progresso verificado se deveu principalmente “ao longo combate travado por alguns cidadãos e jornalistas”. Reconhecendo o seu papel na divulgação dos resultados no início do milénio, não vejo como essas campanhas poderão ter contribuído para as aprendizagens dos alunos senão muito indirectamente. Seria mais justo referir o trabalho de educadores, professores, alunos… e de medidas políticas que, sem cair em atribuições causais lineares, conviria analisar, justamente para distinguir as que poderão ter sido positivas das ineficazes ou até negativas…
Uma outra questão seria importante tratar: que devem aprender os futuros professores e os professores em exercício?
Mas brandir o chavão-espantalho do “eduquês” (uma forma de bullying verbal que tem que ser recusada por quem esteja de boa fé) e deturpar as palavras e o pensamento alheios não constituem boas práticas de discussão. G.V. pergunta: “Pensará M.E.B., realmente, ser possível ensinar o valor da leitura, suscitar o seu hábito, a sua paixão, ou mesmo, tão-somente, ensinar com eficácia e alegria uma criança a ler, sem se ter consciência desse valor, sem a experiência apaixonante e transformadora do convívio com os grandes textos…”? Não, a M.E.B. não o pensa nem o escreveu. Pensa que não são condições suficientes. Foi isso que escreveu.
Acho necessário, por exemplo, que os futuros educadores e professores do 1.º ciclo compreendam em profundidade em que consistem os actos de escrever e ler, conheçam como se desenvolve a sua compreensão na criança, o sistema fonético da Língua Portuguesa, as características da escrita alfabética que utilizamos, etc. Tudo isto constitui um saber específico de Psicopedagogia da Língua Materna que pode ser englobado nas Ciências da Educação e que não é, obviamente, incompatível com o amor pela Literatura que toda a educação deve fomentar.
G.V. conclui atribuindo ao “eduquês” a “desvalorização do conhecimento, horror ao mérito, ideia, social e humanamente aviltante, de que a ignorância, mesmo do mais básico, ou a idiotice, podem ensinar, valorizar, criar, realizar seja o que for.” Felizmente, acrescenta: “Não sou capaz de atribuir tal ideia a M.E.B.S." Faz bem. Realmente até acho que não é capaz de atribuir tal ideia a ninguém. Isso não lembrava nem ao Diabo, quanto mais ao seu advogado!
Há muito a fazer para melhorar a educação em Portugal, incluindo a formação de professores, quer nas ESE, quer nas universidades. Façamo-lo, estudando os assuntos com seriedade, sem “orgulho e preconceito”, com abertura ao que a experiência, a investigação, os estudos demonstram e com respeito pelas opiniões alheias desde que fundamentadas.
1) Muitos destes aspectos serão, por exemplo, apreciados por Filomena Matos e Hugo Mendes na introdução ao debate Que desafios coloca o PISA às escolas e aos professores?, tertúlia aberta, organizada pelo grupo Inquietações Pedagógicas no Zazou Bazar e Café (Calçada do Correio Velho, n.º 7, ao Largo de Sto. António à Sé, em Lisboa), dia 17 Janeiro às 18h.
Membro do Conselho Nacional de Educação