No hospital há aulas todos os dias e as crianças gostam
Há quem pense que é quase cruel estar a incomodar uma criança com um cancro ensinando-lhe Matemática, Português ou Estudo do Meio. Mas, para os meninos que ficam internados meses ou anos, as aulas podem ser o que lhes permite manter uma rotina com alguma normalidade e não perder o contacto com a turma.
O silêncio dura ainda alguns segundos. “Se não souberes conta as barras pintadas da figura, sim?”, pede Clara Santos. A aula começou há cerca de 30 minutos e ela não mostra impaciência nem pressa. Todos os dias aprende a respeitar o ritmo de cada um dos seus alunos, que muda diariamente e, às vezes, várias vezes por dia. É uma das quatro professoras que acompanham as crianças internadas naquele hospital.
“Se me contassem não acreditava”, comenta a mãe de Leandro. Está sentada no sofá que mais logo se há-de transformar na sua cama e sussurra, com mão à frente da boca, para não atrapalhar a aula. Diz que o filho mudou. “Era hiperactivo, tomava imensos medicamentos por causa disso e, ainda assim, estava sempre a arranjar problemas com a antiga professora, que já o punha de lado, a um canto da sala — não passou do 4.º ano. Agora não toma nada dessas coisas e olhe para isto.”
Sem mover a cabeça, que tapou com um boné, o rapaz volta os olhos para professora, numa interrogação tímida, quando arrisca que se tirar oito décimas a uma unidade “sobram duas décimas”. Clara sorri e diz, baixinho: “Estás a ver? Já percebeste!” Ele não corresponde com um sorriso, mas parece orgulhoso. Num gesto decidido e a mão firme preenche o espaço em branco com o resultado e, sem dizer palavra, prossegue para as alíneas seguintes, que têm questões do mesmo género, acertando sempre. A professora só avança para o ponto que se segue depois de se certificar de que Leandro está bem — “Tens a certeza de que queres continuar? Não estás cansado?”
Clara Santos, tal como Margarida Moreira, dá aulas a meninos do 1.º ciclo — cerca de 260, nos últimos quatro anos lectivos, por períodos que nalguns casos duraram apenas três semanas e noutros se prolongaram ao longo meses e até anos. No mesmo período, as professoras Catarina Violante e Cláudia Cerca acompanharam mais de 200 crianças que frequentavam os anos seguintes de escolaridade, entre o 5.º e o 12.º.
“Nada nos prepara”
“Basicamente estudamos muito para poder ensinar de tudo”, explicará, mais tarde, Catarina Violante. Essa versatilidade é essencial, mas não é o único requisito para trabalhar num hospital pediátrico, como há dois anos descobriu João Ferreira, professor do quadro de uma escola das imediações, que cumpre ali parte do seu horário. “Nada nos prepara para aquilo para que vimos. Nada”, comenta, emocionado. E, ainda assim, “nem por um segundo” hesitou, quando as colegas lhe propuseram pedir o destacamento, para ficar a tempo inteiro. Ainda à espera do aval do Ministério da Educação, conta que foram “inúmeras”, as razões que pesaram na sua decisão. Uma delas, “a mais importante, talvez, é o valor que os miúdos”, ali, “dão à escola”. “De repente sentimos que aquilo que fazemos é realmente importante, sabe?”
Elsa, de 13 anos, está na enfermaria de Ortopedia. “Fizeste os TPH?”, pergunta Catarina Violante, explicando, com uma piscadela, de olho, que ali não há TPC (trabalhos para casa) mas sim TPH, ou seja, tarefas para fazer no hospital. “Não setôra, não tive tempo. Sabe que eu aqui tenho uma vida muito ocupada”, responde Elsa, com uma gargalhadinha.
Quando Elsa chegou, há três semanas, sentaram-na numa cadeira própria para fazer tracção à coluna vertebral que uma colega de quarto com mais mobilidade transformou rapidamente num trono, enfeitando-a com pedaços de papel recortados em forma de flocos de neve.
Depois, concedeu-lhe o título de “Princess Elsa”, do filme Frozen, da Disney. Ri-se. Conta que a companheira de quarto se inspirou na estrutura metálica que lhe aplicaram no crânio e que quase faz desmaiar alguns, mas que, vendo bem, achou a amiga, é exactamente igual a uma coroa.
Elsa já transitou para o 9.º ano, porque a lei determina que assim aconteça a quem tem dois períodos com avaliações positivas e não frequenta a escola no 3.º por motivos clínicos. Muito direita, porque não pode estar de outra maneira, abre a mochila da escola para tirar o estojo, e explica que, apesar disso, “faz tudo” para tentar acompanhar a turma. Acabou de ter uma aula de Inglês com uma professora voluntária de uma escola privada, e passa para a de Matemática sem pestanejar: “Preciso de manter as boas notas. Um dia quero ganhar uma bolsa para ir para a universidade”, diz. Atrás dela, a mãe encolhe os ombros e revira os olhos, com um sorriso — “Já lhe disse que tem tempo, que o importante é a saúde, mas que é que se há-de fazer?...”
O primeiro contacto com os pais, quando as crianças ou jovens são hospitalizados, é sempre muito breve, conta Catarina Violante, que trabalha em hospitais desde 2001. A maior parte das crianças cujo internamento se prevê longo tem problemas de saúde graves, da área da oncologia, e “a escola, após o diagnóstico, está no fim da lista das prioridades”, explica a professora. Assim, num primeiro momento limitam-se a informar que, se o desejarem, os filhos serão apoiados por professores do hospital, em articulação com os da escola.
“Os pais aparecem uma duas semanas depois, quando as coisas assentam”, prossegue Cláudia Cerca. Por iniciativa própria ou em conversa com os filhos, percebem aquilo que elas já sabem: “A escola faz parte da vida das crianças, das suas rotinas, e elas querem manter a normalidade possível dentro das circunstâncias. Além disso, muitas temem perder o ano e, principalmente, os colegas de turma, e esta é uma maneira de tentar evitar que isso aconteça.”
São inúmeras as variáveis que depois entram em jogo e condicionam a estratégia dos professores, entre os quais o momento do ano lectivo. No 1.º período e no 2.º, do 2.º ciclo ao secundário, é preciso acompanhar todas as disciplinas, na medida do possível, em articulação com a escola de cada criança; os meninos fazem as fichas de avaliação, que chegam por e-mail e são devolvidas da mesma forma, depois de digitalizadas. Quando chegam ao hospital no 3.º período, trata-se de assegurar as aprendizagens essenciais para o sucesso escolar no ano lectivo seguinte. O ritmo é mais suave.
A colaboração das escolas também varia. “Às vezes a comunicação é difícil porque, simplesmente, os professores que os acompanhavam consideram quase cruel estar a incomodar uma criança com um cancro ensinando-lhe Matemática, Português ou Estudo do Meio”, comenta Margarida Moreira. “Dizem: ‘Deixe estar, não o mace, que para o ano logo vemos! Eu quero é vê-lo bom e aqui na sala outra vez!’”
Outras vezes, contam as professoras do HPC, “a colaboração é extraordinária”. Lembram-se de um caso em que todos os professores se organizaram para diariamente um ou outro enviar materiais de estudo e comentários de incentivo ao trabalho que uma menina ia realizando. E de um professor do 1.º ciclo que colocou uma câmara de vídeo no lugar exacto em que a criança se sentava na sala de aula, para ela poder ir à escola sempre que lhe apetecesse, através do computador pessoal.
Outro dos factores a ter em conta, para quem dá aulas, é a disposição das crianças. Leandro, por exemplo, não conseguiu ter aulas nos primeiros três meses do ano, porque os tratamentos deixaram-no demasiado debilitado. O mesmo se passou com Carlota, que tem sete anos e está internada, também, desde Janeiro. É ela que agora olha para Clara Santos, com um beicinho de mimo: “Dói-me um bocadinho a cabeça.”
Dois minutos antes estava a enumerar, despachada, as partes da planta — “raiz, caule, folhas, flores e frutos” — e a explicar que já semeara ou plantara com a avó “abóboras, feijões, tomates, nabos e outras coisas”. Agora põe as mãos na cabeça coberta por um lencinho colorido — “Dói.” “Será que dói mesmo? Ou mais uma vez Carlota foge às perguntas de interpretação, que a obrigam a escrever ‘respostas muito compridas’, como ela diz?”, pergunta-se Clara Santos. A menina não gosta de escrever. Aprendeu no 1.º ano e teve quase só o 1.º período do 2.º ano para praticar.
“Amanhã passamos à escrita. Estes meninos têm o direito de dizer ‘não me apetece’”, diz a professora, depois de distrair Carlota com um jogo, arrancando-lhe sorrisos, e de ver a dor de cabeça regressar à vista da ficha de trabalho. A mãe, Inês, aflige-se: “Está a atrasar-se e não queria nada que perdesse o ano. As perdas já são tantas.”
Algumas crianças só têm uma vaga noção do que perderam, como Gonçalo, um menino chinês, que já está no 4.º ano e só se sentou na sua sala de aulas por duas — apenas duas — vezes, “para saber como era”. Reteve a imagem de “um quadro gigante” e a informação de que se pode levar “comida para depois”. “Não é ‘depois’, é ‘no intervalo’”, corrige Margarida, que desta vez lhe dá a aula no hospital de dia.
Sofia, madeirense, de 14 anos, a frequentar agora o 8.º ano, tem uma noção muito clara do que perdeu, mas também do que ganhou. Desde que ficou doente, há seis anos, passou mais tempo no HPC do que na escola. Agora, que regressou (mais uma vez) para exames médicos (e tratamentos, “se for necessário”) franze os olhos num sorriso, a fitar os professores que na maior parte do 2.º período voltaram a apoiá-la nas diferentes disciplinas. Em pleno corredor, vai soltando as notícias uma a uma, fazendo pausas, a gozar as reacções quando anuncia: “90% a Matemática; 100% a Inglês; 91% a Francês; Geografia 89%; História 86%; 80 e tal por cento a Português.”
Mais tarde, ao lado do pai, na casa da associação Acreditar, conta que estava ansiosa por falar das classificações que teve na escola. “É muito importante para mim que estes professores, aqui, sintam orgulho naquilo faço. Estou a estudar graças a eles, e também é por eles que estou tão atenta nas aulas. Não é toda a gente que tem a sorte que eu tive — professores dedicados apenas a mim." Trouxe os apontamentos. Os professores da Madeira vão mandar as matrizes dos últimos testes por e-mail e ela já avisou os do hospital, para que fiquem atentos. Alguns até disseram que ela não precisava de realizar estas provas, mas ela vai fazê-las: “Porque quero.”