Não, não e... sim
Acontece que, por diferentes razões, na vida das famílias, de muitas famílias, parece estar a ser progressivamente mais difícil administrar o “não” usando-se de forma, por vezes excessiva, o “sim”, seja de forma mais activa ou apenas por omissão do “não”.
Tal cenário acaba por estar associado a situações em que as crianças evidenciam grandes dificuldades em perceber as regras e os limites do seu comportamento, uma das funções mais importantes do “não”. Como consequência, o comportamento das crianças torna-se despótico, desregulado, transformando-as no “pequeno ditador” de que alguns falam e muitos conhecem, gerando-se situações sociais de grande embaraço para as famílias e climas educativos e relacionais pouco saudáveis entre graúdos e miúdos.
Assistimos com muita frequência a cenas bem exemplificativas deste funcionamento, pais envergonhados e impotentes e meninos a fazer o que lhes passa pela cabeça, quando lhes passa pela cabeça.
Em muitas circunstâncias, os estilos de vida dos pais, o pouco tempo que têm para as crianças, instalam de mansinho um sentimento de culpa que leva a que os pais, quase sempre sem se dar conta, se inibam, para evitar situações de tensão ou crispação que "estraguem" o pouco tempo que têm para os filhos, de dizer de forma firme e persistente, “não”, "não podes fazer isso". Acontece que o “não” inicial desencadeia na criança uma reacção de birra, mais ou menos exuberante, a que os pais frequentemente não resistem e, é uma questão de tempo, o “não” passa a “sim” quase sempre acompanhado de um “só desta vez”, “só uns minutos” ou qualquer outra expressão que na circunstância atenue o desconforto.
As crianças são inteligentes, percebem muito facilmente quando um "não" é "não" ou quando o "não" passa rapidamente a "sim". E como são inteligentes também aprendem com serenidade as regras e os limites. É, pois, fundamental que os pais se sintam confiantes e usem o “não” de forma adequada, ainda que flexível, sem medos das “birras” ou de perderem o afecto dos miúdos por serem “duros”. Na verdade, as crianças precisam dessas regras e dos limites para estabelecer relações de afecto positivas, a sua ausência é que é um risco.
Por outro lado, quando se assiste ou se comenta alguns comportamentos das crianças sobretudo quando se trata de birras ou a imposição de desejos ou vontades aos adultos, quase sempre os pais, que com maior ou menor constrangimento acabam por satisfazer, surge com muita frequência a explicação “é dos mimos” ou outra da mesma natureza. Neste tipo de diálogos, “mimos” é entendido quase como sinónimo de “afecto”, “amor”, “gostar”, etc.
Tal justificação costuma depois servir para se afirmar a ideia de que as crianças hoje em dia têm muitos mimos que as estragam, dito de outra maneira, têm “afecto” a mais ou ainda “gosta-se de mais” das crianças.
Estes discursos parecem-me sempre muito curiosos pois assentam, do meu ponto de vista, num enorme equívoco.
As crianças, de uma forma geral, não terão afecto a mais, não me parece que exista "afecto a mais", pode existir "mau afecto". Não é mau por ser "muito", é mau porque asfixia, oprime, não deixa que cresçam. Mas não é este o tipo de situações que leva as pessoas a falar dos mimos a mais.
Insisto, as crianças não têm mimos a mais, têm "nãos" de menos, os adultos sendo quase sempre capazes de dar os mimos, muitas vezes mostram-se incapazes de dar os "nãos", de estabelecer os limites e as regras que, insisto, são tão necessárias às crianças como respirar e alimentar-se. Esta dificuldade dos adultos em oferecer os "nãos" às crianças, decorre muitas vezes, como já referi, de algum desconforto culpabilizante sentido com as circunstâncias e estilos de vida que inibem o tempo e a disponibilidade que desejariam ter para os filhos. Ficando sem "nãos", muitas crianças, a coberto do afecto dos pais, transformam-se, de facto, em pequenos ditadores que infernizam a vida de toda a gente, a começar por si próprias.
Mas as crianças não têm mimos, afecto, a mais. Nas mais das vezes têm, repito, "nãos" a menos.