"Não é com restrições ao álcool que se combate o suicídio em Portugal"

Ricardo Gusmão, médico e psiquiatra, recusa a associação entre o desemprego e o aumento do suicídio em Portugal. Segundo diz, matam-se entre 120 a 160 pessoas por mês, ou seja, há um suicídio consumado a cada seis horas. Mas o problema, acrescenta, é muito anterior à crise.

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Ricardo Gusmão Nuno Ferreira Santos

Entre outras coisas, justifica, porque quem se suicida são os velhos e não os desempregados. É professor na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa e coordena em Portugal a Aliança Europeia contra a Depressão. Entre 2008 e 2012, liderou um projecto comunitário que, segundo diz, reduziu o suicídio em 23% na Amadora. Os seus resultados vão ser apresentados no dia 14 de Março e, segundo garante, a receita (que incidiu nos cuidados de saúde primários e nos “facilitadores comunitários”, como padres e professores) é extrapolável para outras regiões do país .

Por que decidiu sair da comissão responsável pela elaboração do plano de prevenção do suicídio?
Na realidade nunca quis lá entrar. E pareceu-me que, se saísse, talvez isso fosse mais vantajoso para que as coisas se esclarecessem e para que a comissão pudesse trabalhar de uma forma mais solta. Os trabalhos de comissão às vezes têm algumas particularidades que fazem com que se tenha que ceder em questões de princípio.

O coordenador do plano já adiantou que este recomendará medidas de restrição ao consumo de álcool e o reforço do apoio social aos desempregados, a par da formação dos clínicos gerais. Que lhe parecem estas medidas?
As recomendações relativamente ao álcool irão incidir sobre os adolescentes. E, neste momento, se há algum sucesso de que Portugal se pode gabar na área da prevenção do suicídio é exactamente a redução franca do número de suicídios adolescentes. Neste momento, o suicídio consumado de adolescentes em Portugal é um não problema. E, portanto, não faz muito sentido que, num momento em que o tecido económico português está muito fragilizado, se arranje conflitos com uma parte importante da sociedade como é o sector da produção e distribuição de álcool. Portugal é um país com consumos de álcool importantes em relação a outros países, mas moderado na forma como usufrui desse consumo. É verdade que há questões de saúde pública associadas ao álcool, e até do álcool em relação ao suicídio, mas nenhuma das medidas propostas nesse plano relativamente ao álcool irá contribuir para a redução da suicidalidade em Portugal.

Nem sequer a proposta de aumento generalizado dos preços?
O que me incomoda nesta história do álcool é ele ter sido associado à prevenção do suicídio. O suicídio não é um instrumento de arremesso político, é uma das principais causas de morte, de anos potenciais de vida perdidos. E, portanto, precisamos do consenso da sociedade. E precisamos de conseguir diminuir o estigma em relação à doença mental e em relação às consequências mais grave da doença mental que é o suicídio. E isso não se consegue a concitar pontos de atrito com sectores importantes da sociedade portuguesa - a não ser que valha muito a pena. A questão é que não vale nada a pena.

E quanto aos apoios aos desempregados?
Os princípios estão completamente errados. Aquilo que se alega é que por cada aumento de 1% na taxa de desemprego haveria um aumento de 0,8% na taxa de suicídio. Olhando para o número total de desempregados em Portugal, percebe-se que esse universo cresceu umas 400 mil pessoas, nos últimos quatro anos e meio. Ora bem, são quase 7 pontos percentuais desde 2008. Portanto, isso daria sete vezes 0,8%, o que, pelas minhas contas, são 5,5%. Ora bem, nada disto aconteceu. Os números quer de suicídios registados, quer de mortes violentas por causa indeterminada não mostram isso. Portanto, não há um impacto do desemprego ao nível do suicídio. Além disso, preocupa-me que se faça uma proposta que não tem saída nenhuma no erário público. Se me perguntarem se os períodos de recessão económica levam ao aumento da taxa de suicídio, dir-lhe-ei que sim - aliás, isso até está estudado em Portugal por Pedro Pita Barros -, só que o problema é que esse aumento de mortalidade não se verifica nas pessoas em idade activa mas nos idosos.

Não há uma associação directa entre o desemprego, o álcool e o suicídio?
É mais grave do que isso. Não há necessidade nenhuma de gastar dinheiro em protecção social dos desempregados para prevenir o suicídio. Haverá mas por outros motivos, nomeadamente porque as pessoas estão em situação de fragilidade económica, agora para prevenir o suicídio não faz sentido.

Quais são as variáveis que mais interferem na variação da taxa de suicídio?
A formação dos médicos de família e de outros médicos. Mas não faz sentido que se tenha um programa de formação de médicos de família que não esteja validado, em primeiro lugar, e, em segundo, sem que haja formação de formadores para o aplicar. Por último, não faz sentido um plano de formação que seja simultâneo no país, a não ser que em simultâneo sejam feitas outras intervenções, a outros níveis. Porque a única forma de conseguirmos reduzir a taxa de suicídio em Portugal é fazer em regiões determinadas, geralmente as de maior risco, intervenções simultâneas: ao nível da população, dos médicos de família, dos serviços de urgência, dos municípios, das IPSS, de maneira a haver uma sinergia de vontades e de maneira a remarmos todos na mesma direcção. É óbvio que há aqui muito trabalho de estabelecimento de parcerias, de redes, mas, enfim, já há experiência nisto.

Já disse que por detrás da variação da taxa de suicído estarão variáveis como o divórcio e a toma ou não de antidepressivos.
O desemprego, o divórcio, a pobreza, o consumo de álcool e o não tratamento de doenças per se não levam ao suicídio. A existência de uma doença mental que é a depressão faz com que as pessoas em situações de crise, espoletada por esses factores de risco, possam de facto consumar o suicido. Mas a variável mais importante que explica a redução do suicídio nos últimos 30 anos na Europa é o aumento da utilização de antidepressivos. A outra é efectivamente o divórcio. Não sei se será porque as pessoas que se divorciam vão procurar menos ajuda do que as pessoas que têm alterações do comportamento aditivo de álcool ou do que as pessoas que deprimem por causa do desemprego. Mas em relação ao desemprego existem medidas muito mais eficazes e custo-efectivas que passam por realizar acções de sensibilização e educação nos centros de emprego: o sistema já existe, é só acrescentar conteúdos. A custo quase zero. O mesmo se pode fazer em caso de divórcio nas conservatórias, se bem que de uma forma mais informal. E em ambos os casos com entrega de materiais.

Na análise que fez às mortes violentas por causa indeterminada e aos suicídios nos últimos 30 anos em Portugal, a que conclusões chegou em termos de taxa efectiva de suicídio?
Anda entre os 12 e os 14,5 suicídios por cada 100 mil habitantes, mas poderá chegar facilmente aos 15. Isso dará entre 120 a 160 mortes por mês, o que significa também que a cada seis horas há um suicídio consumado, ou seja, quatro por dia. E o problema é que está a aumentar. E não é por causa da crise, que é outra falácia. O suicídio está a aumentar pelo menos desde 2000, nomeadamente nas pessoas com mais de 65 anos e é óbvio que isso tem que ser levado em conta num plano de prevenção do suicídio. Os homens que se matam ainda são mais do que as mulheres, mas ao longo dos anos essa diferença tem vindo a diminuir. E, apesar de ser também um número bastante elevado, não há alterações da mortalidade por suicídio entre os 25 e os 64 anos de idade. E entre os 14 e os 25 anos há uma redução de 300%.

O aumento é na faixa dos 65 e mais anos porquê?
Por causa da pobreza em que essas pessoas se encontram, pela solidão, pelas dificuldades de acesso a cuidados médicos e por vezes também por falta de formação dos profissionais que lidam com eles.

Confirma-se a velha ideia de que as pessoas se matam mais no Alentejo?
Em termos relativos, sim. Se tivermos em consideração a população total, é verdade que as taxas no Alentejo são maiores do que no Norte de Portugal. O que se passa é que no Norte há uns quantos Alentejos em termos de população. E, portanto, em termos absolutos, o suicídio é maioritário no Norte e no Centro. Por ano, há cerca de mil mortes por suicídio no Norte e Centro. No Alentejo são 200 e tal. São muitos face à população do Alentejo, mas são muito menos do que no Norte e no Centro. E, neste momento, onde a taxa de suicídio é mais elevada até é na Madeira. Por outro lado, enquanto no distrito de Beja para cada dois suicídios há um registo de uma morte violenta por causa indeterminada, que pode mascarar um suicídio, no distrito do Porto para cada suicídio há cinco mortes violentas indeterminadas.
 
 
 
 

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