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Não ao colaboracionismo

Em muitos dos países ocupados pelos nazis na segunda Guerra Mundial, a resistência incluía pessoas que cobriam um espectro político que ia dos cristãos conservadores e monárquicos aos comunistas e anarquistas e a razão, a necessidade e a justiça da sua aliança era uma evidência para todos. Estes grandes consensos podem ser vitais em momentos de emergência, para ultrapassar um obstáculo preciso, ainda que não constituam uma fórmula de governação política nem apaguem as diferenças e os conflitos entre os seus constituintes - diferenças vitais, também elas, para permitir o exercício da livre escolha democrática pelos cidadãos, que deve ser instituída ou restabelecida tão depressa quanto possível.

O momento que Portugal vive é um desses momentos de grave crise. Não estamos sob ocupação militar mas vivemos há três anos sob outro tipo de ocupação, virtual, comandada à distância, por potências financeiras sem nome e sem cara, que ditam os nossos destinos. Uma ocupação onde o princípio da soberania do povo é desprezado pelos próprios dirigentes que juraram defendê-lo, onde as necessidades e os desejos da população são subalternizados perante interesses que lhe são alheios, onde o património nacional e o património pessoal dos cidadãos são pilhados e exportados pelas potências ocupantes, onde o contrato social é vilipendiado como coisa desprezável, onde um governo colaboracionista atribui um estatuto sagrado aos seus deveres de obediência perante a potência ocupante mas renega as suas obrigações perante os cidadãos, onde um número crescente de cidadãos é atirado para a miséria e para a carência e impossibilitado de exercer a sua cidadania.

Com este pano de fundo, é natural que surjam na sociedade portuguesa pedidos, um pouco de todos os lados, para que as várias forças políticas se entendam e consigam chegar a um consenso. No entanto, o que temos visto surgir à direita (no governo, no PSD, no CDS e na Presidencia da República) são apelos a um consenso não para encontrar alternativas de acção, mas no sentido de reforçar e alargar a aliança colaboracionista.

O “consenso” de que fala Pedro Passos Coelho tem sido apenas uma tentativa de chamar para o seu terreno o Partido Socialista e de o comprometer com as suas políticas. A prova de que isto é exactamente assim foi a reacção do Governo ao Manifesto “Preparar a Reestruturação da Dívida Para Crescer Sustentadamente”, mais conhecido como Manifesto dos 74. Se alguém quer um consenso político alargado e equilibrado, ele está ali. Se alguém quer um consenso preocupado com o futuro dos portugueses e assente num real conhecimento da economia, do país, das constrições da política e da situação actual da Europa, ele está ali. Se alguém quer um consenso que é fruto do compromisso entre diferentes visões políticas, da direita à esquerda, ele está ali. Do documento disse-se tudo, mas vale a pena sublinhar algo particularmente nobre: o sacrifício de todos os que o assinaram.

É evidente que raros serão, entre os signatários, os que se sentirão confortáveis com cada linha de cada parágrafo. Houve certamente compromissos e negociações, insistências e cedências. Mas foi possível chegar a um texto comum, onde todos cederam um pouco no menos importante para defender o essencial. E, por isso, por terem sabido defender o essencial e pôr de lado a sectarismo que tanto mancha a prática política, a publicação deste manifesto merece ser assinalada na nossa história com uma pedra branca. O Manifesto dos 74 mostra que há quem ponha o interesse dos portugueses acima do interesse dos mercados financeiros e quem coloque a soberania do povo acima do poder sem rosto do dinheiro. O Manifesto dos 74 mostra que há, da esquerda à direita, quem não ceda ao colaboracionismo, por diferentes que possam ser as suas visões da sociedade. Este manifesto é, por isso, um importante passo para salvar a honra perdida da política, prostituída pelo Governo, e para restaurar a imagem da democracia, vítima da violação colectiva quotidiana do PSD e do CDS.

2. Este manifesto tem um reverso, sombrio. Estabelecendo um alargado consenso político a propósito de uma questão política central, é sintomático que ele tenha nascido e surgido à margem dos partidos. Pode dizer-se que essa foi uma necessidade táctica, para não fechar portas, mas não se trata apenas disso. Repare-se na fúria do PSD, na indignação do CDS, na hesitação do PS, na contenção do BE, no cumprimento distante do PCP. Pense-se agora em todos os outros manifestos que têm surgido nos últimos tempos, sempre com milhares de assinaturas, sobre questões centrais. O que vemos é um panorama onde, de forma crescente, os partidos parecem alheados destas movimentações. O facto de as propostas mais relevantes e mobilizadoras surgidas na política nos últimos tempos estarem a aparecer sistematicamente fora dos partidos não augura nada de bom e aconselha uma profunda reflexão sobre a actual prática partidária.

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