Medicalização da Educação
Este excesso de peso afecta-me em variadas áreas da minha saúde, da minha funcionalidade e, helas, da minha estética. Tenho tentado perder peso mas… por cada meio quilo que perco, logo um quilo inteiro vem apressadamente colmatar a ausência do meio quilo perdido. E assim, os meus esforços não têm sido muito bem-sucedidos. Sou bombardeado com produtos para emagrecer: “perca três quilos numa semana sem dieta nem exercício”, “chega de excesso de peso: perca cinco quilos em duas semanas”. Confesso que são propostas sedutoras. E são sedutoras porque me prometem eliminar as consequências sem ter que intervir nas causas.
Vejamos: eu sei por que tenho excesso de peso: como demais e faço exercício de menos. Estou certo que se conseguisse alterar os meus hábitos de alimentação e de exercício perderia os tais quilos a mais. Mas… custa fazer isto, custa modificar as causas porque isso implica abandonar hábitos arraigados, comodistas e fáceis por outros que são novos, custosos e, portanto, mais difíceis. E assim, continuo com excesso de peso até que, um dia, talvez, em desespero de causa me vá render a uns comprimidos que me prometem que tudo na minha vida pode ficar igual – excepto o peso.
O que é que tem a ver o meu excesso de peso com a medicalização da Educação? Tudo. Temos assistido a um aumento exponencial de crianças cuja solução para melhorarem o seu aproveitamento escolar é tomarem remédios. Fala-se de psicostimulantes que ajudam a criança a concentrar a sua atenção no que é importante, em lugar de a dispersar por outros temas que não constam do programa escolar (o termo deficit de atenção está contaminado pelo julgamento do que é a “boa” e a “má” atenção).
Uma questão que permanece não respondida neste campo é: por que é que tantas crianças precisam, “de repente”, de ajuda química para melhorar o desempenho escolar? Podemos avançar algumas hipóteses:
a) porque a escola está mais exigente e implica uma atenção por mais tempo e mais focalizada que antes,
b) porque existe uma desarmonia entre a forma como se aprende na escola e fora dela (ref: tecnologias digitais, etc.),
c) porque as crianças são precocemente responsabilizadas pelo cumprimento de tarefas que não são capazes de realizar,
d) porque os conteúdos da escola parecem obsoletos e desmotivantes comparados com outros estímulos etc., etc., etc.
O certo é que, se o sintoma se manifesta na criança e na sua aprendizagem, a causa está fora dela: está, em última instância, no tipo de escola, de ensino, de conteúdos e de aprendizagem que lhe são propostos.
Vamos regressar ao meu excesso de peso. Actuar sobre as consequências sem alterar as causas. Mas se a causa não está na criança, porque é que vamos actuar quimicamente sobre ela? Porque é que a escola (e tudo o que lhe está inerente: métodos e ambientes de aprendizagem, conteúdos, etc.) não é capaz de se modificar para ir ao encontro da forma e do ritmo com que a criança aprende? A resposta é dura mas vale a pena ser considerada: porque a criança é o elo mais fraco. Ela sim, tem deficit de atenção, ela sim está desadaptada, ela sim tem que se modificar para se ajustar à forma como a educação se organiza. A Educação, ela sim, está, como sempre esteve, certa. Continua aqui a procura desta quimera: tentar mudar as consequências (a falta de atenção da criança) sem actuar sobre as causas (os conteúdos, as estratégias de ensino, as experiências de aprendizagem, a personalização de percursos, o apoio escolar, etc.).
Pois é, se não formos capazes de mudar hábitos alimentares e de exercício, e se a escola também não ousar mudar a forma como os alunos aprendem, das duas uma, ou nos tornamos uma comunidade químico-dependente (os pais medicados contra a obesidade e os filhos contra a hiperatividade); ou então convertemo-nos numa sociedade de gordos (felizmente que, devido ao deficit de atenção, ninguém dará importância a isso por muito tempo…).