Isaac tem 10 anos e aprende mandarim para traduzir os negócios dos chineses
São João da Madeira é o único município do país onde o chinês é uma disciplina curricular no 1.º ciclo e facultativa no 5.º ano. Um projecto pioneiro que, neste momento, envolve 669 alunos e que vai crescer até ao final do secundário. Uma iniciativa com os olhos postos no outro lado do mundo.
Bruna já ajudou a mãe a perceber o número do tamanho de uma camisola numa loja de chineses. Mafalda quer ser médica, mas caso tenha de partir para a China terá uma grande vantagem na ponta da língua. A campainha acaba de soar e à quinta-feira, uma vez por semana, durante 50 minutos, a turma de 16 alunos aprende chinês. Rafael Figueira coloca em cima da mesa os apontamentos dos anos anteriores, do 3.º e 4.º ano, fichas com desenhos, caracteres, exercícios, frases.
A professora Zhang Ying apresenta-se na primeira aula com essa turma com uma curta saudação em chinês. Isaac põe imediatamente o dedo no ar para garantir que tinha percebido tudo. “Olá, sou a professora Cristina”, traduz. Joana Oliveira, a outra professora da sala, confirma que está certo. É hora de começar a correcção da ficha de revisão dos conteúdos leccionados nos anos anteriores. São nove páginas de exercícios para escrever no quadro.
São João da Madeira é o único concelho do país que ensina chinês no 1.º e 2.º ciclos do ensino público e em que no 3.º e 4.º é uma disciplina obrigatória que faz parte do plano curricular das nove escolas. No 5.º ano, aprender chinês é facultativo. O projecto pioneiro, coordenado pela Universidade de Aveiro e monitorizado pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC), começou no ano lectivo 2012/2013 com 300 crianças do 3.º ano. Em 2013/2014, o número aumentou para 582 alunos do 3.º e 4.º. Este ano, tem 669 no 3.º, 4.º e 5.º. A meta está traçada: subir um ano por cada ano lectivo até chegar ao 12.º do secundário.
É a primeira vez que o 5.º ano tem mandarim. As aulas começaram excepcionalmente em Janeiro. O MEC aprovou esse novo ano ainda antes do período lectivo arrancar, mas a autorização só foi dada em Dezembro. A turma do 5.º tenta recuperar tempo perdido. O sumário é escrito em português nos cadernos, Joana Oliveira pergunta quem quer ir ao quadro, enquanto Zhang Ying circula pela sala a tirar dúvidas, a corrigir detalhes, a apagar um minúsculo traço de um caracter chinês, a mostrar como se escrevem e se pronunciam frases.
Ajudar nos negócios
Escrevem-se números, fazem-se contas. Rafael Figueira tem 10 anos e entre as aulas e o futebol encaixou o mandarim. “Nos outros anos, gostei muito de aprender chinês e era um desperdício não continuar porque é muito importante para o meu futuro”, garante. Surgem os termos de unidade. “Primeiro o número, depois o termo de unidade e depois a palavra”, explica a professora Joana.
É preciso ir ao quadro escrever sete coisas, 35 pessoas, 73 livros. Há também uma sopa de caracteres, pronomes pessoais no singular e no plural e verbos. “Os verbos são muito importantes”, avisa a professora. Rafael vai ao quadro para ligar os verbos ter, ser, olhar e amar aos caracteres chineses. Seguem-se mais revisões para interiorizar como se escreve e pronuncia eu, tu, ele e ela.
Isaac Soares tem 10 anos e explica o que a turma aprendeu nos últimos dois anos. “Sabemos contar até 99, sabemos os pronomes, os países, as cores, os membros da família, as partes do corpo humano, alguns verbos e escrever caracteres”. Isaac quer ser médico e quer continuar a aprender mandarim. Nunca se sabe as voltas que o mundo dá. “Gosto muito de andar no mandarim, pode ajudar-nos no futuro. Se formos para outros países podemos traduzir os negócios dos chineses”.
A colega Mafalda Pinheiro está plenamente de acordo. Também tem 10 anos, também quer ser médica. “Sei que o chinês é bom para ajudar nos negócios. Eu quero ser médica, mas se não encontrar emprego aqui e se tiver de emigrar para a China já sei falar essa língua”, diz de um fôlego. Os caracteres, volta e meia, dão-lhe algumas dores de cabeça, mas não desiste. “Gosto de aprender chinês, é importante aprender outras línguas. A minha mãe também diz que é importante saber coisas novas.”
Vitória Babeshko fala em negócios, em traduções, em dominar línguas. Vitória é russa, tem 11 anos, é uma aluna aplicada sempre com o dedo no ar para ir ao quadro. “É muito divertido. A minha mãe diz que é importante aprender novas línguas”. Vitória fala português, russo e agora aprende mandarim. “Saber chinês ajuda-nos nos negócios para o futuro. Poderei ir para a China e para vários países e posso ser tradutora quando os chineses vierem para Portugal de férias”, diz a Vitória que quer ser veterinária. E o que Bruna Santos, de 10 anos, aprendeu nas aulas de mandarim já deu para ajudar a mãe numa loja de chineses. Traduziu o número da camisola sem precisar de ajuda do empregado. A prima também está aprender mandarim e, volta e meia, juntam-se para estudar e partilhar o que sabem. “Gosto de aprender esta língua”, assegura Bruna que quer ser psicóloga.
A aula está prestes a terminar. Marca-se o teste para 12 de Março e as apresentações orais sobre a cultura chinesa, que serão feitas em português, para o dia 5. Também é preciso conhecer a gastronomia, os hábitos, os feriados, e outros assuntos relacionados com uma cultura bem distante. Joana Oliveira avisa que o mandarim precisa de muito estudo, muito empenho, muito exercício. “Não é uma língua só de ouvir, é preciso praticar muito. Aprender esta língua exige novos métodos de estudo”, sublinha.
No 5.º ano, interligam-se os temas aprendidos até então e, no final do ano, os alunos saberão muitos pormenores da cultura chinesa, bem como conjugar o verbo querer, pronunciar vários frutos, manter um diálogo com frases pequenas, entre outras tarefas. Na avaliação oral, terão de ler um texto em chinês e traduzir o seu significado. Por isso, é preciso insistir e nos trabalhos de casa surge a indicação de sempre para reescrever os caracteres novos cinco vezes. “É uma língua muito diferente, mas vamos com calma”.
E a China aqui tão perto
A ideia de ensinar chinês nas escolas públicas partiu da câmara são-joanense. Na altura, Castro Almeida, agora secretário de Estado do Desenvolvimento Regional, era o presidente da autarquia e valorizava a importância de saber chinês num território industrial focado nas exportações. O autarca apresentava um projecto com visão de futuro. O desafio do município mais pequeno do país, em termos de área, acabaria por ser lançado à Universidade de Aveiro (UA) que o agarrou e acompanhou desde o início. Neste momento, a UA tem quatro equipas com dois professores cada – um de Português para facilitar a comunicação com os alunos e outro de chinês para garantir a qualidade do que se escreve e diz –,nas aulas de mandarim em São João da Madeira.
Além disso, está a criar material didáctico de raiz, manual ilustrado incluído. Carlos Morais, do Departamento de Línguas e Culturas da UA, acompanha o projecto desde o início e garante que tem vindo a evoluir. O objectivo é ensinar chinês do 3.º ao 12.º ano e há vontade de replicar o modelo, que tem o aval e é monitorizado por uma equipa do MEC em outros estabelecimentos de ensino. “O projecto já faz parte da vida de São João da Madeira e as dúvidas colocadas no início desapareceram, já ninguém questiona a sua validade”, refere. É um “projecto de equipa” em que todos “vestem a camisola”.
Na sua opinião, os alunos são-joanenses terão uma ferramenta importante quando tiverem de enfrentar o mercado de trabalho. “Conhecerão não só a língua, mas também a cultura. Esses conhecimentos abrem horizontes para quem quer ir trabalhar para a China ou para trabalhar em empresas que têm negócios com a China. Saber Português na China também é competitivo”. “Estamos a olhar para a China, mas a China também está a olhar para Portugal”, acrescenta o responsável. Aprender chinês exige empenho. “É uma língua que exige alguma memória, muito exercício, muito trabalho, e não pode haver um afastamento da língua”.
Nos media internacionais
O ensino do mandarim em São João da Madeira tem captado a atenção mediática internacional. A France Presse e a BBC Radio fizeram reportagens sobre o assunto. A televisão chinesa também deu destaque à iniciativa e há artigos em chinês, inglês, francês e espanhol em sites de vários jornais. “O projecto é conhecido a nível nacional e internacional pelo seu carácter inovador”, refere Carlos Morais.
O presidente da Câmara de São João da Madeira, Ricardo Figueiredo, salienta a visão de futuro do projecto e está satisfeito com a iniciativa. E se no início a China parecia estar longe, a verdade é que Portugal foi-se habituando a ouvir falar de negócios com essa parte do mundo. “É importante habituar os nossos futuros adultos a comunicar bem na Ásia. Vão ter uma vantagem competitiva interessante para arranjar emprego”, realça. E mais do que entender a língua, é fundamental perceber a cultura de um país carregado de caracteres.