Império das calculadoras nas aulas tem os dias contados
Novo programa de Matemática para o ensino básico valoriza a memorização como facilitadora de "tarefas mais complexas".
Filipe Oliveira, professor da Universidade Nova de Lisboa e um dos autores do novo programa e das metas curriculares de Matemática, admitiu hoje, numa conferência de imprensa destinada a apresentar o novo documento, que a utilização de calculadoras no 1.º e 2.º ciclo para resolver operações simples tem tido efeitos “muito nefastos”, já que o aluno “recorre a uma espécie de caixa mágica onde lhe aparecem os resultados sem que chegue a compreender” a operação realizada.
O ministro da Educação e Ciência, Nuno Crato, que sempre foi um crítico do uso da calculadora nos primeiros anos de escolaridade, considerou hoje que o programa ainda em vigor, aprovado em 2007, “continua a promover o uso da calculadora”, embora não seja tão benévolo como era o anterior, que está na sua base.
“Deve haver alguns limites”, defendeu Crato. “Isso não quer dizer que as calculadoras não devem usadas, mas com bom senso”, esclareceu Filipe Oliveira, frisando que “os professores, melhor que ninguém, saberão quando o uso é nefasto ou vantajoso”.
Um dos princípios que subjaz ao novo programa, que estará em consulta pública até ao dia 23 de Maio, é o da importância da memorização que, “nas últimas décadas, foi descuidada”, frisou outro dos autores do novo programa, Carlos Grosso, que é professor do ensino básico e secundário. As metas curriculares para esta disciplina, homologadas no ano passado e que definem o que um aluno deve saber nas diferentes etapas do seu percurso escolar, já o estabelecem, ao definir, por exemplo, que um dos objectivos de aprendizagem no 2.º ano é o “saber de memória as tabuadas do 2, do 3, do 4, do 5, do 6 e do 10”. No 3.º ano é a vez das tabuadas do 7, 8 e 9.
Saber a tabuada de cor
A memorização das tabuadas de multiplicação também se encontra prevista, para estes mesmos anos, no programa ainda em vigor, mas a sua concretização não parece satisfazer os autores do documento que o irá substituir. “A memorização não é antagónica da compreensão, antes pelo contrário”, defendeu Carlos Grosso, indicando que um dos objectivos gerais do novo programa é precisamente relacionar aquele procedimento “com o aumento da disponibilidade de recursos cognitivos”.
Por exemplo, a possibilidade de compreender e resolver bem um problema matemático é muito maior quando um aluno sabe a tabuada de cor. Como a nossa “memória de trabalho tem capacidade limitada, a memorização de factos e a automatização de procedimentos permite a compreensão e concentração em tarefas mais complexas”, frisou Isabel Festas, professora da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e uma das coordenadoras da equipa das metas, acrescentando que “hoje em dia não basta fazer bem, é preciso fazê-lo rapidamente”.
Outra das mudanças previstas é a da inversão da tendência para a “excessiva contextualização” dos problemas. “É preciso partir do concreto, mas com a preocupação de alcançar o conhecimento abstracto das relações matemáticas. Não podemos estar sempre a desenvolver problemas demasiado contextualizados [envoltos numa história ou na descrição de situações do quotidiano], até porque as crianças acabam por se aborrecer com enunciados muito palavrosos”, defendeu Carlos Grosso.
António Bívar, professor na Universidade Lusíada e outro dos autores do novo programa, insistiu, pelo seu lado, que os conteúdos listados neste já estavam estabelecidos nas metas curriculares e que por isso são conhecidos dos professores desde há quase um ano. “Não há novidades”, garantiu.
Evitar “problemas falsos”
Quando o Ministério da Educação e Ciência anunciou, na semana passada, que o programa em vigor estava revogado, a presidente da Associação de Professores de Matemática (APM), Lurdes Figueiral, acusou Crato de estar a fazer “retroceder 40 anos o ensino em geral e, em particular, o da Matemática”. Segundo um dos autores do programa de 2007, João da Ponte, o MEC está a recuperar "uma matemática muito abstracta e muito formalizada que não serve a escola e os alunos de hoje”.
Hoje, Nuno Crato desvalorizou estas críticas, frisando que o novo programa visa, pelo contrário, “modernizar o currículo”, tornando-o “mais exigente, mais claro e mais adaptado às necessidades dos dias de hoje”. O ministro acrescentou que o novo programa dá “uma grande liberdade metodológica aos professores, sendo ao mesmo tempo muito claro nos seus objectivos, que é o contrário do que acontecia”. Crato justificou a sua adopção com o facto de, após este primeiro ano de aplicação ainda não obrigatória das metas curriculares, “subsistirem algumas dúvidas e incongruências pontuais” entre o que se encontra recomendado nestas e o que está recomendado no programa de 2007.
A adopção do novo programa permite superar "problemas falsos como as alegadas incompatibilidades entre as metas e o programa de 2007. Assim, esta questão deixa de criar problemas”, acrescentou António Bívar.
A APM anunciou em Março que iria interpor uma providência cautelar para travar a aplicação das metas curriculares da disciplina que, no próximo ano lectivo, serão obrigatórias para os alunos do 1.º, 3.º, 5.º e 7.º anos, alegando que estas contrariam o programa que está em vigor nas escolas. No fim-de-semana, já depois do anúncio de que este seria revogado, indicou que está ponderar apresentar uma providência cautelar com vista a impedir que tal aconteça.
O MEC conta ter a versão final do novo programa, incluindo eventuais alterações na sequência da consulta pública, concluída a 11 de Junho, para que entre em vigor já no próximo ano lectivo.