"Hoje foi um dia alegre. Nos outros dias vejo-me aqui sozinho”

Nos montes alentejanos, em Odemira, há idosos que vivem completamente sozinhos, sem luz e sem telefone. Há quem durma numa roulotte porque em casa está demasiado frio. E quem confie na espingarda para combater o medo à noite. O projecto A Vida Vale juntou-se a um grupo de teatro, a um lar, a uma unidade móvel. Não olham só pela saúde física das pessoas, até teatro lhes levam a casa

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António recebe os vizinhos. É dia de teatro na sua casa
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"Nos outros dias, vejo-me aqui sozinho, tanto de dia, como de noite, não tenho muita alegria”, diz António
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Odete e José tiveram acesso à teleassistência.“Não sei para servem os botões todos, felizmente não tenho tido falta."
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Zé Maria, de 74 anos, nunca se casou e tem como grandes companhias o cão Joli e a gata Chica

A solidão é o motivo pelo qual se omite o nome completo das pessoas e o dos montes, para evitar assaltos e burlas. Levar um espectáculo de marionetas à casa destes idosos é apenas uma das actividades do projecto A Vida Vale, promovido pela Associação Odemira+ e, no caso do espectáculo, em parceria com o Teatro Ao Largo e o lar de Sabóia — Associação Humanitária D. Ana Pacheco.

Apesar de ter sido criado para inverter as taxas de suicídio na região, hoje A Vida Vale combate o isolamento social e territorial — no concelho, as pessoas estão cansadas de ouvir falar em suicídio. O grande parceiro do projecto é a Unidade de Saúde Móvel da Unidade de Cuidados na Comunidade de Odemira: juntos percorrem os montes de quatro freguesias para visitar idosos.

A ideia do espectáculo partiu do Teatro Ao Largo. “O teatro é uma forma de juntar as pessoas”, diz o director artístico da companhia, Steve Johnston. A peça vai passando por várias casas e pretende-se que seja o anfitrião a convidar quem quiser — os técnicos garantem as boleias. Pedro Pinto Leite, produtor da companhia, diz que é uma forma de reatarem os laços que foram perdendo.

O Sr. António meteu-se a caminho a pé, pelos montes, e foi convidar os vizinhos. Outros espectadores vêm do lar, levados pelos técnicos. O anfitrião está numa azáfama com a chegada de pelo menos 15 convidados. É preciso pôr cadeiras cá fora. Sombra, falta sombra. A casa nunca está assim tão cheia. Desde que a mulher morreu, há três anos, vive sozinho.

É dos primeiros a saltar da cadeira quando a peça pede bailarico, depois de os técnicos e os elementos da companhia terem ido também buscar espectadores para dançar. “Os olhos gostam de ver isto. Hoje tenho um dia alegre. Nos outros dias vejo-me aqui sozinho, tanto de dia, como de noite, não tenho muita alegria”, diz. Ao lado, Emília, 66 anos, corrobora: “É divertido. A gente no monte nunca vê nada.”

Embora tivesse começado em Sabóia, A Vida Vale estendeu-se a outras três freguesias de Odemira — Luzianes-Gare, S. Martinho das Amoreiras e Santa Clara-a-Velha — e a ideia é alargar ainda mais. Para além das visitas domiciliárias, promovem actividades no centro comunitário de Vale Touriz, uma antiga escola primária. Vão buscar as pessoas que vivem nos montes numa carrinha e organizam churrascos, festas, sessões de cinema, de educação para a saúde, passeios em que alguns vêem o mar pela primeira vez. Para o ano deverá haver mais duas escolas antigas transformadas em centros, em Luzianes e Santa Clara-a-Velha.

O motorista da unidade móvel, César Guerreiro, 67 anos, conta que as pessoas vão “satisfeitas” para os convívios: “Saem de casa, vêem pessoas antigas. A gente, quando vai para um bailarico, mesmo que seja doente, passa-lhe logo a doença”, brinca, lembrando que uma vez um médico lhe disse que, na altura das festas de S. Teotónio, em Odemira, não tinha pacientes.

Dormir numa roulotte
Distribuir caixas para polimedicação e instalar equipamentos de teleassistência são outras missões que A Vida Vale e o lar têm em mãos. No caso da teleassistência, a tarefa é difícil, pois nem todos os montes têm rede móvel ou mesmo eléctrica.

Dentro de casa da Dona Odete, 67 anos, e do Sr. José, 75, contemplados pela assistência, está mais frio do que lá fora. O telefone novo está coberto com um pano bordado, por causa do pó, e é o Sr. José — sentado, com uma manta colorida feita pela mulher sobre as pernas, a respirar com ajuda de um aparelho —, quem usa a pulseira, que tem um botão que basta premir para fazer disparar o alarme numa central.

“Não sei para servem os botões todos, felizmente não tenho tido falta. Mas já utilizei umas quantas vezes só para ouvir a voz do outro lado. Se estou triste, é uma companhia. Gosto de ouvir a vozinha das enfermeiras e elas também me ligam. Perguntam-me se estamos bem, pelas minhas rendinhas, se a gente já almoçou”, conta Dona Odete que não quer deixar a terra onde ainda semeia “umas favinhas e uns alhinhos”. Têm três filhos, dois dos quais no Algarve, que os visitam. Outro está no Congo. Mas também passeiam com os técnicos d’A Vida Vale: “Gosto de ir. Saio daqui, é logo uma coisa mais aberta”, diz o Sr. José.

O presidente da Associação Odemira+, Manuel Cruz, frisa que o grande objectivo do projecto é “criar animação”, acompanhar os idosos e dar-lhes auto-estima: “Há muitos filhos a residir fora, vizinhos longe uns dos outros, queremos aproximá-los.”

O Sr. Manel, 87 anos, vive sozinho, nunca se casou: “Vivi 20 meses, ia para 21, com uma senhora casada”, recorda. Dentro de casa, acumulam-se sacos de plástico, garrafas, pratos com restos de comida, latas de atum no chão para os gatos, roupa, sapatos. “Isto está uma porqueira, eu também não arrumo”, justifica. No meio da confusão estão também espalhadas caixas de comprimidos. O Sr. Manel aproveita a visita do psicólogo e coordenador d’A Vida Vale, Fabio Medina, e queixa-se de tonturas e apertos no coração: “Os medicamentos não me servem de nada”, resmunga.

Como a casa é fria, dorme numa roulotte, estacionada à porta. Garante que não tem medo de estar sozinho: “A GNR já veio aqui fazer sensibilização para a gatunagem.” À noite, vê televisão e trata dos gatos: “Os meus camaradas.”

Também o Sr. Zé Maria, 74 anos, nunca se casou e tem como grandes companhias o cão Jóli e a gata Chica: “Medo? Que hei-de fazer? Abandonar isto? À noite, tenho ali uma espingarda.” Nas redondezas, vivem as irmãs: “Elas estão como eu. Uma é mais velha do que eu, tem 77, outra tem 71”, brinca. Tirando o facto de ouvir mal, sente-se bem. Apesar de tomar medicamentos para a tensão, colesterol e coração, não vai ao médico há um ano.

Não tem cada-de-banho — nem dentro nem fora de casa. Não tem água canalizada, nem torneiras no interior da habitação. Para cozinhar ou tomar banho vai buscar água ao poço. Tem telemóvel, mas não há rede: “Também não percebo nada daquilo”, desabafa. Não tem telefone fixo nem televisão. O rádio avariou há quatro anos e nunca mais o arranjou. Chegou a andar numa mota, mas hoje não se sente seguro nela. Como também não tem aquecedor, à noite faz “um fogo” na cozinha e fica ali com uma manta até se sentir quente e ir para a cama. As janelas não têm vidros, apenas portadas de madeira. O tecto, tal como a maioria das casas, é feito só de telhas, sem outra cobertura.

Conta que, volta e meia, alguém se mata nos montes: “Havia além um homem de 65 anos que andava doente e enforcou-se. Tirou um pedaço de osso ao pé do dente, gritava com as dores. Matou-se, acabou com as dores. As pessoas andam aborrecidas com a vida, sofrendo, sofrendo, e fazem essas coisas.”
 

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