Haverá licenciados a mais?
Que “licenciados” queremos? Que Universidade ou que Ensino Superior? Que Educação? Ou, sobretudo, que Sociedade?
Não sei o que Angela Merkel disse sobre os licenciados em Portugal e em que circunstâncias. O que sei é que há estadistas a preocuparem-se demais com situações de outros países e a ocuparam-se pouco dos problemas da Europa, deste “sistema” que nos aflige e que nos tem desequilibrado social e economicamente: neste mundo onde existem roubos fiscais legalizados, quebra de contratos com trabalhadores e aposentados, encerramento e deslocalização de empresas, bancos em falência, privatizações por sistema, aumento de desempregados e subempregados… Há, pois, que lutar por uma outra democracia, talvez afinal pela Democracia ou por uma Democracia Social. Mas entendo que a questão dos “licenciados a mais” é uma questão a discutir com rigor.
Num livro de que sou coautor, Que Universidade?, pus de algum modo em questão, saudavelmente, o juízo de António Nóvoa, num excelente discurso que proferiu num 10 de Junho, de que a actual geração era a mais bem preparada de sempre. Julgo sim que é a que tem mais graus universitários, pois não a considero, tendo em conta as circunstâncias de cada época, a mais bem preparada. É que não se verificou uma democratização do ensino, mas a sua massificação e, com isto, a perda de exigência dos professores e alunos e do seu sentido crítico. A própria transformação da gestão democrática das Universidades em simples gestão de tipo empresarial tirou capacidade crítica a uns e a outros. Mais: a lamentável adaptação que se fez da Declaração de Bolonha (19.06.1999) que, ao contrário das suas nobres aspirações, passou a ser apenas um processo criador de três ciclos de ensino superior, originou cursos, mais ou menos de continuidade, em que cada grau não é marcado tanto pela qualidade, mas pelo facto de o ser. O que é preciso é prosseguir numa escada de três degraus, em que cada um deles pode não ser índice de boa preparação.
A “licenciatura” é apenas uma fase de aptidão generalista, o “mestrado” pode não ser uma verdadeira qualificação para a investigação ou para uma profissionalização e o “doutoramento” pode não representar um grau de qualidade superior, até porque em alguns casos não são os melhores alunos a seguirem para o 3.º ciclo. Em muitos casos são aqueles que não conseguiram um trabalho e que têm de continuar a insistir na busca de mais um grau, ou os que têm mais posses em busca de uma graduação superior (em Portugal ou no estrangeiro, por vezes graças ao programa ERASMUS, que não é para todas as bolsas) ou aqueles que, depois de alguns anos de exercício profissional, conseguem condições para se dedicarem a uma experiência que sempre desejaram ter, como é o caso da investigação.
Há licenciados a mais? Mas o que é um “licenciado”? Não foi este, no início da Universidade e por muitos anos, o primeiro grau do ensino superior e sim o de “bacharel”, palavra que terá entrado pela via francesa e que terá origem no baixo latim. Foi assim em Portugal, em que se tornou corrente a expressão “bacharel formado”. A “formatura” passou a ser depois um conceito comum e a palavra “bacharel” quase desapareceu com sucessivas reformas e práticas. Voltou depois por volta dos anos 50 e tornou-se outra vez vulgar quando se constituíram os Institutos Politécnicos, que, inicialmente, só conferiam o bacharelato. A “licenciatura” era já, no início e depois, uma pós-graduação, que se sucedia ao “bacharelato”, resultante de uma repetição de cadeiras e de “actos grandes”, que foram passando para o doutoramento, com outra exigência, à medida que este de um acto honorífico se foi transformando num acto científico, o que se fixou no tempo da República. O “doutoramento”, no meu tempo, se não era, nem nunca foi, um grau só para os docentes universitários (que se iniciavam como assistentes) exigia altas classificações para a ele se poder ter acesso, mesmo depois do aparecimento de um novo grau, que surgiu nos anos 80, o de “mestre”, palavra pouco consentânea com a realidade (magíster, o “mais” qualificado) e com a nossa tradição vocabular. No entanto, para obter essa categoria seria necessária também uma classificação elevada na licenciatura. E os MBA (Masters of Business Administration) tornaram-se o cúmulo da moda, neste mundo regido pelas leis do dinheiro.
Num sistema binário ou, ainda mais, num sistema liberal, surgiram “licenciados”, “mestres” e “doutores” nas mais diversas áreas e escolas, desde as Universidades aos Polítécnicos (onde se tornaram, a pouco e pouco, comuns as licenciaturas e depois os mestrados), públicos e particulares, portugueses ou estrangeiros (que podem não ser índice de qualidade, por mais sonantes que sejam os nomes das escolas onde sejam adquiridos), quase sem nenhuma vigilância do Estado ou de uma entidade científica superior, o que é de salientar, até porque agora para se ser mestre ou doutor não se exige, no ingresso do curso, nenhuma classificação ou outra condição especial. E temos, além de “doutores”, “professores doutores”, termo que era só corrente na categoria de professores catedráticos ou de professores extraordinários de universidades públicas e, mais recentemente, de professores associados com agregação, e que hoje até pode classificar, como mero acto de propaganda, um simples licenciado que, por artes mágicas, vem ocupar o lugar de “professor” numa universidade particular. Alguém será capaz de identificar estas categorias que por aí se multiplicam, obrigando a alterar a caricatura de Bordalo Pinheiro do Álbum das Glórias, referente à Universidade de Coimbra (a única existente em 1882), “Alma Mater. A Mamã dos Bacharéis”, e ao texto de Ramalho Ortigão que a acompanha?
Afinal o que temos de mais? “Licenciados” (os “senhores drs.” ou “setores”, como lhe chamam as crianças num curioso neologismo)? “Mestres”, agora os antigos “licenciados” de antes de “Bolonha”? “Doutores”? O que sei é que a multiplicação de universidades, de institutos politécnicos, públicos e particulares, com o objectivo de satisfazer estatísticas, a que também ajudaram a crescer os simples “bacharéis” que por aí havia (mesmo com boa formação) e que meteoricamente se transformaram (pelo menos) em “licenciados”, criaram um universo de graduados que hoje atingem altos níveis de desemprego. Muitas vezes porque se graduaram em cursos em que será impossível encontrar lugar de trabalho condicente com a sua formação. Isto porque para atraírem alunos se criaram cursos com discutível significado científico, tecnológico ou cultural, sem pertencerem ao mundo do saber fundamental mas também sem terem um claro objectivo prático, tanto nas universidades, que se “politecnicizaram”, como nos politécnicos, que procuraram tornar-se “universidades”, distinção que afinal nunca ficou bem definida.
Mas, a par disto, deparamos com notáveis graduados em todas as ciências e humanidades, excelentes técnicos, investigadores com alguns graus ou com todos os graus possíveis, que não conseguem alcançar qualquer lugar, depois de passarem por todas as bolsas e que mesmo estiveram ligados a algumas unidades de pesquisa, muitas das quais foram desaparecendo, vítimas da nova avaliação de uma agência internacional, cujos avaliadores desconheciam por vezes a nossa realidade e até as ciências cuja criação deveriam estar a analisar no seu conteúdo e não apenas na sua forma. E encontramos professores envelhecidos em universidades públicas que não progridem nas suas carreiras, devido à tão falada falta de verbas e de vagas nas suas escolas, assim como, pela mesma razão ou por outras, não se criam áreas de grande importância nas universidades, como os estudos africanos e orientais, o que é pelo menos estranho num país que alargou os seus horizontes pelo mundo.
Enfim, estamos num mundo complexo que merecia, sem demagogia, o estudo atento do Governo, de universidades e institutos politécnicos, de professores e alunos, de investigadores, dos órgãos de comunicação, de quem fala e escreve sobre o tema … Por isso — independentemente das palavras, porventura prepotentes, de Merkel, chanceler da Alemanha, que sempre nos atraiu como construtora de Ciência e de Técnica, mas também repelimos outrora, como produtora de guerras — pergunto-me não se “há licenciados a mais” (não há, com certeza), mas sim: Que “licenciados” queremos? Que Universidade ou que Ensino Superior? Que Educação? Ou, sobretudo, que Sociedade?
Professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra