“Há uma legião de jovens em grande sofrimento e a precisar de ajuda”

A dias da segunda fase de exames nacionais do ensino secundário e a semanas de milhares de jovens descobrirem se entraram ou não no Ensino Superior e no curso pelo qual batalharam, os pedopsiquiatras alertam que pais e professores devem estar atentos. Há muitos jovens a sofrer, dizem. Em silêncio.

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Picos de ansiedade em época de exames levam cada vez mais estudantes às urgências Rui Gaudêncio

Lê a primeira questão várias vezes: sabe que não ler um “não” ou trocar um sinal pode ser fatal e por isso lê e relê. São só duas linhas, Tiago sabe disso, não devia ser assim tão difícil, mas sente que não reteve nada do que está escrito e por isso acaba por folhear o enunciado para verificar quanto vale a questão. Regressa à leitura.

Mas antes de tentar resolver o problema confirma quantos pontos perderá se errar a resposta. Tem o coração acelerado, transpira abundantemente, treme cada vez mais, os tiques nervosos aumentam de intensidade e os olhos prendem-se ao relógio. O tempo está a passar e ainda não fez nada, pensa. Provavelmente a mãe ligar-lhe-á assim que terminar o exame. Vai ter de lhe contar isso mesmo, que não fez nada. E como é que vai suportar a desilusão do pai?

Pensar que não devia estar a pensar nisso e sim a fazer o exame é apenas mais um dos pensamentos que lhe atravessam a mente em flashes dolorosamente agudos. Dá consigo a fazer cálculos de cabeça para determinar com exactidão quanto é que os pais pagaram por explicações de Matemática, com os olhos postos no ponteiro dos minutos. Tem consciência de cada um dos segundos em que as horas se esgotam, sente-os de uma forma quase física. E, mais uma vez, culpa-se por estar a deixar passar os minutos a pensar no tempo que está a perder em vez de fazer o exame. 

10h00. Tiago vive um sofrimento intenso, no limite do suportável, mas à volta ninguém se apercebe do que se passa dentro dele. Pelo menos é o que ele deseja. Naquele momento não pensa nisso, mas mais tarde reflecte que não – nem colegas nem professores deram mostras de reparar, apesar de ele sentir que os sinais (está encharcado em suor, os tiques são mais visíveis do que nunca, mal consegue pegar na caneta por tanto tremer) são exuberantes. 

Não entende como é que eles não vêem. É como se estivesse numa cápsula e a cápsula, dentro da sala onde decorre o exame, fosse invisível para todos os outros. É um inferno privado que não há-de comentar com ninguém além das pessoas que fazem parte do grupo de entreajuda que frequenta num serviço de psiquiatria. Outro segredo. Mais uma cápsula onde coloca a cápsula em que vive. Porque os ataques de pânico não se partilham com amigos, apenas com desconhecidos que sentem o mesmo e que por isso não lhe chamam maluco. Ali, entendem-no, sabem do que está a falar, diz.

Tiago é o nome fictício de uma personagem real. Tal como o são Maria e Paulo, que também aceitaram falar sob anonimato. “É uma maneira de fazer passar a mensagem lá para fora”, diz Tiago. “Se apenas uma pessoa em cada cem das que lerem o artigo conseguir entender-nos e se isto contribuir para quebrar o tabu que são os problemas de saúde mental, já terá valido a pena”, afirma Maria. 

Pedidos de consultas aumentaram
Os três fazem parte da “legião silenciosa de jovens que se encontram em grande sofrimento e que precisam de ajuda”, como alerta Augusto Carreira, presidente da Associação Portuguesa de Psiquiatria da Infância e da Adolescência. Os três contribuíram quer para a escalada nos pedidos de primeiras consultas de pedopsiquiatria nos últimos anos quer para os picos de situações agudas de ansiedade que levam estudantes às urgências ou ao médico de família em épocas de testes e de exames nacionais.

Às vezes, com sintomas tão díspares como visão turva, perda de força numa perna, dores de barriga e vómitos, alucinações, dores de cabeça ou de peito, falta de ar, surdez. Noutros casos com sinais depressivos que exigem mais atenção a quem os rodeia: tristeza profunda e prolongada no tempo, falta de sono (ou sono em excesso), perda de apetite, isolamento, perda de interesse por actividades que antes praticavam, relutância em ir à escola, enumera Vítor Leite, pedopsiquiatra que no Hospital Pediátrico de Coimbra tem dedicado uma atenção especial às automutilações.

“Os exames não mudaram – pelo menos não tanto que justifiquem o aumento de casos, penso – mas o contexto, sim, alterou-se significativamente”, sublinha José Garrido, director do serviço de Pedopsiquiatria do Hospital Pediátrico de Coimbra. Refere-se à crise e aponta para um gráfico da evolução das primeiras consultas: 4330 em 2012; 6109 em 2013; e 4414 em apenas seis meses deste ano. 

“Os pais, os professores – os adultos, em geral – andam ansiosos, desorientados, angustiados, demasiado ocupados a garantir a sua própria sobrevivência em termos profissionais. E é natural que, mesmo sem intenção, andem menos atentos; e que, por outro lado, exerçam uma pressão fora do normal sobre os jovens. Para que escolham a área e o curso com mais empregabilidade e não aqueles que mais os atraem, para que tenham notas altas, para que não falhem”, enumera Augusto Carreira.

“Os adolescentes são esponjas, absorvem a angústia, a inquietação, a desesperança, a vivência depressiva dos pais”, diz José Garrido. “E tudo isto os apanha numa fase de grande vulnerabilidade e de incerteza, contribuindo para que os exames surjam aos seus olhos como um momento decisivo, determinante, das suas vidas. Como se além deles, dos exames – ou, mais propriamente, das notas – não houvesse nada”, completa Carreira.

Uma barreira inultrapassável
“É como se fosse uma barreira. Se não a passar, acho que não vou aguentar”, diz Tiago acerca da nota do exame de Matemática. “Vais aguentar, aqui percebemos que há outros caminhos, que não temos de vencer sempre”, corrige Maria. “Aqui” é o grupo de entreajuda.

Tiago sorri de forma quase imperceptível. Para além da ansiedade nos exames têm outros problemas. E a necessidade de ocultarem as suas fragilidades quando não estão “ali” não é o menor. “Até agradecemos a possibilidade de falar com alguém de fora. É raro podermos fazê-lo”, diz Paulo.

Falam sempre em “aqui” e “lá fora”. E em “enviar mensagens”, como se fossem náufragos. Querem que “a sociedade comece a falar de saúde mental sem preconceitos”; que pais, professores, colegas e amigos “entendam que uma pessoa com uma dor interior pode sentir-se mais doente do que outra que tem uma perna partida”; que aqueles percebam que “alguém que toma medicamentos em excesso na véspera de um teste não está forçosamente a querer matar-se e nem sequer “a pedir ajuda” ou “a dar um sinal de alerta”, como dizem os médicos”: “Talvez não aguente mais o sofrimento e sinta que tem de acabar com ele naquele momento, de qualquer maneira”, diz um dos três. Sabe do que fala: “Naquele momento tinha de desligar. E desliguei”.

“Invisíveis”
Tiago, Paulo e Maria têm gestos seguros e um discurso escorreito. São os três bons alunos, jovens e bonitos, com sorrisos generosos. A cartilha diz que, por norma, os jovens que sofrem de sintomas depressivos, e principalmente de ansiedade aguda em situação de testes ou de exames, têm traços de perfeccionismo, de insegurança e de pessimismo, uma auto-estima baixa e a necessidade de, a todo o momento, sentirem que controlam todas as variáveis. Nada que naqueles três salte à vista.

Se estivessem numa esplanada, ninguém os distinguiria de quaisquer outros. Paulo (que passou os três dias que antecederam o exame de Matemática em casa, a vomitar tudo o que tentava ingerir) e Maria (que já deixou de terminar um teste porque “simplesmente deixou de conseguir mover o braço, para escrever”), explicam que a vantagem de a dor que sentem ser invisível é que podem, realmente, disfarçá-la. Passar despercebidos. 

Muitas vezes, nem os professores mais atentos reparam no que se passa dentro deles, contaTiago. “Dizem que a ansiedade é normal, que isso passa”, concorda Maria. Não é algo que lhes desagrade, segundo dizem. Falam de um caso em que se soube, na escola, que um rapaz tinha feito uma tentativa de suicídio e foi marginalizado pelos colegas, que acharam que ele queria “benesses” dos professores. A atenção destes, que seria bem-vinda noutras circunstâncias, transformou-se então em mais um factor de desestabilização.

“Querer ajuda não é o mesmo que querer a atenção de todos. E querer ajuda também não quer dizer que seja fácil pedi-la: somos quase adultos, devemos resolver os nossos problemas sozinhos. E além disso as pessoas não entendem o que se passa dentro de nós”, explica Maria.

José Garrido lembra que os adolescentes têm dificuldade em pedir apoio de uma forma convencional por estarem numa fase de afirmação, de procura de independência em relação aos adultos. Mas o que mais preocupa os especialistas é que a essa dificuldade se tenham aliado factores decorrentes da crise que afectam também pais e professores, eles próprios demasiado preocupados com questões de sobrevivência, ansiosos e depressivos.

“Tenho muitos pacientes que dizem: ‘Hoje em dia, ter filhos a estudar é um problema’”, conta Rui Nogueira, vice-presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. “E não são apenas os desempregados, mas [acontece com] quase todos os que têm filhos – porque quase todos sofreram com os cortes nos vencimentos, passaram a ter de fazer trabalhos extra para equilibrar os orçamentos familiares ou têm medo de perder o emprego”, sublinha. Não significa que queiram mal aos filhos, “claro”, diz o médico de família.

Acontece que as circunstâncias os tornam “menos tolerantes e mais exigentes”, constata José Garrido. "Os livros, o transporte a alimentação ou as explicações de um filho são vistas simultaneamente como despesas e como um investimento”, comenta Nogueira. “E acabam por fazer sentir aos filhos que esse investimento só tem retorno se eles tiverem excelentes notas.”

“É como se estivesse a gozar com o meu pai”
Paulo diz que os pais nunca lhe fizeram sentir que é um peso. “Não precisam, porque eu sinto-me um peso de qualquer maneira. Estava no exame de Matemática e não me saía da cabeça que não fazer a disciplina é como estar a gozar com o meu pai, que teve de emigrar e gastou dinheiro comigo, em explicações.”

Tiago também não foi criticado pelos pais, quando chumbou àquela disciplina no ano passado, depois de vários anos de aulas particulares. Ainda assim, recusou-as neste último ano: “Eles não me disseram nada, foi por mim próprio que recusei explicações, porque pais são pais e davam um jeito… Eu é que não suportava pensar que eles tinham investido em mim e eu tinha falhado, não suportava pensar que isso podia acontecer outra vez”, explica. Tiago tem a mãe desempregada. E zangou-se quando o telefone tocou logo a seguir ao exame: “Correu bem?”.

Paulo, Tiago e Maria conversam entre eles: “Não há receitas. No fim de uma prova estamos tão cansados, tão angustiados que não há atitudes certas ou erradas por parte dos outros. Se o exame corre mal e eles telefonam, sentimos isso como uma pressão, mas se não telefonassem não garanto que não sentisse isso como desinteresse”, admite Paulo.

Os especialistas alertam que pais e professores devem estar atentos e, em caso de dúvida, pedir ajuda – ao médico de família, por exemplo, concordam José Garrido e Rui Nogueira. E, principalmente, ajudar os filhos a ultrapassar situações que aos seus olhos parecem fatais, fazê-los ver que falhar num exame “não é uma tragédia”. “Isto sob pena de terem de lidar com uma tragédia maior”, alerta Augusto Carreira.

“Arregaçar as mangas”
Terminada a primeira fase de exames e mesmo antes de saírem as notas, esta sexta-feira, Tiago, Paulo e Maria começaram a preparar-se para a segunda fase de provas. São três, entre milhares que querem subir notas ou simplesmente terminar o secundário. E, neste caso, há receitas, apontam os pedopsiquiatras.

“Os pais devem ajudá-los a procurar alternativas de forma activa. Não basta dizer que elas existem, têm de se sentar com eles e de lhas mostrar. Um exame falhado numa área pode ser uma oportunidade para mudarem para outra, que preferem”, exemplifica Augusto Carreira. “É essencial que não dramatizem a situação – nem esta nem outras. Pais que reagem às adversidades sem baixar os braços, arregaçando as mangas e procurando resolver os problemas, estão a ensinar os filhos a fazer o mesmo em situações semelhantes”, reforça Vítor Leite.

O momento de agir “é já”. Porque Tiago, por exemplo, já tem a cabeça no futuro. No que vai acontecer e no que vai sentir durante o exame, em que pode vir a ter outro ataque de pânico; e também no dia em que terá de dizer aos pais que voltou a reprovar, se isso acontecer. "Eu sei que não devia pensar nisto agora, mas não consigo impedir-me. O que é que eu vou fazer? Digo aos meus pais que vou estudar mais um ano? Não posso. Desisto e vou trabalhar? Também não posso: tenho uma boa média para o curso que quero, sei do que seria capaz se não fosse a nota de Matemática", diz. E fala da tal barreira: “Não consigo olhar para além dela. Não estou a dizer que quero morrer. Apenas a dizer isto: não vejo futuro para além dela.”

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